segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

A Seca

Eu bebi o tutano dos ossos do sertão
Eu bebi a própria seca
Eu bebi os sem-terra,
os sem-teto, os sem-tudo.

Eu bebi o vento vazio
bebi a vazante do rio
bebi o vagante vadio
e o esterco da gralha.

Eu bebi o som do guizo
Eu bebi a roça rude
e o retalho de uma mortalha
Eu bebi o riso.

Eu bebi o trinar do açude
e dos passarinhos
curió, canário, pintinho
Eu bebi o beijo dos costumes.

Eu bebi o suco dos legumes
da seriguela, do suor, do sol
Bebi o silêncio da praça;
bebi cigarro e cerveja.

Eu bebi cereja e acerola
Eu bebi a própria desgraça
Eu bebi o azul e o branco
e bebi o canto e as estrelas

E, então, eu bebi o trovão.

E todos eles sairam sedentos
De suas casas
Olhando, com olhos suados,
O céu
E a serenata da zabumba do trovão

E todos eles beberam, sedentos,
Da chuva cheirosa do sertão.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Transcedência

Uma vez,
queimei a minha roupa
com a guimba de um cigarro que encontrei
na rua
e me fiz uma pira com ela
e fiquei pelado, olhando pra ela.
Sentado.
E quando o fogo
apagou
eu rolei nas cinzas
e me vesti de novo.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O Descante de Arlequim

A Lua ainda não nasceu.
A escuridão propícia aos furtos,
Propícia aos furtos, como o meu.
De amôres frívolos e curtos,

Estende o manto alcoviteiro,
À cuja sombra, se quiseres,
A mais ardente das mulheres
Terá o seu único parceiro.

Ei-lo. Sem glória e sem vintém,
Amando os vinhos e os baralhos,
Eu, nesta veste de retalhos,
Sou tudo quanto te convém.

Não se me dá do teu recato.
Antes, pulido pelo vício,
Sou fácil, acomodatício,
Agora beijo, agora bato,

Que importa? Ao menos o teu ser
Ao meu anélito corruto
Esquecerá por um minuto
O pesadelo de viver.

E eu, vagabundo sem idade,
Contra a moral e contra os códigos,
Dar-te-ei entre meus braços pródigos
Um momento de eternidade...

Manuel Bandeira

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Amor mimetisado

Eu fotografei aquele cheiro
assim que ele foi exalado:
o cheiro do amor, fotografado.

E ela se sentiu fotografada
quando sentiu o cheiro do meu amor
e a minha foto a amá-la.

Às treze horas e trinta e um minutos passados
nos seus olhos vi meu cheiro, em sentidos
e nos meus olhos, o seu cheiro, em abrigos:
os nossos olhos desencontrados.

E quando nossos olhos forem achados
olhando cada um pro seu umbigo
que tirem outra foto desse amor contido:
o amor do cheiro fotografado.