domingo, 15 de dezembro de 2013

a gente sabe

bom, a gente sabe, né; tipo, é meio clichê aquela frase, não sei se você já escutou, mas várias coisas falam isso, filmes, séries, é bem lugar comum, que vai meio "é sempre bom ouvir que alguém te ama", mesmo quando você não ama a pessoa, é bom ouvir dela um eu te amo, ou coisa assim, é bom, nos faz mais feliz etc. Mas não sei bem se eu concordo com isso (naquela onda de que existem coisas que são mais verdadeiras quando não ditas - e é meio assim entre a gente), tipo, você sabe que eu te amo, eu não te falo isso, mas acho que você sabe e eu sei que você sabe e isso e aquilo e a gente meio que se olha (quando se olha) e sabe disso e convivemos com isso, e é "normal", você não me ama ou coisa assim, mas, tipo gosta muito de mim de uma maneira... amical (sim, essa palavra existe, é relativo a ser amigo) e meio que tem algumas regras (nunca ditas, mas que se estabelece com o olhar, né) de não ficar com ninguém na minha frente, ou evitar isso na melhor das hipóteses (se rolar não é o caso de pedir desculpas, seria ridículo, não precisa de desculpas pra uma coisa dessas, mas evita-se), coisa assim, mas fico sempre meio pensando o que rolaria se eu dissesse eu te amo pra você (ainda que você meio que já saiba), e acredito que o mais provável é estragar tudo que a gente meio que tem, vai rolar um clima estranho, vai acabar com a nossa amizade, coisa assim. Mas também (por outro lado) não é como se tudo fosse "normal" com esse mútuo discernimento de que eu te amo e não preciso dizer porque a gente já sabe e se eu disser estrago o que a gente tem, porque o que a gente tem é meio estragado já, ainda que seja só estabelecido pelo olhar e o respeito de pequenas regras (que não são bem regras, só acordos tácitos), então a gente meio que discute sem falar nada, ou rola climão em situações triviais porque existe isso e nós sabemos, coisa assim, e temos que fingir umas coisas as vezes, mesmo que nós dois saibamos que é fingimento, e fica escroto, porque eu não gosto de fingir as coisas - uma coisa é não dizer, outra é fingir mentirinhas, fingir que não percebo o que percebe-se etc. - e então meio que isso não funciona e o meu não dizer acaba por nos afastar, mesmo nessa situação amical e tácita de bons amigos, de melhores amigos ou coisa que o valha, mesmo assim, isso acaba não funcionando bem, então a gente se afasta e passa a ser fakes-melhores-amigos, sabe? Não está bem claro, mas talvez esteja dando pra entender, estou falando que é super falso, então não dá pra ser amigo na falsidade, sem uma cumplicidade uníssona, entende? E daí a gente se afasta e se afasta o suficiente (tanto espacialmente quanto temporalmente) que eu percebo que se torna um afastar pluri-verdadeiro, tipo, em todos os sentidos estamos afastados e saco que eu não te amo, porque nem sei quem você é, era só a fraqueza de dizer eu te amo, porque preciso amar alguma coisa pra que as coisas valham a pena, sabe, pra que eu queira fazer o que eu faço (já te falei, ou, se não falei, falo agora, que tudo que eu faço - ou fazia - é pra você, tem você na frente, no futuro, no objetivo, no olhar desejado), pra mim é importante amar alguma coisa, e não dá pra amar o trivial, o comum, mas, de repente, eu saco que você é comum: (esses dois pontos é meio o que eu entendo por "comum", tá?) meio hedonista, narcisista, marcada pela sua condição de classe e com pouco pensamento crítico a respeito disso, que curte umas modas meio "feijão com arroz" (sabe?) e nada disso teria problema se eu identificasse (o que eu costumava identificar) um sentido interior maior que superasse todas essas nossas (porque tudo isso que eu disse é meio super geral, qualquer um é assim, né) normalidades, humanidades, fraquezas vis, mas não, de repente não, de repente é ordinário, você é comum e sem condição alguma parece uma pessoa mais viva ou que me torne mais vivo. Isso é forte, me desesperou. Você pra mim era o amor redivivo; um cristo; um desespero de vida verdadeira clarificado na presença de um ser (personificado) - sim, tudo isso, você pra mim era tudo isso e não minto quando digo isso. Mas agora vejo que não - abro os olhos e vejo que não (ou, talvez, não mais, mas dá no mesmo): você é comum, e isso me desespera, porque agora o que eu faço não tem mais sentido último, nem olhar desejado, agora estou só, agora estou sem objetivo e tenho que lidar com isso sem metafísica alguma - que bom, alguns vão dizer, num sentido terapêutico para a minha pessoa; e eu, em algum nível concordo - você era a minha fonte de juventude, mas cansei de ser jovem, de ter espinhas e voz fina e barba ruim e cara de moleque, chega, eu era totalmente neurótico, acho que, em muitos níveis, essa foi uma primeira boa etapa. Mas isso não redime sua descida ao plano do real, isso te diminuí sobremaneira e a culpa disso é mais sua que minha, porque você quis ser normal - nunca foi, mas quis, quis descer, quis gostar de modismos fracos, de bobagens vis sabendo que não tinha sentido algum, e sua descida foi, portanto, deliberada da maneira mais canhestra que existe, e acho que foi isso, pra além da descida, que me fez sofrer e perceber essa vileza.
Ainda resta um problema: como achar meu colo perdido, aquele dengo, aquele chamego que só pode existir quando se espera muito mais que um amor comum, que um carinho baseado num desejo sexual praticado até sua saciação? Não quero ser objeto, mas unido. Você entende?

sábado, 7 de dezembro de 2013

Alice

Nunca te ouvi ou vi, alice
fui invadido, só isso
Você na pista de dança
É um beijo secreto
marca de batom
sintoma de doença
roçar de roupas durante a música
calma e gostosa e obscena
olha olha olha olha
orelha de arrependimento
pentelho anelo do possível passado
mas a gente sabe como a música acaba
você olha pra baixo e entra no buraco
você persegue o futuro
eu te olho e te escuto
eu sou seu, alice
cadê você?

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Me praia

Dedico o desleixo
de barba malfeita e sorriso duro
Juro que estou sério sendo sério sendo sério sendo
Olho o lado

Dei pinta

Revelei-me

Relevo
Todo ereto duro reto
Tudo teto treco trecho
Todo eu seu meu
Tudo sinto sento certo
Todo dentro destro metro.
Sem crônica

a vida desleixada já basta
A cara de babaca babão
Seu babaca babão.
Não se mata, sut -
não se mete, cara
- desleixa, afrouxa, corta o cabelo de um jeito diferente
eu ando de bicicleta
lembra dela, andar de bicicleta
e nos esbarramos no metrô.
Sem crônica

(tem bichos mortos boiando
na baía,
onde mais seria?
Os aviões pousando varrem
fazendo onda nas luzes nas fezes foscas)

Semi-sônica
onda
Corta o cabelo
passa varrida como me ignorando
mas volta como já fez antes
E não me olha
Tudo deliberado, claro
Sem crônica
Eu e as júlias no corredor
Vejo mais escuro por conta do óculos por contra dos meus olhos escuros do john frusciante na cabeça
De noite a barca velha martim afonso desliza no som da guitarra dos aviões do mar negro e cheio de bichos mortos da guanabara

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

meu medo

medo mole
segurando esse corpo tenso
trincado
entrincheirado modelo
alimento medo
meu meio, meu super eu
meu medo melado de seu

medo mole
suando as mangas das blusas
nojento
enlameado futuro
alimento dedo
meu meio, meu super eu
meu medo melado de seu

medo mole
chorando esse húmus venal de ser
clínico
fungada mucosa
alimento rosa
meu meio, meu super eu
meu medo melado de seu

se eu existi como na memória
me impeça de afundar na inglória do medo
segredo com segredo
como contas de uma dúzia de conchas cheias de oceano
mergulha

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Abarca

A barca a balançar
deixa o ritmo amargurado;
Ok, a vista é linda,
mas nada mais brega que uma vista linda
que a baia de Guanabara e as montanhas do Rio banhadas de luz de final da tarde depois de uma longa chuva, lavadas de ciano, a leveza do branco azulado do céu com o azul acinzentado do mar; brega, poxa.
As luzes da cidade começam a se acender,
os postes se preparam pra noite
Sete da noite
Filmagem noturna cansada
Essa viagem é só amargura.
E a cura está nela
Na água gelada
Funda da Baía de Guanabara
Mergulha

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

mazes of sleep

sweet
eu e você num beco nosso só nosso que mal existe só na gente
i fall asleep
sweeping dreams from my certain regard
réves toi
have you got the guts?

sweet
eu e você somos só nós dois olhando um pro outro, relaxa
não tem nada mais que isso
feel the same as i do
escolhe, poxa; relaxa
keep calm
e chega de recalque, né?

wanna be yours, sabe?

oceano longe e fundo demais pra gente
eu e você distantes de tão prematuros, tão imaturos, tão duros e indecisos
dentes de leite da frente
você e eu
não sou eu nem você
é um céu e um breu
um véu
você e eu
nós somos um só pássaro
e nenhum ninho
entende?
nem eu nem você
nem ninguém, caralho
pode achar mais fundo, mais doce, mais sonho, mais olhar
que o profundo poço fundo
i'm always before you
call my name
je suis
seu céu célere sempre, ceci
marina, marina, laura
i'm all now
mortal
marina, marina, júlia
acesso interminável de memória
mergulha

(O ano que passa tão longe de mim
e que enriquece o solo, mas não o mundo
mantém-se afastado como um computador)

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

lírio entulho

nulo
entulho
breu
todo o mundo em obras
fumaça, tinta, madeira, alvenaria vermelha, espigões de vigas metálicas febris rangendo dinossauros
O mundo em obras como um parque temático
ela branca calada
pelo meio do passeio
usa óculos
avenida descascada
ruína ao redor
lights slightly like blue
ela levada leve
lights slightly like yellow
ela levada
lights slightly like you
todo o mundo em obras
vidros sujos sem reflexo e espelhos, água morta de cais, aquele cheiro de maresia suja, centro da cidade ao domingo, prédios muito altos, todos em ruínas, em obras, em vida média
O mundo como um parque industrial
ali
a flor
linda
branca
mergulha

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Estevão Esteve

O doutor o olhou de cima a baixo depois do check-up de 10 dias de exames físicos, sanguíneos, de desempenho, de urina, psicotécnico, de vista, de matemática, de acidez estomacal, de toque, de fezes, auditivo, odontológico, limpeza de pele, urológico, búzios, completo, tudo completo, tudo muito certo e metódico, tudo preciso, toxinas, vitaminas, benzinas, hormônios, libido, psicológico, e por cima dos óculos de meio-aro quadrados e grandes disse num tom ansioso e levemente sibilante, como que carregado de uma sensualidade mórbida: apesar de todo o procedimento posso concluir com absoluta certeza medicinal que o senhor está doente e a doença deve levá-lo a morte em pouco tempo; simplesmente não pude deduzir que doença(s) é/são essa(s). Como assim, ele perguntou meio intrigado depois daquela maratona gigantesca de exames não podiam identificar a doença? Não é nada que conhecemos (nós a medicina, eu digo), disse Dr. Benway quase sorrindo por trás dos seus óculos, a barba negra perfeitamente aparada como que tremendo, ciciando alguma coisa, você deve voltar pra casa e tentar viver como os outros; mas como assim, quanto tempo eu tenho de vida, disse ansioso pra caralho, porque não sabia o que seria certo dizer numa ocasião daquelas, em que você acaba de descobrir que está doente de morte e não há remédio possível; não é certo: dias, meses, talvez anos - quem poderá dizer? É uma doença nova, totalmente ausente da literatura medicinal, não dá pra prever os efeitos possíveis, nem receitar qualquer remédio - só sugiro que tente seguir a vida com a alegria de sempre: é impressionante como alguns doentes terminais ainda conseguem se relacionar seguramente com seus colegas, inserem-se na sociedade, no mercado de trabalho, com uma alegria realmente contagiante: é mesmo a sua própria consciência de brevidade que os anima a desfrutarem bastante cada um de seus dias restantes - e alguns ultrapassam bastante a previsão dada pelos médicos, muitas vezes... O doutor parecia estar excitado por debaixo das calças. Não há mais nada que você possa fazer por mim? Temo que não, respondeu comicamente o médico.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Rockland

eu não estou sóbrio
quando a escada se desfaz em telhado, vazio, inteiro, sacada para um vale cheio de neblina, onde os monstros do crepúsculo despertam como anjos da noite, sagrados músicos iluminados por postes cheirando à maconha e perfume, alisando-se com olhares e cerveja, prevendo prevendo prevendo

eu não estou sóbrio
quando a escola é feita só de repetições, verbetes, conceitos, fórmulas, cifras, símbolos, certezas, decorebas, amebas, átomos, quando a flor não desabrocha sem sentido, sem só sentir-se flor, quando eu tenho que explicar porque eu te olho mais que o mais e te desejo ardentemente sem nunca nunca nunca demostrar um pentelho disso

eu não estou ébrio
quando o meu cabelo se desfaz em cores, cortes, texturas, desvios, meu rosto se desfigura em sorrisos, barbas, espinhas, navalhas erradas rasgões buracos, sebos, sobrancelhas, cravos, gorduras, pelos, peles e mais peles, quando sou só pele e superfície e não danço só com as pernas, que se transformam como uma pajelança, atiradas do alto de saltos, travestis comendo fezes nos cantos

eu não estou ébrio
quando eros me dá seu arco, sua flecha, seu estalo e diz lambendo meu ouvido num sussurro quase inaudível não fosse a minha ejaculação precoce - semelhante ao ribombar do motor de um ar-condicionado quando reata no tranco (a geladeira também faz isso) no meio do sono - que eu estou um fruto apodrecendo a cada dentada

eu não estou lúcido
quando eu não me lembro de quase nada que me marcou ou me marca, quando eu te vejo, desejo, mas sou incapaz de fazer qualquer ato a respeito, desrespeito a mim mesmo, me atrevo a não me atrever a nada, fico imóvel, impassível, impotente, inimportante, tão drástica e dramaticamente inútil que é redondamente impossível - seria clínico, inclusive, se não fosse impossível - que alguém, você, note qualquer perturbação no ar, qualquer leve suspiro afetivo - é um zumbi que caminha, escutei, um zumbi que caminha inteligente

eu não estou lúcido
quando me perco na sua casa, me entrevo num caos de ladrilhos na parede, de tacos no chão, de cozinha sala quarto banheiro, de desenhos rabiscados, de luz fraca, cômodo cheio, cheiro enjoativo, bebida à rodo, fumaça de cigarro, reflexos na tevê, garotada falando alto, falando de cinema, olhar 43, gente desenhando retratos de gente que posam sem estar posando, são todos sempre poses, lindos anjos de juventude frágil espalhados como pétalas mortas sobre um chão de madeira

eu não estou bêbado
quando me correspondo em silêncio com a sua respiração pra cima e pra baixo, quando o mínimo toque levanta arrepios na espinha, erguem o corpo e é como se tivesse a sua vagina na minha mão e tremo, tenho calafrios enormes, clínicos, talvez, e me reergo herege ereto eriçado errado fraco aliviando minha comunhão secreta em versos, ou em sonhos, ou em tétricas tentativas vãs de ser mais alguma coisa a mais, como um possível poeta, um poetinha, um poeta menor, quando me imagino um rock star, admirado, e as gengivas se torcem na lascívia noite dos olhos fechados, de todos os olhos seus fechados

eu não estou bêbado
quando você dorme do meu lado e eu te ataco calado com o martírio sacrificial dos brochas e todos se imaginam em outro lugar, chamam isso de sonho, e nele só queremos, somos feitos de desejos primevos, de névoa e dança, de vermelho amargo, de réstia fagulha de jazz, de moderna atração pela cidade, de labirintos de palavras e livros, de viagens de verdade e viagens de mentira, de imaginados amigos, de virtuais coleções aleatórias espetaculares, de descaminhos, de desvios pelo fio da navalha clara do sexo jovem, de torrentes e mais torrentes de recalques mútuos comuns gerais (imagino) santificados pela matéria esgarçada do olhar mais puro de um eu para um outro você

terça-feira, 29 de outubro de 2013

RAPsodisséia d'espaço

Outside of a dog, a book is a man's best friend. Inside of a dog, it's to dark to read.
Groucho Marx

Um ritmo timbrado: é isso. Não, não tenta me entender só de me ver, me ler ou o caralho que for, só leia, veja (ou que caralho for, só execute, esbarra comigo, vamos dançar). Um ritmo timbrado, é disso que eu quero falar, desse ritmo que tem num olhar, seja ele apaixonado, admirado, ou triste, prestes a chorar: eu estou prestes a chorar te olhando, você saca isso, você sente isso, esse ritmo de vida que tem alguém que sinceramente pode te escutar e se sentir simples e singelo (singela força do universo, tão grande, e ele - você, ou eu, ou - tão pequeno) a ponto de falar: chora.

Não, não vou embrenhar nesse matagal, esse lodo, essa melação, sabe: aquele limiar lindo, corda bamba, do brega e do folk. Ouve isso MÚSICA. A Clarissa acabou de me mandar.

Gente, hoje é o meu aniversário - uma névoa se levanta na cidade quando olho pela minha janela (se é que você me entende). Eu me embrenho nessa névoa, vou ter que cantar junto:

Sincero enterro, o nosso
um poder mágico, você me abraça
você, névoa, me abraça
você, névoa, me abraça
você, névoa, me abraça
embaçado fiquei

Quem foi que enterramos?
Passado sádico, esse
desculpa
desculpem todos
a minha falta de tato
a minha falta de graça
sem-graça
sem-sal

Sincero blues; manda o blues, Breno: Canto Triste no seu melhor arranjo.
E daí a gente voa, sideral, bichos num foguete, o cachorro foi o primeiro a ver a terra do céu, ele sim, o primeiro, que será que pensou? Onde andará esse cachorro? Nós enterramos ele na neblina, no sonho infinito, no vagar devagar agora sempre. Tadinho nada.
Uiva
Uiva
Uiva, palavra linda, uivo, uivo: vermelho amargo - simples vermelho amargo, é isso! Achei (já tinham achado antes, vá lá): o ritmo timbrado é vermelho amargo.

obrigado, até a próxima

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

caravela

estava nela a caravela nela
a cara na chuva, a chuva na passarela
era bela a tempestade,
mela
tons de chuva em aquarela

nossa nave era uma janela
o inferno na terra
no mar o fogo, a chama, estrela
o verso gritado de um trovão
chão
oceano lambendo vagas,
língua nos lábios dela,
aqueles lábios
grandes lábios
fundos aliados, profundezas da perna

são ondas os olhos dela
aquela dita antiga ressaca
telúrica américa ereta
o mastro da caravela
aponta o teto numa prece
torce aquece espreme a água sua
sua vela estufa profana
duas velas pro céu aceso

desprezo no canto da boca do mar
assassino ancestral, irmã, incesto monstruoso
polígona estrutura
antígona
morre e fratura
cai no deque, dura

perdura!
vive! avança!
frígido olhar sem esperança,
a tormenta te grita
a onda te lambe, língua vaga, sem dança
ah! pau duro quebrado
ventos frios do seu lado
chuva chupa a proa, esse brocado
de trás, de frente, de lado

sem força,
sem corda,
sem vela,
sempre a força primeva
perdura na vigília
foi-se o sonho apaixonado
veio a insônia eterna

Seu poema (?) pouco obsceno

(seu mesmo, você sabe)

Eu te colocava nos moldes
(se disse isso, isso se podia)
Eu te metia nos conformes

Bati essa dura barra braba
No meu carro não
Desci a vida inteira nessa
contramão
Eu vou
Eu vou ser feio pra sempre

Eu metia
No reverso, do avesso
mentira minha, o inverso mesmo seria, né?

Não sei fazer isso (o "isso" é pra soar ambíguo mesmo) direito, você sabe, sou péssimo nessas horas de vamO vÊ - te olhava mais daí do que de cá.
Mas dava pra me olhar mesmo assim, digo, me encarar com a cara limpa. Por que a gente cismou tanto, se...? A gente tem mais espaço sem se ver, isso é certo; mas também, quem não tem? O sufocamento também dá prazer, não é?

Sempre esse sussurro
(e fique certa que sempre que ecoa esse esse pelos meus lábios vêm os seus esses nas minhas mãos, plurais e outros sexos, nesses sibilos sós)

Mas não exagere, não é nada demais
eu sei lá
eu sei lá
não tô nem aí

Também não se avexe
Depois de tantos tantos - que resta disso?

(não sei mesmo)


domingo, 15 de setembro de 2013

angelheaded hipsters

Sim, eu acho que eu sei...,
mas não tem um algo te consumindo, maior que o desejo, mas menos que o drama? Finalmente, que diferença que faz, no final? Esses casais nos ônibus, cheios de anéis, cheios de anos, cheios de ânus, cheios de si, beijinhos a parte, não são reais? Realmente, isso importa?
Mais respostas: atravessemos eternamente (como dizer a letra tê eternamente?), furar um vidro infinitas vezes sem que ele nunca quebre.
Você olha pra esses caras, arrumadinhos, e pra essas meninas, de saínha, coxas lindas depiladas à mostra, todas se querendo, e aqueles adolescentes cracudos putrefatos de tanto se picarem caídos na sarjeta, e você pensa que droga é foda, pelo menos essas drogas são foda, e vira os olhos pras coxas lisas ou pro cara fortinho de camisa social, mas aqueles meninos/crianças no chão estão gemendo, doidos de ácido, cheios de pó no nariz e no dente, você pensa que tem todo tipo de ácido pra fritar a cabeça e lembra do Syd Barrett ou outro, e vai dar mole pro carinha ou passar de leve a mão na bunda da outra, ele curte, ela geme, você tem dedos rápidos, raspões precisos, e aquela criança no lixo começou a meio que berrar, uns colapsos nervosos, convulsões, os olhos bancos vermelhos viram, e você lembra que doce inteiro pode ser pica de segurar a onda, MD demais é sinistro, bala demais também, e volta pra boca suja de batom transparente, pras mãos por debaixo da roupa, pro pau/mamilo duro, pra cara de pateta, pro esqueci seu nome mesmo, pro foda-se, tô precisando trepar, caguei, e de repente aquele bebê escroto é um troço amorfo na vala imunda, tem sangue saindo do cu dele, tem vômito na boca, as pernas estão imundas de sangue que escorre como a puta vida escrota desse(a) imbecil que você não acredita que pode existir, que é um merda homofóbico fascista viado liso nerd tarado broxa, e que você nunca mais vai misturar maconha com bebida...
Pois é, acho que eu sei, e o que eu penso daqueles casais do metrô, ou do ônibus, tanto faz, é que eles são fofos.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

O Boxe

Todo o seu universo é um boxe de chuveiro. Ali vive sempre desde sempre e, até onde pode imaginar e teorizar, para sempre. É só. O Boxe é um quadrado de 1,20 metros, quatro lados (L1, L2, L3 e L4) determinam paredes cobertas por azulejos coloridos também quadrados de 10cm; dividindo L1 em 3 partes e L2 também em 3 partes traça-se uma reta (c) entre seus terços, reta que forma, junto com os segmentos de L1 e L2 a partir da aresta L1-L2 um triângulo retângulo, claro. Essa reta diagonal é a Cortina, de forma que a Área=1,20m² - 0,08m²= 1,12m² é todo o espaço habitável do universo (fig.a). A Cortina estende-se do chão até uma altura(h)=1,92m e tem desenhos repetitivos seriados de ondas senoidais que formam pares opostos entre si que se arrastam verticalmente, entre cada par, um círculo (fig.b). Na aresta L3-L4, a uma altura de 1,85m, há o Chuveiro de metal polido que exuma um jato pluridirecionado de água potável em intervalos e intensidades variados, que cai ao chão e escorre pelo Ralo circular de r=2cm. A água varia de temperatura, sempre no gradiente de 1°C à 50°C, também aleatoriamente. O Boxe tem h=2m, de forma que as paredes L3 e L4 têm, cada uma, exatos 240 azulejos brancos, verdes e azuis, mas sem nenhum padrão aparente de ordenamento; o que determina um V=2840L, entretanto, quando tenta enchê-lo, posicionando seu pé sobre o Ralo de forma a tampar o fluxo de água, deve considerar 1. o seu próprio volume a ser deduzido do Volume Total do Boxe; 2. o fato de que a água começa a escorrer quando atinge h=20cm, metade das suas canelas, de onde se deduz que há um espaço além da Cortina por onde a água escapa, possivelmente um banheiro. De fato, a existência do banheiro pode ser certificada por 1. a fosca transparência da Cortina, que deixa revelar alguns pequenos detalhes como pia e privada; 2. a Cortina não cobre toda a altura (h=2m) do Boxe, deixando livre uma fresta de 8cm entre sua haste e o teto, pela qual a sua observação (i.e. da fresta), quando escala as paredes criando forças opostas com as duas pernas (de preferência quando o Chuveiro está desligado), revela a continuação do teto até o horizonte. A possível existência do banheiro não é somente uma dramática ampliação do universo, determinando novos limites para este (i.e. o universo), mas traz em si a possibilidade de outros espaços além do banheiro que poderiam ser visualizados do banheiro, ou seja, a descoberta do banheiro amplia o universo ao infinito. Entretanto, apesar dos fenômenos 1 e 2 colaborarem para a existência do banheiro, revelando então que o universo seria maior que o Boxe, não pode deixar de avaliar que é possível 1. as imagens desfocadas de pia e privada visualizadas pela Cortina estejam impressas na própria (i.e. na Cortina), colaborando com o desenho de curvas seno e reagindo aos raios luminosos como um holograma, de forma que assemelhem-se a uma imagem formada atrás da Cortina, mas na verdade estejam na Cortina; 2. que a extensão do teto vista pela fresta acima da Cortina seja um espelhamento do teto do interior do Boxe, criado (i.e. o espelhamento) pelas próprias partículas de água e gases presentes no ar, tornando assim impossível visualizar, de fato, o Possível Banheiro. Ainda restaria esclarecer o destino da água que escapa do Boxe quando atinge (i.e. a água) h=20cm. Uma reflexão mais apurada nota que também a origem da água pelo Chuveiro e seu sumiço através do Ralo determinam um sistema aberto. É necessário, portanto, reconhecer que, banheiro ou não, há algo além do Boxe. É fácil descartar a possibilidade de que a água que desce pelo Ralo e que escapa à h=20cm (supostamente por debaixo da Cortina) seja a mesma que flui randomicamente do Chuveiro, uma vez que a água que chega pelo Chuveiro é impecavelmente limpa e potável, enquanto a que escorre pelo Ralo ou escapa do Boxe à h=20cm está quase sempre impura, quando não totalmente contaminada por excrementos (e.g. fezes). A não ser, claro, que o Chuveiro possua algum sistema próprio de filtragem interna ainda não revelado.
A ideia do Possível Banheiro assombra, 1. pela já mencionada ampliação infinita do universo; 2. porque, a não ser pelas parcas imagens difusas de privada e pia presentes na Cortina, nunca viu um banheiro, nem mesmo uma privada ou uma pia: as supôs. Pensou (já não mais pensa) que se pôde supor tal Ideia de Banheiro, ela tem que existir em algum lugar - mesmo que não imediatamente adjacente à Cortina - uma vez que não se pode conceber coisas jamais vistas (e.g. um espectro de cor que ultrapassa as cores visíveis). O mesmo raciocínio poderia aplicar sobre outros objetos que supunha poderem existir, uma vez que essas Ideias compunham um universo muito maior do que o Boxe e seus 2840L (e.g. outra pessoa).

sábado, 31 de agosto de 2013

Italianos 2

Florença, piazza della signoria, peoplewatching:
Não vejo italianos. Sentado, ao meu lado um tiozão japonês com sua mulher perua e pai idoso de chapéu branco e garrafa térmica na mão, do lado deles 4 rapazes alemães estilosos e playboys um deles com o óculos escuros fellini que eu estou procurando, na minha esquerda uma velha chinesa muito velha me pergunta em suposto inglês se a água da bica ao lado é para beber, tento explicar em inglês, ela não entende, seu suposto inglês é sordidamente um daqueles sons nasais chineses, aquelas vogais que só existem no oriente, ela aponta pra placa, eu explico de todas as maneiras que ambas as bicas são a mesma água e que pode, sim, pode beber, sim, both are drinkable, yes, the two are water, water, for drink, drink porra, faço o gesto. "ãinm?" Eu entendo: quis perguntar 'the same?', yes, the same. Ela sorri e agradece e vai beber água. Espanhóis, sérvios, árabes, coreanos, japoneses, portugueses, americanos, brasileiros, italianos!
Eu acho isso muito curioso, pensar em cidades e espaços criados para o turista, sua população só passa, atravessa. Paris no verão tem mais turistas que moradores. O que é ser parisiense então? Veneza afunda sob o pé de tantos turistas e a Basílica de São Marcos praticamente não é mais usada para ritos religiosos, tem uma fila imensa na frente, dois italianos grosseiros na porta, um recorte de pano TNT bege que eles vendem por €1 para mulheres que não tenham nada para cobrir seus ombros nus em respeito a casa de deus que agora tem um trajeto circular determinado por aquelas fitas elásticas de controle de filas e que não abriga mais nenhuma missa.
O que são guetos?
O Epcot é um parque que abriga o mundo inteiro. Muito legal. Lá também tem uma piazza de São Marcos. Em todas as cidades que já fui na vida tinha Mac Donalds. É muito estranho pra mim o sucesso do Mac Donalds. Não é como outras empresas transnacionais globalizadas. Não é, sei lá, a Coca-cola. A coca é só uma bebida de sucesso com uma ótima propaganda. O Mac Donalds é um tipo de comida chamada de junkyfood, comida nojenta, comida de porcaria, eles se dizem isso, anunciam péssimos e caros sanduíches, vendem sanduíches ainda piores e mais feios e mais junky que os anunciados e todo o mundo gosta. Em Paris tem um em cada esquina, os parisienses, sejam eles quem forem, aparentemente amam o Mac Donalds e tem, inclusive um apelido carinhoso, MacDö'.
Acho que esse é o futuro da democracia globalizada da política de minorias.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Italianos

Turim, via garibaldi, flaneur, peoplewatching:
Óculos escuros pretos roxos dourados mudam de cor. Regazzas de belos cabelos curtos pretos cacheados e/ou ondulados olhos pretos pele clara vestidos pretos seios lindos botas pretas bolsas de couro colorido. Bicicletas amarelas vintage verde musgo e onduladas. Homens fortes nariz forte gordo máfia ferrari camisetas polo coladas estampas horriveis gola pra cima (como eu comumente chamo estilo neymar) boné vermelho camisas sociais listradas quadriculadas cortes curtos cabelos curtos penteados cabelos longos presos em rabo. Tipos bregas. Madonnas gordas mammas mesmo mamas fartas. Escolásticos em ternos claros camisas claras gravatas claras. Cigarros finos. Crianças imitam pais falam alto camisas de time tênis coloridos imensos meninas de vestido calça legging preta e/ou rosa. Gays mais gays. Bronzeamento artificial. Jovens tatuados topetes enormes com roupas jeans: bermuda jeans pescando-siri jaqueta jeans camiseta social jeans-claro.
No alto, nas janelas dos prédios do século XVIII, fotos de atores e atrizes do cinema italiano entre os rococós de anjinhos barrocos das fachadas.

sábado, 24 de agosto de 2013

sobrando tempo

Ele fazia carinho no rosto dela, suave como em um passarinho
não vamos fazer isso
Se olhavam nos olhos pela memória, aquela saudade serena
não, não vamos.
Calafrios na nuca e nos braços
será outra coisa.
Ela fechou os olhos sentido as mãos suaves no seu rosto, os dedos nos seus cachos ruivos. A outra mão, lentamente pelo seu braço direito... O que queria?
ai...
Calafrios na ponta dos seios
Os dedos dela o buscavam e seu fio de deliberação tentava se impedir de ceder só que mais ardentemente queria. Não sabia se queria, mas queria como adolescente...
Sentia a respiração dela como a sua, como um corpo, como colados com os seus, mas não estavam. Olhava o rosto lindo e triste
será outra coisa, somos outros.
Ela abriu os olhos tão triste

terça-feira, 13 de agosto de 2013

grandes esforços efêmeros

Estes textos foram escritos para integrar o programa da nossa peça Sobre Troias (realização do grupo TARJa e Teatro Terceiro Vetor, com patrocínio da Unirio e Ministério do Exército) que esteve em cartaz no Forte da Urca nesses últimos dois fins de semana. Por problemas nossos, não conseguimos publicar o programa, que trazia outros diversos textos escritos por atores, diretores e toda a gente envolvida no projeto. Como deu algum muito trabalho escrever esse material, virei algumas noite e coisa e tal, decidi postar, pra ter alguma (mínima) divulgação:


quando um mundo está pequeno
LONDRES - Morreram ontem nove milhões de combatentes, ingleses franceses alemães italianos húngaros austríacos turcos sérvios muitos nós. Todos eles perdidos em um enorme labirinto de túneis e fossas que rasgaram toda a europa.
As fotos falam mais que mil palavras. As trincheiras permanecem, enchem-se de pessoas, de soldados, de corpos, de água. As novas metralhadoras automáticas agilizam as nossas mortes, apressam a nossa guerra, dão ritmo ao monótono soar das criaturas lancinantes. A marcha dos Aliados sobrepuja os Impérios, um mundo e um ciclo se fecham e o século dezenove parece, finalmente, terminar. Aqui. As fotos falam mais que mil palavras.

final dos tempos?
BERLIM – Depois que somos exterminados alguma coisa acontece com a gente. Foram descobertos pelas tropas aliadas campos de extermínio de prisioneiros, a maioria judeus, poloneses, homossexuais e ciganos. Lançadas, mergulhando sobre o Japão, little boy e fat man incineraram 220 mil vítimas, a maioria civis. A partir desse dia, a guerra tornou-se um estado perene ao estar no mundo: estamos em guerra contínua, com maiores ou menores conflitos, armados com o que alcançamos com os dedos.

a morte de um deus
TOQUIO – Todos presenciamos os violentos bombardeios das vilas, a fome, a falta de recursos, a destruição de Hiroshima e de Nagasaki, a invasão da Manchúria e a tomada da Coreia pelos soviéticos e americanos – a pose de Stalin, Roosevelt e Churchill na foto em Ialta – assistimos o singrar da esquadra real nos nossos próprios mares, mas havia ainda algo por presenciar. Chorei ao escutar nesse 15 de agosto de 1945 a voz divina do nosso imperador pela primeira vez na vida. O sagrado vinha pelo rádio. O maior símbolo da nossa derrota eterna é quando morre a eternidade.

stop waring
WASHINGTON – Uma cortina de fumaça laranja encobre o horizonte e as matas densas, sentimos o corpo coçar como uma alergia e os pêlos arderem como num suspiro; nesse tempo, no tempo de um suspiro, o fogo nos consome os olhos as roupas os cabelos as unhas as vias e sentimos o perfume da nossa pele se evaporando, esfumaçando e descolando lentamente dos tecidos, como um pano velho, como uma geleca amorfa e fedida conforme percebemos que não estamos morrendo nem queimados nem alvejados nem asfixiados, conforme percebemos que nem mesmo estamos morrendo.

Graças no Deserto
SÃO PAULO - Hoje o presidente Bush foi visitar as tropas no Kuwait para o Dia de Ação de Graças. Foi o segundo dia seguido da operação chamada de “Tempestade no Deserto”, os jatos americanos fizeram chover fogo nos esconderijos subterrâneos dos iraquianos resultando em imagens incríveis.

a liberdade do medo
SARAJEVO – Em estados de sítio, de guerra, de calamidade pública, de catástrofe, nota-se o aumento significativo do medo da população, o seu confinamento deliberado em seus apartamentos. Nessas horas negras de instabilidade social, em que o Estado quase não existe, em que o genocídio é permitido, em que as etnias se dividem, surge aquela figura do pai, do irmão, do tio ou primo que ousa sair de casa, cruzar a rua e correr até um supermercado, até uma farmácia conseguir suprimentos com os ridículos centavos que restam das economias. No mínimo conseguir água. Esse trajeto é talvez o momento mais sublime da sua vida: consumido pelo medo, você avança, rápida e atentamente pelos atalhos conhecidos, você se depara com os corpos de outros como você e abaixa velozmente a cabeça – uma liberdade te invade, a liberdade do caos, a ternura da brutal luta pela sobrevivência, nada mais: o medo te liberta qual força primitiva que acende no fundo da medula e te guia de olhos abertos, ouvidos atentos e quase um sorriso no rosto, como um maluco por entre os destroços.

guerra ao terror
NOVA IORQUE – Quando treinamos por meses e viemos para cá, me imaginava, como os combatentes de outras guerras, entrincheirado, atirando contra o inimigo, invadindo instalações militares, perseguindo terroristas malignos, revoltados ignorantes que ousaram atacar meu país. Aqui, eu tenho que cuidar do trânsito em um cruzamento movimentado, uma senhora se aproxima, me abraça, me comovo, a abraço de volta, ela aperta um botão e nos explode e eu morro; devo checar os carros que passam pela estrada, faço sinal para ele parar, ele avança até nossa guarita e nos explode e nós morremos; temos que ocupar um bairro da capital, nós bombardeamos os prédios por três dias seguidos com mísseis tomahawk, eles se rendem, entramos pela manhã, todos correm, como kamikazes, como zumbis e nos explodem e nós morremos.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

o lado da tarde

Toda tarde toda tarde aquilo. Vinha caminhando até ali, repetia isso com a perseverança da brisa do final da tarde toda tarde. Era imaginação ou memória. A casa era pequena, numa cidade pequena onde se caminha para ir aos lugares ou vai de bicicleta, aquelas bicicletas velhas, sem marcha, aquelas cidades sem ruas asfaltadas e parca iluminação pública. O menino da casa adorava aquelas tardes e aquela repetição de todas as tardes. Não havia surpresas, mas havia expectativas, como num aniversário que vem todo ano no mesmo dia, mas sempre ansioso. Era aniversário todos os dias, cada dia um novo aniversário e cada aniversário mais e mais frequentes os olhares, os não-dizeres, os abraços, os olhares novamente, mais coisas não-ditas, mais abraços, de novo novos olhares, outros mesmos não-dizeres, mais abraços longos de olhos fechados. Estar junto era como escutar um álbum inteiro junto com alguém: poucas falas, muita troca e um espírito jovial de férias, como voltar numa viagem de ônibus longa de noite com alguém do seu lado apoiando a cabeça no seu ombro ou ouvindo a mesma música que você, como um cafuné. Vinha a chuva, molhava as casas, as ruas faziam poças de lama e sempre vinha a hora de se encontrar, apesar da chuva.

E então, houve aquele dia, aquela tarde, que eles foram no parque, compraram pipoca e foram na roda-gigante. Em tempos em que existiam rodas-gigantes. Fazia muito tempo desde que tinham ido numa roda-gigante, os dois não lembravam bem quando, muito tempo. Compraram a pipoca e foram, os únicos a irem na roda-gigante. As lembranças desse dia são turvas, porque não é fácil distingui-las das invenções. Com certeza subiram sozinhos, o medo, agarrando ao braço do outro, a parte mais alta da viagem, a viagem de um lugar para o mesmo ponto, uma volta, uma roda. Lá, na parte mais alta, subitamente parou e alguém gritou lá de baixo, quando as luzes da parca iluminação pública do fim de tarde apagaram, que a roda-gigante tinha parado e a luz caído. A brisa do fim de tarde vindo como em todas as tardes, ali no alto era mais fria, o abraço de todas as tardes, mais apertado, mais assustado, e a chuva, que começou um grandes gotas geladas, mais supina. Esperaram.

Devem ter comido a pipoca toda, ou jogaram o milho molhado lá do alto em tom de brincadeira ou de medo ou de protesto, reclamação. Jogaram. A chuva molhava os seus cabelos que escorriam como se chorassem, com o dia se apagando. Falaram, mais do que o normal, porque ali em cima não havia mais o que fazer senão conversar, e falaram de muitas coisas, falaram da chuva, de coisas pequenas e insignificantes e que se amavam. Um disse pro outro ou o outro pro um, ou os dois. Não soou grandioso, porque sabiam o que viria depois, mesmo que ficassem juntos, sabiam o que viria depois de ficar juntos, assim como sabiam que, uma hora ou outra, a roda gigante, ainda que agora parada e parcamente iluminada pela vermelha luz do sol se pondo, iria voltar a rodar e descer daquele topo ao chão.

Então, assim que tocaram o solo, pensando em se secar, perceberam o quão absurdo aquilo soava, porque estavam encharcados, os cabelos escorrendo, como se derretessem, molhados molhados e mais um olhar longo lânguido lívido de uma vida inteira de uma tarde.




A partir de Do Outro Lado da Tarde, de Caio Fernando Abreu

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

radiografia

Não me lembro bem quem foi que disse que o esperma é uma prótese efêmera. Algum poeta, mas não me vem o nome. “Esperma é uma prótese efêmera”. De qualquer forma, é uma afirmação idiota. Não faz sentido algum.

“Infinite space, is there such a place?”

Existe um tipo de honestidade que é bem sublime: enxergar uma menina, tão linda, tão incrivelmente pra cima, linda mesmo, chorando de amor por um rapaz que não sei se a ama de volta ou não, com certeza gosta dela, já ficaram, mas talvez ele não seja apaixonado por ela, enquanto ele permanece sério e ela segura-lhe os pulsos, triste, falando com uma voz que não emprega normalmente, ninguém a escuta assim, ninguém a vê dessa forma: é exclusivo para o seu amor; ela quase lhe implora que escute o quanto ela se afeta pelas coisas que ele diz, o quanto o seu olhar, a sua aprovação – aprovação é uma palavra forte, mas a sua boa vontade em relação ao que ela pratica – é importante para ela, o que ela sente quando ele toca violão, ou quando ele ri de algo que ela diz. Isso é de uma honestidade quase sobrenatural, uma proximidade infinita – é invejável a qualquer um que passe pela angústia de enxergar essa cena: um casal de amigos em uma cozinha, no canto de uma festinha.

Quando você é adolescente tudo o que se faz é importante para todos, reverbera no mundo inteiro. Depois, cada um cuida de si e ninguém dá a mínima se você dá o cu três vezes ao dia, se você trepa casualmente com uma amiga em segredo, se você assalta lojas de conveniência ou coisas do tipo. Nem você se importa muito em contar aos outros: vida sua. Como as coisas então se tornam efêmeras. Será que é disso que o poeta estava falando?

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Hoje 3

Todas as minhas forças se esgotam como que descesse de um tobogã, como um índio numa metrópole.
Eu sinto o meu naufrágio do seu lado, a minha impotência aguda diante da sua impassível vontade de me dar um soco, de gritar na minha cara: seu broxa.
Dançar só não serve, ela disse, e tudo caminhou para onde estamos agora. Que adianta o resto, me perguntou, me perguntava. Sou um bandido numa periferia. Desprezível, merecia ser pisado por saltos de putas até sangrar, as mãos e os pés, como um cristo, sangrando pelas ruas sujas das beiradas; essa imundice de quem não sabe dizer um por favor um obrigado sem ser irônico, não consegue dar um beijo já pensando em trepar, tem que arranhar a canela quando joga futebol: por quê?

Onda de ácido queimando a cabeça é como um choro aberto – você não pode fingir que não está fingindo. Não dá pra escapar, não dá pra fugir. O corpo morto levanta-se rápido, como que impelido por algum maquinismo, como se uma mão poderosa lhe segurasse os cabelos e dissesse gritasse no seu ouvido:


Não escutei! Não! Fala mais alto, a música está quebrando os meus tímpanos, tão alta que parece que saí de mim mesmo, nem tenho certeza se a música está ligada ou não, só eu pareço escutá-la e ela reverbera nas minhas costelas, infla os meus músculos e eu me transformo na própria música, cada nota é uma articulação, cada osso responde a um acorde, cada gesto meu vira um harmônico e cada dor, cada calor ou frio é uma dissonância bonita naquele arranjo desajeitado. As drogas batem forte, meus olhos marejados, perolados, avermelhados, arroxeados, bronzeados – aceitei, violei as leis da natureza com uma gozada prematura: sou inútil como um óculos escuro. Uma fotografia de um fantasma.

Chega de diários? Não sei fazer se não isso: todo dia a mesma rotina, todos os dias, aqueles dias felizes, dias felizes que virão.

domingo, 28 de julho de 2013

Hoje 2

Respirar quando se tenta não dormir – um talento do álcool, todos sabem. Mas por que tanto sono? Por que não dormir? O oposto da insônia é a bebedeira? Embriagar-se tanto e não querer descansar, bater a cabeça no ar como um árabe, como um roqueiro disléxico, entortando as pálpebras.
Quando se mistura café com vinho (não necessariamente no mesmo copo, não deve ser bom) chega-se num estado interessante de lucidez bêbada, uma vibrante vontade schopenhaueriana de revelar-se, entornar os olhos com o mundo exterior. Não é nenhuma droga ilícita, nada novo, inclusive, apenas um esforço de festinha, uma alegria tão permitida que pode soar até um pouco infantil. Você não vai pirar o cabeção, não vai destruir seu apartamento, se afogar na banheiro com uma torradeira ligada, vai só dançar alegremente a noite inteira, sem o sono, sem o detestável sono que estraga as noitadas.

Foi muito difícil chegar aqui. Muito trabalhoso, penoso. Não sei bem onde é aqui, mas sei que foi muito difícil chegar, por isso tenho que aproveitar e dizer pra mim mesmo, parabéns, você merece. Acordei hoje com a sensação de que meus pais tinham sido assassinados durante a madrugada. Pensei em tudo que eu acabaria tendo que fazer, as pessoas que eu teria que avisar, ligar, dizer.. como – como se liga pra alguém e diz que alguém outro morreu? pensei também no enterro, no discurso que eu faria no enterro deles, em como teria que herdar a casa, o dinheiro, as coisas, como meu irmão teria que voltar de londres para o enterro e como eles teriam morrido logo antes de fazer uma viagem que sonhavam há tanto tempo.

Eu sonhei que chorava, que babava, um ser jurássico e epilético sob a luz das estrelas. Eram uns pontinhos brancos naquele negrume de sítio na serra como um exército. No sonho eu não morria.

Passei todo esse dia quase acreditando que meus pais morreram. Eu não tive de coragem de conferir de manhã, antes de sair de casa – em parte pelo medo de encontrá-los num mar de sangue, com as peles brancas, as articulações enrijecidas, as pupilas petrificadas, ainda na cama, como manequins velhos de roupas sujas; em parte porque era curioso me imaginar naquela situação terrível e não queria que a sensação absurda terminasse. Inventei o meu martírio, o meu drama, queria vivê-lo com sua intensidade – chorei pela calçada e decidi à noite encher a cara, dobrar as mágoas na cachaça.

Estou excitado com a ideia de escrever. Olho para as pessoas em volta de mim, naturalmente. Quem são – o que sonharam nessa noite, eu me pergunto; imaginar o que um desconhecido sonhou naquela noite, tentar seriamente levantar isso nos coloca, de alguma forma, muito mais próximos daquele cara, daquela menina maquiada e dos outros. A menina deve ter treze anos: a gente percebe as suas curvas de mulher e seu olhar de criança, seu corte adolescente e sua tristeza de velha, seu vago sorriso de mãe e a ansiedade de menina, as mãos nos bolsos do casaco, a meia de lã por debaixo da saia, os mamilos atentos, a claridade da sua mudez. Deve ter doze anos.


Me lembrei do meu sonho nos seus lábios – e ela não disse nada do início ao fim. Ela tinha sonhado... não sei, não conseguia imaginar e subitamente me perdi numas lágrimas que se formaram no canto dos meus olhos: o vento frio me impedia de recuperar meus pais mortos. Essa ideia, ela sentada no meu colo, meus olhos se fechavam e lá estava eu. Acho que sou feliz, não tenho do que reclamar; feliz e imóvel.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

fragmento de "Dias Felizes"

WINNIE
"(...) A dúvida (Coloca o indicador e o médio junto à área do coração, procura o ponto certo, encontra.) Aqui. (Move-os ligeiramente.) Ou por perto. (Afasta a mão.) Ah, sem dúvida virá o tempo em que não poderei murmurar qualquer palavra sem a certeza de que você tenha ouvido a anterior e então um novo tempo virá, sem dúvida, um novo tempo em que terei de aprender a falar totalmente sozinha, coisa que jamais suportei tamanho deserto."

In: BECKETT, Samuel. Dias Felizes. Trad. Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2010. p41

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Alaura

olhos molhados
eu estou molhado de você

vou me afogar no seu corpo louro
afogado
me fala de lado

eu falho te ver no escuro
silhueta
seu rosto calado

se eu dançasse o seu trançado
ou se traçasse o seu compasso
esse sussurro só seria nosso

cio na voz:
à revelia desse laço
outra relação revelada
qual foto lavada

a pose de lado
molhada
me olha intercalado
ora me mata de amor
outra me acha chato

achei assim você naquele lindo dia
sem força, sem compasso e sem trança
nossa frança virava hungria
sua mão me chamou de carinho
seu abraço foi feito de linho

não me escapa da lembrança

sexta-feira, 28 de junho de 2013

toda gosma já foi inseto

Era um dia como hoje, céu branco, dia branco, sem chuva, com vento; dias raros e frescos, anunciando alguma coisa ou não dizendo nada, normalmente os dois, sem maiores eventos que caminhar, olhar e ser visto. E pela rua, não mais atento que você, caminhava um percevejo marrom, um inseto simpático e quase fofo. Era um dia branco e caminhava um percevejo marrom pela rua antes da chuva e com frescor. O percevejo se chamava Ignor e, embora ele mesmo não aspirasse muita coisa, todos diziam que tinha um futuro promissor. Futuro é uma palavra irônica para nada, uma potência amorfa da causalidade, que insistentemente as pessoas tentam controlar, mais do que os percevejos, deve-se destacar. Promissor, por sua vez, já é uma palavra que denota potência no futuro, ou seja, futuro promissor não é só uma expressão irônica, como um pleonasmo quase maldoso. Mas, curiosamente, este percevejo, Ignor, de fato, teve um futuro promissor - ou melhor, um presente prometido.
Nesse dia branco em que ele caminhava pela rua um passante distraído esmagou-o com um sapato azul. Foi nesse exato instante em que a sola preta do sapato azul acarinhou suavemente as costas cascudas e marrons de Ignor que o percevejo teve uma grande inspiração; antes que seu exoesqueleto se rompesse sonoramente e ele se metamorfoseasse em uma pasta bege e esverdeada, lançando sobre o ar, a sola, e uma parte exposta da meia vermelha do passante seu perfume icônico, sua vida transformou-se em sonho e o futuro promissor se fez presente prometido numa poesia irregistrada:

Rasgue todas as cartas de amor
Namore só pelos olhos, amada
solitária prisão compartilhada
via de mão dupla inevitável

Calma pessoa, não me faça nada
Sou o mais adolescente escritor
de uma virgindade inescrutável
inenarrável casca, ela aprisionada

Mas a sua mudez me ensurdece
Quando fala é cantada
quando namora é prece
- o amor transparente transparece

Se duvido da cor mais que dos esses
Talvez minha dor seja emprestada
dessa morada vazada pela amada
virtude indescritível do silêncio

O vão infinito apequenece
No branco do dia - a refração
te espero sem cartas, palavras, sem ação
meu futuro promissor não me esquece


quarta-feira, 19 de junho de 2013

Fogo

Todos os fogos
Nos meus olhos visíveis
as cores geladas dos trópicos
o fogo

Não é que eu aprove
Coca-colas molotov
mas também não escove pichação mole

nada de hipocrisia da moral tele-mares
Palavras débeis
bradescos protestos anarquia
Anorexia dos nexos
esses issos e nadas
Decapitação e esquartejamento de tiradentes
exibimos corda e carne no museu
na televisão o vírus da paz branca e suja
Somos o novo velho
Natimortas moscas

É melhor abortar ou ser estéril?

O grito virtual das massas
O choro animal das turbas
Fogo dança nas avenidas
Vamos comê-lo

Sem folhas globos estados
O carinho do fogo cruzado de flores e fumaça
Mais cosquinhas sangrentas e humanas
Meu corpo quer crescer, porra
O céu que o cruzeiro resplandecia de fogos mil cem vezes

O tira atira eu me atiro nos tiros
e tiro o que resta da minha testa magra
os miolos removo com as mãos
exterminate all rational thought
sou só a cinza desse beijo

terça-feira, 18 de junho de 2013

eu mal fui vaiado

eu canto as mesmas moscas
da aurora da minha escada;
nas drogas de aluguel e nos vídeos coagidos
nas chuvas de papel e nos murais engolidos

esse limbo colorido
essa escada já cantada
os arrotos de outro dia já disseram:
"pela paz pela paz que eu não quero seguir"

a polícia aliciada ou não
tudo é lícito - tudo convém?
invés de grito, um verso? Inversamente:
a poesia suavemente gritada ainda é certeira?

Acertada como um tiro de borracha
como uma pedrada à gás, arrastada
o rio ria, arriado e ridículo
rasgada a fachada, as faixas e as bandeiras
os bandeirantes e as avenidas
não me mate como um mendigo na candelária
não me arraste pro número da hipocrisia animal
apareça velho esperma da minha cabeça
e meus órgãos, e meu sangue, e meus nãos
são a minha bandeira ideal

Ou nas nuvens ou nas entradas
eu te vi na multidão cem mil vezes
eu te achei do meu lado cento milhares
sentei no chão suado de você
e chorei o seu raspão no telefone agonizado
Nunca a espera foi maior que amanhã
Mesmo. Quem abrirá meus olhos direito?
O direito eu entendo, não te entendo morte vã

segunda-feira, 3 de junho de 2013

transparência e simultânea

quanta pouca dessa tanta nada vida
pode caber no mesmo instante?

Me perguntava isso à caminho
quando uma música
me perguntou insistentemente o contrário de mim:
você é invertido ou está espelhando só?

gelei, escorri pro seu site
morri, renasci no seu colo
assei, soquei seu assopro

É isso - vale aquele instante só
só contigo
solo sem pré encontro
Determinadamentíssimo transaparência

amor delicado tranquilo amasso
seu sempre assobio

sábado, 27 de abril de 2013

a você

pois é, prefiro ser o Werther
não sei o que isso quer dizer
mas tornou-se insuportável

prefiro ser o Werther
do que cismar do seu lado assim
do que não ser amado

prefiro ser o Werther
a morrer de fome, de doença, de parada cardíaca, de pneumonia
quando virar hipótese?

se houvesse alguma coisa a meu alcance
qualquer alcance que fosse meu
eu aceitaria e te alcançaria
feito um olhar esguiado pela superfície do mundo

mesmo que eu fosse um mendigo
mesmo que eu fosse um fudido
mesmo que fosse espancado todo dia
se tivesse você
seria feliz como as cores do seu vídeo

mas ser é ser sozinho
é ser tão pobrezinho que não reste solução
é ser só um sopro
surfando num furacão

eu aceitaria tudo
menos um não

assim sendo
sou somente negação

sexta-feira, 19 de abril de 2013

um poema verdadeiro?

o poema verdadeiro só pode ser escrito
pelas mãos canhotas de um suicida
ensimesmado.

pio de nano-passarinho que ainda não sabe voar
Voar. Isso não se aprende com ninguém
ou seja, não me interessa o que os outros podem dizer

todas as manhãs quando acordo
demoro pra lembrar quem eu sou
as vezes não lembro e saio
todo dia sendo vocês

várias vezes nenhuma pessoa
Silêncio. Aprendi na porrada
no empurrão do galho mais alto
era a morte ou o silêncio.

sexta-feira, 29 de março de 2013

obituário de Clarim Spoiler

OBITURÁRIO de CLARIM SPOILER
pelo poeta e cientista social Dínamo Helenânimo

É com muita honra e tristeza que levanto essas pobres palavras para homenagear aquele que foi o meu maior amigo, e um dos homens mais brilhantes que já pisaram nesse planeta - embora ele, de fato, relutasse em pisar por aqui. Obcecado por outros planetas desde que o conheci, Clarim Spoiler (as vezes chamado de Rif Waffles, nas suas primeiras peças, ou ainda de Ficto Profiterólis, quando assinava seus poemas ainda adolescente) recusou ser chamado de terráqueo, quanto mais, pertencer a qualquer grupo ou nação terrena. Sua ascensão aos céus, aos 24 anos, foi mais do que anunciada a todos seus amigos e parentes e parecia a melhor solução para o tímido e relutante niilista que ele se tornara. No bom sentido - extremamente desde muito cedo, criativo e inseguro, era-lhe muito difícil adaptar-se à vida cotidiana de todas as pessoas.

Incentivei-o a escrever assim que ficamos mais amigos; percebia nele a sede de ser escutado e, muito mais importante, a capacidade de dizer novas coisas ou de repetir melhor coisas velhas. Alguns tentaram empurrá-lo para o teatro, mas era óbvia a sua preferência pela escrita; assim, como dramaturgo, pareceu estabelecer-se no meio termo, em um lugar que lhe era confortável e no qual conseguia trabalhar criativamente e sem esforço. Então, aos 19 anos, um ano depois de nos conhecermos nos corredores de 15 metros de altura da faculdade de letras e línguas (curso que nenhum de nós fazíamos, mas gostávamos de frequentar algumas cadeiras) ele publicou, escondido dos outros por um pseudônimo, sua primeira peça, "Werther nas Estrelas", muito influenciado por suas classes de germanística e romantismo, teatro épico e a literatura alemã da república de weimar e cálculo 3. Embora na época tenha circulado apenas num ambiente universitário intelectual, costumava agradar todos que ficavam até o final, que era mesmo o arremate que fechava seu sentido. Muitos foram os críticos que, tendo saído nos primeiros quarenta minutos, fizeram resenhas totalmente afastadas do que a peça, de fato, trazia como reflexão. Sua segunda obra, "You don't Get Away", uma visão irônica da história como disciplina, centrada em dois personagens que podem mover-se no tempo e solucionar todos os problemas da humanidade, causou escândalo com uma cena na qual Maomé convertia-se ao judaísmo depois de ser derrotado por Salomão em uma partida de ping-pong. Por ela, Clarim teve que se esconder por meses na casa de amigos, pois foi jurado de morte por grupos extremistas tanto muçulmanos, quanto judeus.

Clarim parou de escrever e de estudar depois que namorou e morou com a atriz Nana Senóide, a qual conhecera acompanhando os ensaios da montagem daquela segunda peça, onde ela fazia o papel de Lâmbida, uma méson-mi existencialista e sensual. Nós três viramos um grupo de amigos e morávamos praticamente juntos, porque eu não saía da casa dos dois - não é à toa que, depois que Clarim foi morar no espaço, eu e Nana tenhamos nos casado. Clarim, foi, portanto, o responsável pela melhor coisa que já me aconteceu, a qual eu lhe sou eternamente grato. Ele nos apresentou.

O tempo passou e Clarim Spoiler teve crises de depressão fortíssimas, nas quais ele só podia comer chocolate e tocar violão. Lembro-me dele, de cuecas, em cima do telhado de sua casa, olhando pras estrelas e tocando uma canção muito triste. Era claro que ele apaixonara-se pelo inalcançável, pelo infinito, pelas estrelas. Depois dessa noite, foram dois anos até ele anunciar, sem maiores explicações - nenhuma era necessária - que passara no concurso para astronauta e que habilitara-se para habitar um satélite por meses e que pretendia manter-se lá por toda a vida.

Lá ele se manteve, de fato, fazendo-nos visitas anuais, quando, então, demonstrava sua enorme inteligência e nos apresentava o que escrevera nos seus meses de afastamento. Dessa forma que publicamos suas outras peças, as quais apresentavam uma progressiva aproximação de problemas mais cotidianos, o que, no início parecia extremamente contraditório com a sua condição.

Finalizo estas homenagens falando mais como seu amigo, arrisco dizer o maior amigo que ele tinha - pelo menos entre os terráqueos. Clarim Spoiler é forte candidato ao homem mais importante do século, por tudo o que produziu e pela mente incrível que possuía; pela história singular que levou e pelo enorme amor que sentia por toda a humanidade, ainda que afastado totalmente de seu cotidiano. Ele nos protegia lá do céu e com frequência senti que dirigia minhas preces mais a ele que aos anjos.
Clarim Spoiler não morreu - é uma estrela, como sempre foi e quis ser.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Qual Desistência

Como quem um dia te viu
Não dá pra ignorar
Que existe alguma verdade
Que existe alguma certeza
Que existe mais que amizade
Num barco cor de assobio no mar

Como que um dia de frio
Numa maior distração
Não ameaça o sonhar
Não ameaça a canção
Não é maior que oceano
Que afogou qualquer outra coisa mais

Como que uma reencarnação
Não é um recomeçar
Quero dizer a verdade
Quero cantar a canção
Quero o maior oceano
E por ser mais que amizade
Eu quero o seu coração

quarta-feira, 20 de março de 2013

À luz das velas

Ontem quem junta os pedaços,
Os maltrapilhos encaixes sobre a mesa?
Quem arruma os retalhos,
Aperta os espaços com leveza?

O redondinho ninho, se existisse...
(a tiny blowy kiss, a minor abyss)
Essa língua se cala. Faz friozinho
No fundo da cozinha.

(a really small kiss, like a blink)
Um caco de palavra, um cuco gago
Do lado errado dos abraços.
Quem junta os pedaços?

Quem calça trocado esse quarto
Essa sala, esse canto?
Quanto sofá tem no seu encalço?
(less than a touch kiss)

Recolhe-se, afasta-se
(a nothing kiss)



segunda-feira, 18 de março de 2013

reflexões de Clarim Spoiler

Passados 9 meses de sua morte, agora que se reviram as obras e o inventário de documentos e cadernos antes desconhecidos do dramaturgo e astronauta Clarim Spoiler. O autodidata, que aos cinco anos aprendeu a ler e, aos doze, abdicou de qualquer cidadania, vindo a se refugiar, apátrida, num satélite que voltava à Terra somente no verão (independente do hemisfério de aporte), confiou seus últimos escritos ao amigo Dínamo Helenânimo, com a indicação de que ele os lançasse ao fogo. "Era o que eu ia fazer" diz Dínamo "mas, sem querer, notei meu nome escrito nas páginas de um diário de capa vermelha e, não resistindo, li. Nunca acreditaria se não tivesse lido por mim mesmo. Pois ele não só disse que detestava toda a humanidade, como à mim, mas que todos! Canalha! Hipócrita. Li outros trechos e percebi que seu desprezo não era exclusivo a mim, mas a tantas outras pessoas que lhe eram próximas, apesar dos meses em que ele passava sozinho no espaço. Decidi publicar o material como vingança, para que todos possam ver o homem horrível que ele era."
Vingança ou não, o fato é que os cadernos de Clarim Spoiler revelaram enorme talento artístico. Suas poucas peças publicadas, duas sob o pseudônimo de Rif Waffles, foram de grande importância pro cenário teatral contemporâneo. Os diários parecem revelar, ao contrário do que reclama Dínamo Helenâmico, um lado apaixonado de Clarim, até pouco, desconhecido. Selecionamos alguns trechos mais marcantes dos seus documentos:

"ah sinto que escorre pela nuca
a massa mole da minha cuca;
mais que nunca o meu cuco-
peito batia forte: tudo feito.
E minhas ideias vazavam pelo corte.

"Escrevi esse poemeto como uma metáfora - queria falar de como um apaixonado abdica de seus valores pelo amor. Mas me parecia piegas esse tema. (...) Não evito admitir-me um homem apaixonado, incoerente, podendo desistir de tudo por um sim. Mas escrever poesia sobre isso é pedir pra que te abram a cara com um machado literalmente. Por que falar de quem você ama e do que deseja é tão chato para os outros, e tão desorientadamente interessante para si mesmo?

"Deixei no planeta uma corja de desinteressantes más pessoas. A choldra que me seguia era incuravelmente burra - e burrice invencível é algo que me tira do mundo. Literalmente. Viver aqui é muitas vezes melhor que na superfície: a gravidade não me afeta - não há política ou compromissos sociais; leio, releio, assisto filmes e revejo tudo o que quero, quando quero; posso tocar violão.

"O mais bacana, no entanto, é o telescópio. Posso apontá-lo em qualquer direção, seja para o espaço infinito, para Deus, ou para a Terra azul, com tal precisão e aumento, que posso observar uma pessoa caminhar pela rua em Moscou, a princesa trocar de roupa em Comodo e a pesca ilegal de baleias nas Filipinas; assisto, através das nuvens, com visores infra-vermelhos, ultra-violetas e intra-verdes os caminhos e trilhos das pessoas, escuto suas preces como um anjo e navego por seus olhares não-vistos por quem deveria tê-los visto, por todas as entrelinhas e sub-textos das relações humanas. Daqui, entendo tudo, mesmo que não possa falar com ninguém.

"Desço ao mundo somente nos verões. Algumas vezes, nem queria; outras, conto os dias que faltam. No verão, as pessoas parecem conversar melhor. Espero que um dia Dínamo descubra que eu o detesto, porque ele roubou de mim o meu lar, a minha cama e tudo mais que tinha dentro...

"Se eu te olho de canto
Tu canta pro meu olho
O conto do nosso encontro
Uma troca de contas
O faz-de-conta do seu corpo

Mas se eu te olho reto
O preto do seu olho avança
O joelho da coluna trança
O traço que sua mão balança.
Como o olho faz o feto"

Citônio parou de ler a reportagem como quem acha uma aliança dentro de um peixe que se desfiava pro almoço. Alguns chamam essa sensação de dejavi, outros, de lembrança de vidas passadas, uns últimos de "buraco-de-minhoca", supostas quebras no espaço-tempo. De qualquer forma, aquilo lhe atingiu de tal maneira, que decidiu nunca mais escrever poesia com aquelas roupas.
Um protesto silencioso contra a vida, talvez.

segunda-feira, 11 de março de 2013

debaixo do fio


Onde couber o maior amor
amarelo ou vermelho
qualquer cor
seja forte no frio
ou mole no calor
seja interno como um rio
e, como um rio, sem rumo que não o mar
(rumo comum a qualquer rio)
ou eterno, como o navegar
mas impreciso

Onde se pode encontrar
vermelho ou amarelo
qualquer matiz
seja inteiro no farelo
ou metades de um triz
seja profundo como um mar
e, como um mar, sem antes que não o rio
(passado comum a qualquer mar)
ou infinito, como um fio
precisamente um fio

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Trópico das Cabras


adaptado do curta homônimo de Fernando Coimbra

O mundo é mesmo muito estranho – costuma-se ouvir esse tipo de afirmativa das pessoas. Pessoas de todos os tipos passam, atravessam e nunca temos tanta certeza do que foram, do que eram, ou do que são. Conheço muitas pessoas por esses caminhos. Escuto muito isso pelas estradas. Afinal, sou casado com as estradas. Acho que todo mundo é – sou mais honesto do que os outros todos e admito. Estrada não é como uma pessoa. As pessoas vêm e vão; as estradas só vão.
Não sou ninguém inteligente, só sou mais inteligente do que os outros.

Um amigo de um amigo meu lhe contou certa vez uma coisa muito estranha que lhe acontecera por esses caminhos. Nonada, como disse alguém. Monteiro Lobato, não sei. A história começa no meio, numa estrada. Era um desses botecos de gente feia, com muita abelha, cachorro e abelha-cachorro. Era praticamente ele e mais ninguém. Nunca dá pra confiar direito nele, mas acho que essa história é das verdadeiras. Mentira não é. Mas quem conta um conto, aumenta um ponto, também disseram. Salomão, se não me engano. Nessa noite, quente como todas as noites quentes, ele estava praticamente sozinho – praticamente se desconsiderarmos os dois donos do bar. Ele não queria ser incomodado – caminhoneiro não gosta muito de quem trabalha na estrada. Casa de ferreiro, espeto de pau, escuta-se por aí. Bom, nessa noite quente quase vazia, ele comia um frango à passarinho e tomava uma cerveja, lógico.
Então aconteceu o fato estranho. Nunca sabemos quando os fatos estranhos vão acontecer, eles simplesmente estão atrás das esquinas, ou no alto dos postes, vigiando a gente e, quando a roleta gira na nossa direção, eles entram com uma deixa não ensaiada. Acho que são os fenícios que acreditavam que todos os homens tem um fio da vida que é fiado por três velhas que só têm um olho e que, quando chega sua hora, elas o cortam. O fio, não o olho. Mas isso não vem ao caso. O que aconteceu foi um casal: uma mulher e um homem, que apareceram no bar como se sempre estivessem estado ali e não tivessem sido percebidos ainda. Talvez já estivessem mesmo. Ele não reparou muito no homem, que sentou-se de costas, mas na moça, que, não apenas se sentou de frente, mas também era gostosa “como uma rabanada fora do natal” foram as palavras que ele usou (ele não é nenhum Ferreiro Gullar). Ele descreveu por muito tempo essa mulher: cabelos pretos, magrinha, bunda grande e cara de rica das galáxias e outros exageros desse tipo. Ele é exagerado, mas outro dia, conversava com meu amigo num bar e ela entrou. Ele espirrou pra mim “é a gostosa que meu amigo comeu” e eu olhei bem pra mulher. Era mesmo uma rabanada fora de época.
Quando o amigo do meu amigo a viu naquele dia, deu um jeito de roubá-la de seu homem. Ele pareceu não querê-la mesmo. Quando o cara se levantou para fumar, ou ir no banheiro, ou fumar no banheiro, ele se levantou e se sentou com a moça largada. Sua xavecada não é das mais sofisticadas, mas ela devia querer trepar com qualquer um, afinal, ali também era um motel. O cara que estava com ela, chegou a vê-los juntos e sentou-se separado, na mesa onde o amigo do meu amigo estivera à pouco. Foi a menina quem o levou pro quarto dos dois e quem se despiu primeiro (segundo a versão que eu escutei...). “Vi, vim, venci” foi o que ele disse pro meu amigo depois, parafraseando Kublai Khan.

Achava eu que a história acabava aí – o estranho caso do corno que não se importa que comam a mulher dele na sua frente. Birutice leve, na minha opinião. De perto ninguém é normal, dizia Galileo Galilei, o inventor do telescópio. Mas não.

O amigo do meu amigo continuou contando que, alguns meses depois, passando perto da capital, ele escutou melhor a história desses dois da boca de uma prostituta boliviana. Eles vinham desde o litoral, como Borba Gato, viajando num Chevete tentando recuperar o relacionamento. No começo não conseguiram. Ela transava com muitos e ele tirava fotos dela nua depois dos orgasmos com uma velha câmera analógica, daquelas que você tem que girar o filme. Então, numa noite tão quente quanto a primeira, ela fugiu. O amigo do meu amigo indagou à prostituta como ela sabia disso. “Elementar”, ela disse, não sei se copiando aquele personagem de Edgar Allan Poe, “eu a vi sozina neste posto faz dos semanas tentando conseguir um caroneiro, ora pois”. (Não sei imitar muito bem sotaque boliviano).

Se isso já não é estranho o suficiente, ouvi recentemente que os dois se reencontraram. Ela pedia carona na beira da estranha e ele parou para ela. Os dois conversaram como se não se conhecessem. Ela entrou no carro e o carro seguiu na estrada. Os dois até hoje fingem que se conheceram naquela hora. Talvez tenham mesmo se esquecido de antes, e nunca se reconhecerão. Talvez um deles não seja si mesmo. Não sabemos.
Sei, como uma vez falou James Joyce, que navegar é preciso, viver não é preciso.

domingo, 27 de janeiro de 2013

A história de Tifo e Larica

Há uma época do ano em que os dias mancam muito quentes, mas todo início de tarde chove desesperadamente até de noite. São temporais fortíssimos, que transformam praças em lagos, marquises em cortinas de cachoeiras, canteiros em lodaçais, mendigos em húmus, plásticos em água-viva, ladeiras em corredeiras aceleradas - de fato, algumas espécies de peixes migravam de oceanos distantes e subiam as ruas até o alto dos morros numa piracema urbana curiosa para colocarem seus ovos na copa dos coqueiros submersos. Pela manhã, o sol nasce com tanta luz e tanto calor, que a água voa rapidamente, revelando uma cidade já consumida pelo caos e pela sujeira. Às 4 da manhã saem os tratores da prefeitura recolher o lixo, os afogados e os destroços dos barracos que rolaram dos morros naquela madrugada. Às 6, todos saem para seus trabalhos.

Foi assim que Tifo e Larica se conheceram. Tentando voltar para casa, os dois apanhados pela chuva e se refugiaram debaixo da mesma marquise. Era noite e a luz dos postes refletia na água suja que passava veloz pela rua, como uma corrida de porcaria. Os dois sentavam no degrau da farmácia da esquina onde ficaram presos, completamente molhados, como se tivessem tomado banho, só que ao invés de se limpar, se sujaram. Nessas horas, quando nos vemos presos num mesmo lugar com um - e apenas um - desconhecido, seja em um elevador que para misteriosamente, seja no engarrafamento com um carona misterioso ou em um passeio de barco onde a gasolina misteriosamente acaba, é comum alguém acabar puxando um assunto para, como se diz, quebrar o gelo. Mas não eles dois. Tifo e Larica, os dois, eram mais tímidos que labirintos de parque de criança, e a situação não era das mais alegres. Tifo sabia que estava fedendo de chuva e suor, porque tentara correr para evitar exatamente o que acabara acontecendo e seus sapatos molhados estavam fazendo barulho de água mesmo quando ele não movia os pés; Larica percebia que a tinta do seu cabelo recém aplicada estava asquerosamente escorrendo por suas têmporas e que sua roupa molhada ficara transparente obrigando-a a ficar com os braços cruzados. Não havia o que conversar.
Então, Tifo olhou para dentro da farmácia e viu. "Que irônico - tem guarda-chuvas ali dentro" comentou como quem não quer nada. Larica olhou, viu e balançou a cabeça afirmativamente, com um sorriso sem dentes de quem consola um vovô depois de uma piada sem um final claro. Tifo calou-se definitivamente. Demorou mais de uma hora para Larica dizer "Se ficarmos doentes com essa chuva, pelo menos não temos que ir muito longe" falou, virando os olhos para o colega de marquise. Ele reparou na lama que escorria de seus cabelos lisos e ondulados quase como sangue muito escuro e percebeu a pele branca por debaixo das roupas molhadas, dizendo "é bom que você também pode pegar outro frasco de tinta" sorrindo. Ela percebeu o seu cheiro de camisa de futebol guardada no fundo da mochila e seus sapatos escurecidos e acrescentou: "e desodorante pra você...".

Os dois achavam que, em algum momento, a chuva pararia e eles poderiam sair e esquecer-se um do outro, e que, o mais tarde que isso poderia acontecer, seria o nascer do dia seguinte, quando o sol secasse os caminhos com sua luz confortadora. Bom, lógico que, em algum momento, aquela aguaceira teria que parar, mas não foi ao nascer do sol. Um novo dia acordara e o temporal continuava assolando a cidade, sem perder o ritmo. Aquilo assustou os dois que, agora, começaram realmente a temer que os degraus da escada da farmácia da esquina seriam poucos para suportar o rio que subia de nível a cada minuto.
Os dois não falaram nada e nem se moveram até o dia começar a cair. "Perdão, meu comentário foi maldoso" "Tá." "Eu também estou fedendo..." "Tá mesmo...". Novo silêncio.
"Podemos tentar outra vez? Acho que começamos com o pé esquerdo." "Ótimo, começa você", ele disse, e Larica se levantou de onde estava e sentou-se mais próxima.
"Bom, eu gostei dos seus sapatos - não são os melhores para dias de chuva, mas lembram o de um artista de rua que eu gostava muito quando eu era criança. Ele tocava violino enquanto declamava versos." "Eu gostei da cor que você escolheu pro seu cabelo, ainda que não seja muito inteligente aplicar tinta numa época como essas." "Não deixei de notar que você corre bastante, mesmo que não faça muita diferença correr na chuva, porque você acaba se molhando ainda mais, mas achei bastante atlético." "Que engraçado, porque eu reparei que você não correu pra debaixo da marquise, o que não é muito inteligente, porque você acaba ficando mais tempo na chuva, mesmo que se molhe menos, mas achei muito elegante, sofisticado, lembrou-me uma bailarina de rua que vi adolescente que dançava em um teatro velho abandonado que fora bombardeado durante a guerra e não tem telhado e certo dia chovia muito, mas ela continuou dançando, enquanto as gotas lentamente pesavam seu cabelo no coque frouxo, lavavam seu suor contido, e molhavam sua roupa branca, fazendo com que ficasse transparente...."
A voz meio que foi morrendo. Larica ofereceu seu olhar para Tifo como quem serve uvas em um jantar. Ele a olhou como um menino virgem e suspirou com frio.
"O que aconteceu com ela?" "Parou no tempo - ela é adolescente até hoje, linda pra sempre." "Como?" "Eu nunca mais a vi". "Eu sou bailarina..." "Jura?" Larica abriu sua mochila e mostrou um par de sapatilhas surradas. "Puxa, e eu sou violinista..." "Sério?" Tifo abriu a sua e mostrou seu instrumento e o arco. "Toca pra gente" "Toco, se você dançar."
Então, pela primeira vez desde que sentou ali, Larica descruzou os braços e trocou seus sapatos; e quando Tifo afinou seu violino e começou a tocar e olhou para Larica, percebeu que ela o reconhecia tanto quanto ele a ela.

Os dois foram levados pelo rio no décimo terceiro dia.

Algumas semanas depois, Citônio passava por aquela esquina quando reparou num reflexo diferente da vitrine. Aproximou-se como se seguisse na direção que ia e percebeu uma frase escrita com dedo no embaçado de um bafo: "Aqui o tempo parou e depois seguiu.".

sábado, 12 de janeiro de 2013

O armário de roupas

Existem coisas que claramente não deveriam estar separadas, como formigas. No entanto, o fato de estarem definitivamente separadas é muito mais forte do que o fato de que não deveriam estar.

Era dia de mudança. Não de cidade, ainda, só de bairro, nada que fosse transformar muito sua rotina, nada que interferisse verdadeiramente na sua vida, mas uma mudança considerável. Mudava de ruas, de passeios e, com certeza, de clima. O bairro pra onde ia era no alto de um altíssimo morro, coberto de floresta virgem,  habitado antes por macacos que por pessoas, onde os edifícios eram raros e as casas nas árvores imperavam cheias de luxo e com vistas belíssimas para o mar ou para o cemitério de elefantes atrás das rochas. Mas o mais perturbador de lá era, com certeza, a incessante chuva. Não havia um dia sequer do ano que não chovesse. Fizesse chuva ou fizesse sol, chovia. Assim, não à toa, os moradores eram reconhecidos pelo uso de botas muito sofisticadas, uma moda própria de capas e botinas, fechos de couro e chapéus e calças de veludo de dar inveja.

Citônio se preparava. Desmontara seus cabides, recolhera as roupas, doara alguns itens dispensáveis, descartara de vez os quebrados, encaixotara os livros, as revistas, os aparelhos eletrônicos, empacotara o acordeão, os cartões-postais, as caixas-de-música, plastificara os cadernos, as agendas, selara os pincéis e as borrachas, guardara sua câmera fotográfica, sua flauta doce, seus óculos, seus cremes dentários e seu computador de última geração. O quarto esvaziara-se. Ele checava tudo ainda mais uma vez, para confirmar que não deixava nada pra trás que lembraria assim que montasse seu próximo quarto pensando com raiva e tristeza que nunca mais reaveria aquele guarda-chuva importado ou que perdera pra sempre aquela fotografia tirada num celular velho. Olhou atrás do espelho, próximo ao rodapé, na fechadura da porta, entre a janela e a parede e no vão do armário embutido.
E foi quando decidiu bater de leve nas paredes, como o sol da manhãzinha, em busca de algum esconderijo que nunca tivesse percebido. Se essa ideia parecia absurda desde o começo, mas curioso foi reconhecer um estranho eco nos fundos do armário, como se um brilho brotasse daquele som. Atordoado e surpreso feito nuvens de granizo, Citônio analisou a parede, as madeiras, escorregou a tábua dos fundos e encontrou um vão entre os veios da madeira como quem descobre uma nova galáxia. Ali, espremido e apertado, havia um envelope pardo muito antigo, meio amarelado, meio molhado e depois seco, meio comido por traças e cupins, alguns ainda mortos presos no seu lacre, como espermatozoides derrotados, ou como bolhas de sabão congeladas. Com mãos trêmulas e desobedientes, Citônio puxou o envelope do vão e abriu-o com excitação.
Dentro: uma resma de papéis de cartas, recortes de revista e uma foto. Citônio folheou com pressa, eufórico com a descoberta, olhando rapidamente para cada recado. Deteve-se na foto: antiga, parcialmente mofada num dos cantos, daquelas coloridas como se fossem preto e branco. Nela, um casal num parque de diversões olhava para um dos cantos como que suspensos naquela expectativa do que nunca apareceria - um eterno mistério. O homem era alto, magro e forte, feito um pescador, mas de pele muito branca. Usava uma camiseta regata e calças largas, como um soldado em descanso, e, nos pés, bonitas botinas marrons. Num dos ombros uma bolsa de carteiro de onde saía uma flor de abóbora imperiosa. Os olhos pretos olhando perdidos praquele canto invisível da fotografia. A moça era muito menina, baixa, com cabelos ruivos, cacheados e curtos, nariz grande e boca pequena - um ar de gaivota pousada, à espera do próximo peixe. Vestia um vestidinho de verão, sem mangas e cheio de florzinhas estampadas, calçada com botinhas curtas marrons. Numa das mãos carregava muitos morangos e nas costas uma mochila. "Quem batera aquela foto?", pensou Citônio. Mistério. Repousou-a no chão e olhou as cartas. Eram, na verdade, apenas três. Entre elas, recortes de revistas de rostos de artistas, casas exóticas, privadas ecológicas, carros elétricos, placas de energia solar e um único anúncio de uma câmera fotográfica. Sobre a primeira carta, meio colada, como casca de cigarra, uma carta de Tarô. Citônio não sabia identificá-la - era O Carro, genioso e decidido. Colocou-a no chão com cuidado, como quem empilha alfinetes, e abriu a primeira carta com a delicadeza de uma água-viva. Citônio não respirou enquanto à lia:

"3 de dezembro

querida Ucrânia [Citônio lembrava-se que, no passado, era moda dar nomes de países para as meninas; ele mesmo tinha uma tia-avó chamada Coréia],
Queria eu saber escrever como algum monge, ou cantar como um pássaro de manhã, ou de alguma forma poder falar melhor o que quero te dizer hoje e todos os dias: amo-te!
Você enfeita as minhas retinas toda vez que vejo seus cabelos vermelhos, acalma minhas têmporas com seu cheiro de fruta no pé, silencia meus ouvidos com seu estranho assobio, anestesia minha língua com a sua quando me beija e abranda minha pele com o seu toque de carinho, com o seu corpo de ninfa da noite.
Nunca vou me esquecer de ontem, nem do seu terraço.
Nunca vou esquecer do nosso primeiro beijo.
E queria que você sempre lembrasse de que qualquer presente que eu já te dei, ou qualquer elogio que já te disse, não traduz o meu amor eterno por ti.
Esta carta é a nossa viagem juntos até a Lua!

eternamente seu,
Croma"

Citônio sorria como o sumo de uma montanha. Pousou a primeira carta no chão e leu a segunda:

"11 de janeiro

minha amada Ucrânia,
Você vive como uma poesia. Você é um girassol.
Nosso apartamento me lembra uma caverna perto da casa em que eu fui criado que só dava pra entrar com a maré baixa. Nela eu guardava diversas coisas minhas que não queria que os outros descobrissem. Depois transformei no meu primeiro laboratório de fotografia! Improvisado, claro, e as fotos saíam todas amareladas pela maresia, mas eu adorava e dizia para todos que aquela era a minha marca. Lá eu também dormia com um colchão no chão.
Quando você voltar, iremos morar juntos!

beijos e muitas saudades,
do seu Croma"

Sem pressa, Citônio leu a última carta:

"7 de fevereiro

esta é a última carta.
Que vai amarelar como as minhas fotos, como tudo que amarela quando envelhece, como as folhas das árvores e como a pele dos velhos, como o bronze dos sinos das igrejas.
Nosso amor é amarelo.
Que fazer da nossa última migalha ou do última vez que demos as mãos andando de bicicleta? Quando vamos nos olhar de novo?
O mundo todo é amarelo.
Um olhar novo vai surgir, vai superar todos os medos e incertezas e vai fazer a maré baixar tão baixa que os peixes aprenderão a voar. Quando você me olhar assim, aí, então, a gente vai voltar a morar junto e a dormir no mesmo colchão baixo. E a nossa horta helvética vai voltar a ganhar os prêmios do bairro e nosso guarda-chuva vai voltar a ficar colorido quando molhar.
Agora eu vou viajar.

nunca mais seu,
Croma"

A surpresa parou as lágrimas de Citônio, tamanho o espanto com a última carta. Atrás dela, colada, havia uma outra foto, que ele não reparara. Citônio a descolou como um caramujo e, então, chorou. Na foto, a menina ruiva, Ucrânia, estava sentada na beira de uma janela - a janela daquele quarto, que Citônio habitara por tantos anos e, agora, despia - e ela olhava para ele com a alegria de uma menina que recebe o primeiro sutiã. Os cachos ruivos caíam até os ombros, a franja escondia um dos olhos com todo o seu mistério.

Citônio se apaixonou.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Quando eu fui o Bob Dylan



Eu sou o Bob Dylan dos Trópicos
Do violão utópico
o inverso de um toque
um ringtone desafinado
o finado rock'n roll

Eu sou o Bob Dylan de óculos
(sem ser os escuros)
E as meninas do Leblon
Olham pras estrelas cadentes
crentes de que arrasam no reveillon

Eu era o Bob Dylan no recreio
Creio que passou o dia
Mas ficou o cheiro
Do seu beijo de tiete
Do outro lado dessa gaita