sábado, 16 de julho de 2011

O Centro do Mundo

Pérgola, tadinha, era muito feia. Daquelas meninas que todos concordam que é bem feia. Até seus pais sabem que ela é feia. Nem vou descrevê-la pra ninguém acabar se identificando com ela e ficar ofendido. Basta compreender que ela é feia. E este sempre fora seu trauma.
Tudo mudou na festinha de quinze anos de Paracelso, um colega redondinho do colégio. Como sempre, sentia-se sozinha ali no meio de todos. Todos começaram a fazer pequenas apresentações - Colônico levitava a si mesmo e pequenos objetos; Paracelso exibia suas habilidades com malabarismo, que incluía facas, tochas e seus três rãmisters; Loirelinda dançava Na Boquinha da Garrafa. Pérgola a odiava. E não só ela. Odiava Trivela, a menina que jogava futebol; odiava Ruivadia, que usava um vestido repleto de brócolis; odiava até mesmo Taturana, que tinha bigodes felinos. Mas era Loirelinda quem era alvo de seu ódio mais mortal. Veja ela agora, dançando como uma calopsita com um vestido que mal lhe cobre as nádegas somente para que todos aqueles garotos fiquem sorrindo embestalhados! Até mesmo Citônio...
Pérgola se afastou, triste como um hipopótamo, sem saber que rumo tomar. Saiu do apartamento, olhando apenas o chão, passou pelo corredor, onde encontrou Trivela e Zepelin se beijando, e começou a seguir uma enormíssima fila de formigas, tão comprida que se bifurcava diversas vezes, entrava por banheiros e escadas de incêndio, labiríntica. Quando Pérgola deu por si, estava de frente para um espelho, dentro de um banheiro comprido.
Olhou-se, horrorizada com sua aparência. Como podia ser tão feia? Por quê? Sua vida era comprimida, como a camada de ozônio, por aquela feiúra imanente. Era como se todas as folhas de outono nunca caíssem e permanecessem secas em seu caule. Pérgola começou a chorar, sentindo-se dilacerada pelo próprio olhar, e as enormes lágrimas rolavam por sua face, escorriam pelo rosto até a ponta do queixo, pingavam no decote dos peitos, desciam pelo corpo e deslizavam pelas pernas até os dedos dos pés; ou pingavam do rosto nos ombros, e caíam-lhe pelas costas, escorregando pelas curvas do corpo e das pernas; algumas poucas saíam dos olhos para cima e molhavam suas sobrancelhas e seus cabelos, lavando-a completamente. O choro saía-lhe como tinta, lembrando aqueles pequenos cachorrinhos acuados, ganindo como um cisne. Em alguns minutos estava totalmente molhada, encharcada de choro. Aquelas lágrimas exprimiam toda a sua feiúra e, aos poucos e diante de seus olhos, Pérgola percebeu que, junto com as lágrimas, saíam seus ares de ogro e ela tornava-se uma moça linda, de olhos limpos, de faces brancas e cabelos ondulados; o corpo encurvava-se como vidro quente e ela sentiu-se a mais bela de todas as meninas da festa.
Não podia acreditar naquilo. Diante de si, no espelho, não havia mais aquela garota detestável, feia como catarata, mas uma moça muitíssimo atraente que piscava, incrédula, com um olhar mais sedutor do que vidro embaçado.
Voltou a festa e era nítido como, de repente, diversos meninos a olharam, interessados. Talvez fossem seus cabelos molhados, pingando em desalinho, ou o vestido que colara em seu corpo, mas a verdade é que olhavam para ela de maneira totalmente diferente do que ela estava acostumada. Ela não sabia agora, mas nunca mais conseguiria se secar, ficaria pra sempre molhada, pingando onde ia, deixando um rastro perfumado de poças atrás de si, como um caramujo. Linda e pegajosa.
Citônio entendeu o que é um OB. E um BO também.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Nostalgia

"O cheiro mudou totalmente... agora é só cheiro de jaca", disse empinando as narinas para o alto. Os comentários são diferentes e sempre os mesmos quando passamos muito tempo fora de casa (no meu caso, sete anos de coma), ou voltamos pra algum lugar da infância - isso mudou, aquilo era diferente etc e tal. Mas fazer o que, de fato o cheiro de jacas inundava a casa e aliviava o fedorzinho carinhoso da nossa cadela.
"A Filomena morreu..." respondeu-me Edvar quando notou meu gesto esperando senti-la alegre abanando o rabo até os recém-chegados na casa. Ele me guiou pelo braço até o sofá (este ainda era o mesmo) e apoiei minha bengala histérica nos joelhos.
Edvar me contou "morreu de velhinha mesmo, nenhuma doença séria. Ela sempre foi forte, né?" Concordei com a cabeça. Perguntei novamente sobre o cheiro, como que indicando que minha dúvida não era exatamente o cheiro, mas o que fora mudado para que ele mudasse junto. "Aterraram o mangue, claro - melhorou, na minha opinião. Antes cheirava a caranguejo" "Eles até invadiam a casa, quando você era criança!" "Me lembro". Edvar já devia estar barbudo.

As primeiras semanas são para se adaptar. Bengala batucando de um lado pro outro e muita pouca coisa pra fazer. Os afazeres do tato, embora quase sempre mais sensuais do que os do olho, são pequenos em quantidade. Chato era perceber que, embora estivesse com 44 anos pulsando nos músculos, minha pele me oferecia ao mundo como setenta.
A música, era de se esperar, tornou-se-me muito importante. Fazia minha aura elevar-se, cândida, acima do vulgar, como um homem de algodão, logo após o banho das seis e meia e das meias dobradas em cima da cama. No entanto, queria me arriscar.

Desejava a rua muito intensamente, e, mesmo que temesse seus poemas cacofônicos, o medo era um misto de recôndido desejo. Acho que todo medo é um pouco desejo. As profundezas das cavernas, escuras que não vemos o fundo, mas sentimos o cheiro da água calada em seus túneis, são tão misteriosas e assustadoras que é quase impossível resistir ao seu chamado, às suas brisas frias. Mesmo que de olhos fechados - como os meus - a mão busca os labirintos rochosos da mesma maneira que, presa em nossos cinismos, a mente termina por almejar nossos territórios mentais obscuros. A intensidade da luz presa numa caverna é sempre mais esplêndida que aquela do sol. Portanto, preso em minha caverna até o fim da vida, restava-me esse facho de luz proibido aos não iniciados - restava iniciar-me.
Antes que tocasse a bengala para tatear meu caminho até a rua, pensei melhor. Qual seria a impressão de não utilizá-la, pelo menos aquela primeira vez? Sair sem tê-la nas mãos como auxílio afigurava-me como uma aventura ainda mais desejável. Sair sem bengalas, ou suportes - sair, simplesmente.
O zumbido da rua começou a me sussurrar desde longe no condomínio comprido em que meu filho morava. Caminhar ali dentro ainda era fácil.
Cruzei o umbral da entrada do prédio e senti no rosto o bafo dos automóveis e o calor firme do sol da tarde - não pude segurar o sorriso que me escapou e o tremelicar dos dedos da mão. Para onde iria? Até a praça ao final da rua, que, lembrava, atravessava-se poucos sinais.
Os primeiros passos eram tímidos, quase arrastando os pés no chão, mas fui aprendendo com rapidez como caminhar naquela situação. O corpo foi tomado pelo universo, pois sentia, entrando-me pelas cutículas o pavor, o caos que rege o mundo. No entanto, este pavor me afigurou ruim, doía minhas têmporas tamanha minha concentração. Avançava como um equilibrista, suspenso nas lágrimas que se juntavam, charmosas, nos olhos. Passei a mão pelos cabelos e lembrei-me de Praga e seus violinos, assassinos de sonhos.
Então senti uma mão de menina pegar na minha.