sábado, 31 de agosto de 2013

Italianos 2

Florença, piazza della signoria, peoplewatching:
Não vejo italianos. Sentado, ao meu lado um tiozão japonês com sua mulher perua e pai idoso de chapéu branco e garrafa térmica na mão, do lado deles 4 rapazes alemães estilosos e playboys um deles com o óculos escuros fellini que eu estou procurando, na minha esquerda uma velha chinesa muito velha me pergunta em suposto inglês se a água da bica ao lado é para beber, tento explicar em inglês, ela não entende, seu suposto inglês é sordidamente um daqueles sons nasais chineses, aquelas vogais que só existem no oriente, ela aponta pra placa, eu explico de todas as maneiras que ambas as bicas são a mesma água e que pode, sim, pode beber, sim, both are drinkable, yes, the two are water, water, for drink, drink porra, faço o gesto. "ãinm?" Eu entendo: quis perguntar 'the same?', yes, the same. Ela sorri e agradece e vai beber água. Espanhóis, sérvios, árabes, coreanos, japoneses, portugueses, americanos, brasileiros, italianos!
Eu acho isso muito curioso, pensar em cidades e espaços criados para o turista, sua população só passa, atravessa. Paris no verão tem mais turistas que moradores. O que é ser parisiense então? Veneza afunda sob o pé de tantos turistas e a Basílica de São Marcos praticamente não é mais usada para ritos religiosos, tem uma fila imensa na frente, dois italianos grosseiros na porta, um recorte de pano TNT bege que eles vendem por €1 para mulheres que não tenham nada para cobrir seus ombros nus em respeito a casa de deus que agora tem um trajeto circular determinado por aquelas fitas elásticas de controle de filas e que não abriga mais nenhuma missa.
O que são guetos?
O Epcot é um parque que abriga o mundo inteiro. Muito legal. Lá também tem uma piazza de São Marcos. Em todas as cidades que já fui na vida tinha Mac Donalds. É muito estranho pra mim o sucesso do Mac Donalds. Não é como outras empresas transnacionais globalizadas. Não é, sei lá, a Coca-cola. A coca é só uma bebida de sucesso com uma ótima propaganda. O Mac Donalds é um tipo de comida chamada de junkyfood, comida nojenta, comida de porcaria, eles se dizem isso, anunciam péssimos e caros sanduíches, vendem sanduíches ainda piores e mais feios e mais junky que os anunciados e todo o mundo gosta. Em Paris tem um em cada esquina, os parisienses, sejam eles quem forem, aparentemente amam o Mac Donalds e tem, inclusive um apelido carinhoso, MacDö'.
Acho que esse é o futuro da democracia globalizada da política de minorias.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Italianos

Turim, via garibaldi, flaneur, peoplewatching:
Óculos escuros pretos roxos dourados mudam de cor. Regazzas de belos cabelos curtos pretos cacheados e/ou ondulados olhos pretos pele clara vestidos pretos seios lindos botas pretas bolsas de couro colorido. Bicicletas amarelas vintage verde musgo e onduladas. Homens fortes nariz forte gordo máfia ferrari camisetas polo coladas estampas horriveis gola pra cima (como eu comumente chamo estilo neymar) boné vermelho camisas sociais listradas quadriculadas cortes curtos cabelos curtos penteados cabelos longos presos em rabo. Tipos bregas. Madonnas gordas mammas mesmo mamas fartas. Escolásticos em ternos claros camisas claras gravatas claras. Cigarros finos. Crianças imitam pais falam alto camisas de time tênis coloridos imensos meninas de vestido calça legging preta e/ou rosa. Gays mais gays. Bronzeamento artificial. Jovens tatuados topetes enormes com roupas jeans: bermuda jeans pescando-siri jaqueta jeans camiseta social jeans-claro.
No alto, nas janelas dos prédios do século XVIII, fotos de atores e atrizes do cinema italiano entre os rococós de anjinhos barrocos das fachadas.

sábado, 24 de agosto de 2013

sobrando tempo

Ele fazia carinho no rosto dela, suave como em um passarinho
não vamos fazer isso
Se olhavam nos olhos pela memória, aquela saudade serena
não, não vamos.
Calafrios na nuca e nos braços
será outra coisa.
Ela fechou os olhos sentido as mãos suaves no seu rosto, os dedos nos seus cachos ruivos. A outra mão, lentamente pelo seu braço direito... O que queria?
ai...
Calafrios na ponta dos seios
Os dedos dela o buscavam e seu fio de deliberação tentava se impedir de ceder só que mais ardentemente queria. Não sabia se queria, mas queria como adolescente...
Sentia a respiração dela como a sua, como um corpo, como colados com os seus, mas não estavam. Olhava o rosto lindo e triste
será outra coisa, somos outros.
Ela abriu os olhos tão triste

terça-feira, 13 de agosto de 2013

grandes esforços efêmeros

Estes textos foram escritos para integrar o programa da nossa peça Sobre Troias (realização do grupo TARJa e Teatro Terceiro Vetor, com patrocínio da Unirio e Ministério do Exército) que esteve em cartaz no Forte da Urca nesses últimos dois fins de semana. Por problemas nossos, não conseguimos publicar o programa, que trazia outros diversos textos escritos por atores, diretores e toda a gente envolvida no projeto. Como deu algum muito trabalho escrever esse material, virei algumas noite e coisa e tal, decidi postar, pra ter alguma (mínima) divulgação:


quando um mundo está pequeno
LONDRES - Morreram ontem nove milhões de combatentes, ingleses franceses alemães italianos húngaros austríacos turcos sérvios muitos nós. Todos eles perdidos em um enorme labirinto de túneis e fossas que rasgaram toda a europa.
As fotos falam mais que mil palavras. As trincheiras permanecem, enchem-se de pessoas, de soldados, de corpos, de água. As novas metralhadoras automáticas agilizam as nossas mortes, apressam a nossa guerra, dão ritmo ao monótono soar das criaturas lancinantes. A marcha dos Aliados sobrepuja os Impérios, um mundo e um ciclo se fecham e o século dezenove parece, finalmente, terminar. Aqui. As fotos falam mais que mil palavras.

final dos tempos?
BERLIM – Depois que somos exterminados alguma coisa acontece com a gente. Foram descobertos pelas tropas aliadas campos de extermínio de prisioneiros, a maioria judeus, poloneses, homossexuais e ciganos. Lançadas, mergulhando sobre o Japão, little boy e fat man incineraram 220 mil vítimas, a maioria civis. A partir desse dia, a guerra tornou-se um estado perene ao estar no mundo: estamos em guerra contínua, com maiores ou menores conflitos, armados com o que alcançamos com os dedos.

a morte de um deus
TOQUIO – Todos presenciamos os violentos bombardeios das vilas, a fome, a falta de recursos, a destruição de Hiroshima e de Nagasaki, a invasão da Manchúria e a tomada da Coreia pelos soviéticos e americanos – a pose de Stalin, Roosevelt e Churchill na foto em Ialta – assistimos o singrar da esquadra real nos nossos próprios mares, mas havia ainda algo por presenciar. Chorei ao escutar nesse 15 de agosto de 1945 a voz divina do nosso imperador pela primeira vez na vida. O sagrado vinha pelo rádio. O maior símbolo da nossa derrota eterna é quando morre a eternidade.

stop waring
WASHINGTON – Uma cortina de fumaça laranja encobre o horizonte e as matas densas, sentimos o corpo coçar como uma alergia e os pêlos arderem como num suspiro; nesse tempo, no tempo de um suspiro, o fogo nos consome os olhos as roupas os cabelos as unhas as vias e sentimos o perfume da nossa pele se evaporando, esfumaçando e descolando lentamente dos tecidos, como um pano velho, como uma geleca amorfa e fedida conforme percebemos que não estamos morrendo nem queimados nem alvejados nem asfixiados, conforme percebemos que nem mesmo estamos morrendo.

Graças no Deserto
SÃO PAULO - Hoje o presidente Bush foi visitar as tropas no Kuwait para o Dia de Ação de Graças. Foi o segundo dia seguido da operação chamada de “Tempestade no Deserto”, os jatos americanos fizeram chover fogo nos esconderijos subterrâneos dos iraquianos resultando em imagens incríveis.

a liberdade do medo
SARAJEVO – Em estados de sítio, de guerra, de calamidade pública, de catástrofe, nota-se o aumento significativo do medo da população, o seu confinamento deliberado em seus apartamentos. Nessas horas negras de instabilidade social, em que o Estado quase não existe, em que o genocídio é permitido, em que as etnias se dividem, surge aquela figura do pai, do irmão, do tio ou primo que ousa sair de casa, cruzar a rua e correr até um supermercado, até uma farmácia conseguir suprimentos com os ridículos centavos que restam das economias. No mínimo conseguir água. Esse trajeto é talvez o momento mais sublime da sua vida: consumido pelo medo, você avança, rápida e atentamente pelos atalhos conhecidos, você se depara com os corpos de outros como você e abaixa velozmente a cabeça – uma liberdade te invade, a liberdade do caos, a ternura da brutal luta pela sobrevivência, nada mais: o medo te liberta qual força primitiva que acende no fundo da medula e te guia de olhos abertos, ouvidos atentos e quase um sorriso no rosto, como um maluco por entre os destroços.

guerra ao terror
NOVA IORQUE – Quando treinamos por meses e viemos para cá, me imaginava, como os combatentes de outras guerras, entrincheirado, atirando contra o inimigo, invadindo instalações militares, perseguindo terroristas malignos, revoltados ignorantes que ousaram atacar meu país. Aqui, eu tenho que cuidar do trânsito em um cruzamento movimentado, uma senhora se aproxima, me abraça, me comovo, a abraço de volta, ela aperta um botão e nos explode e eu morro; devo checar os carros que passam pela estrada, faço sinal para ele parar, ele avança até nossa guarita e nos explode e nós morremos; temos que ocupar um bairro da capital, nós bombardeamos os prédios por três dias seguidos com mísseis tomahawk, eles se rendem, entramos pela manhã, todos correm, como kamikazes, como zumbis e nos explodem e nós morremos.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

o lado da tarde

Toda tarde toda tarde aquilo. Vinha caminhando até ali, repetia isso com a perseverança da brisa do final da tarde toda tarde. Era imaginação ou memória. A casa era pequena, numa cidade pequena onde se caminha para ir aos lugares ou vai de bicicleta, aquelas bicicletas velhas, sem marcha, aquelas cidades sem ruas asfaltadas e parca iluminação pública. O menino da casa adorava aquelas tardes e aquela repetição de todas as tardes. Não havia surpresas, mas havia expectativas, como num aniversário que vem todo ano no mesmo dia, mas sempre ansioso. Era aniversário todos os dias, cada dia um novo aniversário e cada aniversário mais e mais frequentes os olhares, os não-dizeres, os abraços, os olhares novamente, mais coisas não-ditas, mais abraços, de novo novos olhares, outros mesmos não-dizeres, mais abraços longos de olhos fechados. Estar junto era como escutar um álbum inteiro junto com alguém: poucas falas, muita troca e um espírito jovial de férias, como voltar numa viagem de ônibus longa de noite com alguém do seu lado apoiando a cabeça no seu ombro ou ouvindo a mesma música que você, como um cafuné. Vinha a chuva, molhava as casas, as ruas faziam poças de lama e sempre vinha a hora de se encontrar, apesar da chuva.

E então, houve aquele dia, aquela tarde, que eles foram no parque, compraram pipoca e foram na roda-gigante. Em tempos em que existiam rodas-gigantes. Fazia muito tempo desde que tinham ido numa roda-gigante, os dois não lembravam bem quando, muito tempo. Compraram a pipoca e foram, os únicos a irem na roda-gigante. As lembranças desse dia são turvas, porque não é fácil distingui-las das invenções. Com certeza subiram sozinhos, o medo, agarrando ao braço do outro, a parte mais alta da viagem, a viagem de um lugar para o mesmo ponto, uma volta, uma roda. Lá, na parte mais alta, subitamente parou e alguém gritou lá de baixo, quando as luzes da parca iluminação pública do fim de tarde apagaram, que a roda-gigante tinha parado e a luz caído. A brisa do fim de tarde vindo como em todas as tardes, ali no alto era mais fria, o abraço de todas as tardes, mais apertado, mais assustado, e a chuva, que começou um grandes gotas geladas, mais supina. Esperaram.

Devem ter comido a pipoca toda, ou jogaram o milho molhado lá do alto em tom de brincadeira ou de medo ou de protesto, reclamação. Jogaram. A chuva molhava os seus cabelos que escorriam como se chorassem, com o dia se apagando. Falaram, mais do que o normal, porque ali em cima não havia mais o que fazer senão conversar, e falaram de muitas coisas, falaram da chuva, de coisas pequenas e insignificantes e que se amavam. Um disse pro outro ou o outro pro um, ou os dois. Não soou grandioso, porque sabiam o que viria depois, mesmo que ficassem juntos, sabiam o que viria depois de ficar juntos, assim como sabiam que, uma hora ou outra, a roda gigante, ainda que agora parada e parcamente iluminada pela vermelha luz do sol se pondo, iria voltar a rodar e descer daquele topo ao chão.

Então, assim que tocaram o solo, pensando em se secar, perceberam o quão absurdo aquilo soava, porque estavam encharcados, os cabelos escorrendo, como se derretessem, molhados molhados e mais um olhar longo lânguido lívido de uma vida inteira de uma tarde.




A partir de Do Outro Lado da Tarde, de Caio Fernando Abreu

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

radiografia

Não me lembro bem quem foi que disse que o esperma é uma prótese efêmera. Algum poeta, mas não me vem o nome. “Esperma é uma prótese efêmera”. De qualquer forma, é uma afirmação idiota. Não faz sentido algum.

“Infinite space, is there such a place?”

Existe um tipo de honestidade que é bem sublime: enxergar uma menina, tão linda, tão incrivelmente pra cima, linda mesmo, chorando de amor por um rapaz que não sei se a ama de volta ou não, com certeza gosta dela, já ficaram, mas talvez ele não seja apaixonado por ela, enquanto ele permanece sério e ela segura-lhe os pulsos, triste, falando com uma voz que não emprega normalmente, ninguém a escuta assim, ninguém a vê dessa forma: é exclusivo para o seu amor; ela quase lhe implora que escute o quanto ela se afeta pelas coisas que ele diz, o quanto o seu olhar, a sua aprovação – aprovação é uma palavra forte, mas a sua boa vontade em relação ao que ela pratica – é importante para ela, o que ela sente quando ele toca violão, ou quando ele ri de algo que ela diz. Isso é de uma honestidade quase sobrenatural, uma proximidade infinita – é invejável a qualquer um que passe pela angústia de enxergar essa cena: um casal de amigos em uma cozinha, no canto de uma festinha.

Quando você é adolescente tudo o que se faz é importante para todos, reverbera no mundo inteiro. Depois, cada um cuida de si e ninguém dá a mínima se você dá o cu três vezes ao dia, se você trepa casualmente com uma amiga em segredo, se você assalta lojas de conveniência ou coisas do tipo. Nem você se importa muito em contar aos outros: vida sua. Como as coisas então se tornam efêmeras. Será que é disso que o poeta estava falando?