quinta-feira, 27 de maio de 2010

Na trave de um soneto

A redenção do poeta
está no
lembrar de alguma coisa que nunca foi
ou nunca fez ou nunca viu

está na saudade do amanhã
que nos ataca
quando lavamos a mão depois do almoço
ou antes de fazer xixi

está na antítese entre gêmeos
da esperança no passado
do renascer do obsoleto

quarta-feira, 26 de maio de 2010

porradobol

criança fala poema tempo todo
nem dá bola
tipo porradobol

- eu e turbinado contra rapa!
- tá mas o gol de vocês tá mais grande!
- ah, vai pra zaga zé zuado!
- PORRADOBOL!

A maisgrandeza do gol fez toda a diferença do mundo.
As mininas todas davam
gritinhos aflitos, que nem sirenes bêbadas
Doía pra carácolis!
Também, só bicaço, fazia furo na rede
e, as vezes, machucava o olho de um
tinha que ir pra enfermaria, ou pra casa
o gordinho.

A gente não ligava não

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Sol do fim de tarde

O sol do fim da tarde
entrava lateralmente lá em casa
engatinhando pelo chão de madeira
que nem o nosso gato

e eu dizia pro verão entrar
que fizesse do chão sua casa também
sem envergonhas, sem timidezas
e esquentasse nossas longas férias no play

podia ser de piscina, fazendo rodamoinho
ou fazer cidades de lego no canto do corredor
- as vezes a gente se vestia diferente
e gravava com a câmerazinha do meu irmão mais velho

o mais legal era ter muito tempo
cheinho de sol, que invadia nossa casa
e alegrava os saltos do nosso gato
que nem faz com os saltos das crianças

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Dunas

O dia estava com um quê de misterioso nublado. Era um céu marítimo, meio prateado, de enormes nuvens escamosas, de cor meio indefinível: cinza-peixe. Às três da tarde cairia um granizo leve, e Citônio encontrava-se na praia, com Trivela, sua melhor amiga. Os dois calçavam tênis ol-istar, e vestiam calças diins, mas ele usava uma jaqueta de veludo verde, com uma camisa cor-de-preto por baixo, enquanto ela optou pelo mole-tom, nem lá nem cá, e desprendera os cabelos caindo num ombro. A água parecia muito fria - de fato, a areia coalhava-se de águas-vivas congeladas, que atraíam muitíssimas gaivotas, preenchendo a brisa do mar de uma gritaria desoladora. Os dois comentavam uma notícia de jornal:
Um cientista descobria que todos são trinta e três por cento mais baixos do que imaginava-se até então, porque a medida do metro estava errada. Pesquisando os sistemas de medidas, encontrou erros no cálculo da curvatura da Terra, e que o que pensávamos ser um metro era, na verdade, um metro e meio. Portanto, deveria-se diminuir a altura de todos em um terço, e refazer todos os aparatos de medição, réguas, fitas etc. Somente os países com outros sistemas métricos escaparam da triste fatalidade de encurtamento global.
Sentindo-se rebaixados, amargavam essa questão antropológica e um tanto quanto filosófica. Será que a medida das roupas mudaria também? O gê passaria a ser eme, o eme a ser pê, o pê a ser pepê, e o pepê a ser beibiluque? ......... Péra, seria o contrário, não? Porque nesse sentido as medidas estariam aumentando mais ainda! Puxa, muito complicado. Crucial seria, portanto, um programa governamental para a redução geral e gradual dessas medições.
Citônio olhava para o mar celeste, só que estava meio triste, porque comprara uma camisa de presente para Trivela que agora poderia ficar grande... ele aprendeu a não tirar a etiqueta dos presentes.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Abdução

Citônio tinha uma colega, uma vizinha, mais ou menos da sua idade, no desfolhe dos treze anos. Ela, curiosamente, chamava-se Maria, e nada mais. A mãe era biruta e ela também não batia muito bem: alegavam que foram abduzidas. Credo. Citônio não acreditava muito, mas que era estranho era. Deixemos que ela, Maria, nos narre:

"Foi tudo muito embrulhoso. Estava catando feijão no chão da varanda, numa tarde abafada e desventante, com Caquí, nosso mico, no ombro. Lembro que estava usando o meu vestido mais fulera, com a bacia de feijão bem a minha frente. Foi tudo muito embrulhoso... Ouvi minha mãe miar: 'Mingau!' e a vi andando, suspirona, olhando esmeticamente os horizontes. Chamei-a, mas ela me afastou com os olhos vidrados. Debruçou-se na beirada e não fiz nada; caiu, e não fiz nada; e quando olhei ela não estava nem no céu, nem no chão. Então, senti os capêlos da nuca empreriçarem, e uma liscívica excitação percorreu-me o corpo. Meu vestido parecia flutuar, mas podia ser o vento; e meus cabelos também flutuaram, e meus pés também. Aí tudo ficou da cor de mingau! Ouvi catarolarem um frevinho, mas a música era outra. Acordei numa mesa de operações, e estava frio, e nua. Percorri o lugar com os olhos, mas não vi nada. Então vi um ser de corpo enfinado, usando óculos enormes e espelhados; dedos compridíssimos. Ele disse: 'No hay banda' e depois vi que vestia uma coisa tipo camisa escrito NÃO TENHO CERTEZA, em neon. Dormi e sonhei num carro conversível que fazia cocô enquanto avançava um sinal...
Acordei, ainda nua, deitada na varanda, com a bacia de feijões ainda embraçada pelas minhas pernas, porém com todos os feijões já catados e com os cabelos roxos - como ficariam para sempre. Esqueci meu nome - que era Cassandrina - e também minha mãe, por isso nos rebatizamos. Foi tudo muito embrulhoso..."

Citônio não acreditava muito, mas que era estranho era. Até porque os cabelos de Maria Cassandrina eram realmente roxos.
Citônio aprendeu a sempre desconfiar de pessoas com nomes suspeitos.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Sol e Dão

Dá quase pra ver a sua janela
que passa debaixo no morro vazio
de verde.

Um prédio de fachada amarela
não tem porque esconder-se, esguio.
Queria ver-te.

Brisa de vapor de vento
voando no teu sopro
no susto suprimido

Sentado, te imagino de pé, lendo
tatibitateando com seus poros
a fumaça de um sustenido

Cirurgicamente contornado
pelo por-do-sol reluzente
o seu rosto se desabotoa

Estou a te ver de lado
com essa nota de sol poente
que a distância não perdoa

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Sustos

Os melhores amigos de Citônio chamavam-se Trivela e Zepelin. Ela, colecionadora de latinhas de refrigerante e jogadora de futebol; ele, líder do cineclube no colégio e comunista brechtiniano. Os dois viviam um caso secreto que Citônio desconhecia e se encontravam dizendo que iam na biblioteca ou no bebedouro, enquanto, na verdade, se escondiam no subsolo para namoros de treze e catorze anos, respectivamente.
Citônio só começou a perceber alguma coisa estranha na festa de quinze anos do Paracelso, um colega redondinho que fazia malabares com facas, tochas e seus três rãmisters, ao mesmo tempo. A casa dele não era tão grande e, mesmo tendo chegado juntos, Citônio não encontrava com Trivela desde que ela fora no banheiro retocar a maquiagem e não esbarrava com Zepelin desde que ele saira pra amarrar os sapatos ao ar livre. Rodando da sala para a varanda, da varanda para o quarto e do quarto para a cozinha, Citônio passou quase meia hora na pista dos dois. Encontrou-os entrando novamente na casa, Trivela com menos maquiagem do que antes, embora Zepelin parecesse mais rosado. Quando lhes perguntou o que fora, ela disse que foi checar o que Zepelin estava fazendo... Citônio, que estava de olho em Loirelinda - que dançava Na Boquinha da Garrafa - deixou pra lá o incidente.
Não voltou a pensar no assunto até o dia em que foi fazer um dever na casa de Trivela. Por conta dessas causalidades inexplicáveis, Citônio acabou vendo-a nua em pêlos quando abriu o armário, a procura de folhas de rascunho e giz de cera, e, por mais que tenha desviado rapidamente o olhar no primeiro susto dos dois, não teve como não reparar nela naqueles instantes de segundo. Foi então que percebeu que ela estava namorando com alguém, porque, desde que fizera aquele curso de desenho de modelos vivos (em que só comparecia nos dias de modelos femininos), aprendera a reconhecer as mulheres solteiras das casadas ou envolvidas em relacionamentos. Ela se justificou, dizendo que no seu quarto do apartamento em que morava antes, ela tinha um closet, o que permitia que ela se trocasse trancada, mas que, agora, ainda não conseguira se acostumar à ideia de armário apertado. Citônio, no entanto, não prestava muita atenção, mas lembrava-se da festa de Paracelso e das saídas estranhas e repentinas para a sala de artes na hora do recreio...
Citônio aprendeu a dançar funk.