quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

presságios na zona sul

E sem decidir como escrever minha história
está muito difícil escrever
olho amigos tampouco eles estão melhores também como folhas novas secas pisadas craquelando
Sinto presságios

Nos desejos recalcados seculares telúricos reboando nos subsolos da cidade e prontos para ejacular lava dos orifícios encanamentos proibidos
Nos talheres de prata quebrados familiares tradicionais tilintando pelos corredores do castelo nas escadarias das universidades nos fortes históricos nas masmorras dos olhos dos pais
Nos socos violentos voadores que velejam os ventos de inveja e luxúria pelas bordas das asas das borboletas - como já disseram
Nos fundos das festas sufocados de gemidos agudos agulhas genitálias babando fundo nos corpos dançantes
Na saudade & tortura & gozo das fotografias analógicas; pra que serve minha carteira de motorista, meus óculos novos, os prêmios universitários, o número da previdência social, os cálculos das tarifas bancárias, as copas de escritórios com coleta seletiva e campanha de agasalho e adoção de animais fofinhos...?
Nas prateleiras mesas computadores almoxarifados terabytes ambulantes desesperados repletos cobertos de foster wallace, miguel gomes, marcio abreu, ginsberg, burroughs, borges, godard
Nos prédios de manhanttan, seus mapas de metrô esgoto linhas de ônibus ataques terroristas como cartografias móveis avançando pelas sinapses da mente gerando trovoadas que decepam os nomes de personagens de fotos de turma, excrementos em forma de novos endereços, cartas de amor talvez
Nas batalhas virtuais perdidas são sempre perdidas e o sôfrego sofrer repetitivo sobre a enorme vontade de ser dos seres
No religioso risco dos esportes radicais, no sagrado voar das aves e das nuvens (especialmente sobre os morros verdes da zona sul), nas trágicas ceias de natal repletas de peru e vinho e família, na bíblica inflação dos aluguéis, nos proféticos livros de deleuze & guattari e críticas aos livros de deleuze & guattari, no helênico ciclo-ativismo, no lindo traço dos lápis 2B S2, na heróica editora cobogó, queria listar mais
Nos olhos cinza-sinceros semi-sorrindo dos amigos perdidos morando mal, sentem sede na boca e no rabo, fugidos, imigrantes tristes empilhando empilhados passos de jabuti na europa dos corações sangrantes e nas trocas de namorados, me sinto trocado, eu sei os segredos, quem me dera não errar dessa vez
Nos distúrbios mentais dos seus olhos cinzas & cabelos lindos em praças do rio som de coco & maracatu prédios prédios prédios adeus soçobrados sobrados adeus ninguém aguenta olhar pra cima tanto tempo tudo sobe, os preços e os prédios
Nas lentes lindas da minha câmera analógica vejo meu avô e meus amigos nus como índios, greve dos garis e chorume concentrado de um milhão de reveillons pentecostes copacabana
Nas selvas dos miolos dos pentelhos dos estudos dos cabelos dos sistemas de pensamento do apichatpong das músicas do frusciante dos desejos complicados complicadíssimos
Na música eletrônica ~~~~~~~~~~
No seu beijo e baba e bunda e fundo e tudo que não cabe no seu quarto armário apertados bichos de pelúcia patrulhando a seborréia que escorre interminável do seu orgasmo galático derretendo nossa cama de cacos de vidro sobre os azulejos hidráulicos históricos do piso que seus pais escolheram, somos putaria jurássica

sábado, 14 de novembro de 2015

vou morrer de tanto chorar

hoje descobri como vou morrer
me veio entre sonho e outro
em limbo de lucidez austral talvez
que vou morrer de tanto chorar

não acidente assassinato doença
nada disso que mata todos os dias
não tortura assédio enchente seca
nada disso que mata todos os dias
não descaso do governo fome tragédia ambiental
nada disso que mata todos os dias
não chacina fascismo facada assalto
nada disso que mata todos os dias
não incêndio tiroteio bomba fogo nos olhos do menor
nada disso que mata todos os dias
não ataque terrorista catástrofe tsunami tóxica
nada disso que mata todos os dias
não degola polícia câmera de gás
nada disso que mata todos os dias
não saudade crepúsculo ataque cardíaco
nada disso que mata todos os dias
não câncer corte ânsia sede
nada disso

suicídio olhar ouvir e ir e devir
ser todas suas causas mortis somentes
sozinhos em suicídio se apagando
morrendo de tanto tanto chorar

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

apnéia

Eu teria muito pra te contar do cativeiro - cheiro de urina e verniz e gasolina, texturas de paredes toscas, ásperas, trepidar e ricochete de geladeira de algum cômodo acima, cozinha provavelmente, torturas com choques elétricos e arrancar de unhas, cegueira, ridículo de chorar ou gritar ou espernear ou se inconformar, visitas frequentes de fantasmas, ânus, toca dos escritos, simples dor, talvez terra talvez não, acima o inferno, aqui a caverna, jogos de palavras, palavrões, bizarra disciplina perdedora de corpo e de mente, benção da água, língua, lágrimas, burburinho catatônico incessante da própria voz e de dentes seus, deformidade do corpo, imobilidade, jesus cristo, paladar de merda, cheiro dos órgãos, menos unhas que dedos, perda do medo e medo incessante... - entretanto talvez a terra na minha boca desfaça a aspereza dos fonemas, ou o trepidar dos lábios confunda as palavras, e de forma alguma eu quero transformar a complexa vida vívida vivida num ávido reflexo, num cuspe, num flashmob grotesco de insatisfação: talvez, portanto, eu precise desesperadamente dessa câmera, pra que ela seja a minha melhor arma, pra que ela mostre ao outro como eu o vejo, e principalmente, pra que toda lembrança do cativeiro - que revisito sempre nos pesadelos e nas filas do banco - seja revelada e mantida presa na minha jaula, como um frame na noite.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

desconfio

desconfio das festas que bombam demais ou por tempo demais ou que todo mundo ama nesse espaço estriado pouco claro que são as redes sociais e que tem mais confirmações do que caberia uma vez que parece que todos os eventos de sexta tem todo mundo confirmado em todos;
desconfio de quando me cumprimentam com muito carinho quando não me conhecem mas como se me conhecessem;
desconfio de pessoas que gritam ou falam muito alto ou não param de falar ou tem muita opinião assertiva sobre tudo numa noite em que só saí pra beber;
desconfio quando passam a mão na minha perna debaixo da mesa pode ter sido um esbarrão quem sabe;
desconfio de garçons que já chegam com a cerveja aberta na mesa ou já abriram antes de perguntar ou que não respondem perguntas direito;
desconfio de mesas muito grandes em que não está claro quem consumiu o quê especialmente quando eu não conheço nem metade das pessoas que estão ali sempre peço por fora ou arredondo pra baixo malandro malandro mané mané;
desconfio de bares point sem qualquer motivo aparente ou que o motivo é aparentemente estúpido;
desconfio da autoria das coisas que as pessoas postam não que eu me importe com autor mas quero saber quem fez mesmo;
desconfio mesmo de qualquer um que fale qualquer coisa sobre qualquer coisa pra mim é difícil falar alguma coisa então desconfio;
desconfio de (certas) risadas também;
desconfio de comerciantes que tem cara de que inventam um preço pra cada pessoa mas acho que isso é geral;
desconfio de caipirinhas de rua mas confesso que sempre tomo e não me arrependo;
desconfio de pessoas que usam "na verdade";
desconfio de gatos mesmo os fofos talvez principalmente os fofos visto que geralmente gatos são fofos;
desconfio (muito) de mauricinhos que estão na mesma roda/mesa/etc que eu;
desconfio de moradores de rua e depois me sinto um merda preconceituoso não vou levar isso adiante e depois desconfio da minha atitude auto-consciente vitimizante passiva olho pra frente ponho a mão no bolso se ele levantar eu corro mas tentar sacar se é realmente um lance violento ou não antes de correr etc eu sou tão menor que essas questões e simultaneamente tão biologicamente envolvido;
desconfio de boa parte dos políticos, empresários, CEOs, presidentes de multinacionais, basicamente todo mundo que aparece vestido de terno em jornais;
desconfio mesmo de quem usa terno;
desconfio de quem acorda muito cedo pro trabalho;
desconfio de trabalho;
desconfio de quem acha que arte é pra se expressar ou pra comunicar;
desconfio mais que tudo de mim mesmo diante de situações em que eu pareço estar respondendo automaticamente a novas perguntas (as perguntas são sempre novas quando refeitas é preciso re-respondê-las) usando de conceitos fixados em grupos de semelhantes incapaz de generosidade para os outros e extremamente desconfiado e arrogante.


segunda-feira, 17 de agosto de 2015

A difícil tentativa de dar uma opinião polêmica

Escorrendo sobre as margens de lodo da lagoa, o restaurante chique estilo modernoso-rústico meio pra gringo e pra moradores muito ricos - aquele tipo de morador rico que, ou gosta de passar por gringo, ou assume um estilo de em-viagem, um certo padrão visual internacionalmente tido como elegante, quer dizer, algo que, assume-se, qualquer pessoa, pelo menos qualquer ocidental, vai achar agradável, modernoso, rústico, elegante etc. Na mesa mais afastada do bar, com pouca iluminação, digamos algo que poderiam chamar de romântico-modernoso-rústico, dois homens desse padrão, não sabemos se gringos ou se passando por gringo ou isso tudo aí, conversam entre doses de drinques que não sabemos o nome - são drinques delicados, refrescantes sempre, com cores não tão vivas e hortelã, em taças miúdas, bem miúdas, com tanto gelo que deve ter pouco a se beber efetivamente. Mas não sabemos - não frequentamos muito esse tipo de restaurante.
Um dos homens veste camisa social preta com um botão aberto por cima de um blaser verde musgo bem escuro de veludo revestido internamente por um tecido listrado verde clarinho e branco muito delicado, não sabemos dizer qual tecido, pensamos em seda, mas depois pensamos que talvez seda seja um pouco demais, nem mesmo sabemos se se fabricam blasers assim, veludo com seda, um pouco surreal, mas talvez não, não sabemos mesmo, é um blaser bem elegante e de corte impecável, o que nos faz pensar que é feito sob medida (mas não sabemos). Esse homem é careca assumido - raspa o pouco de cabelo que por ventura ainda cresça - e usa óculos quadrados de aros de plástico vermelho. Não vemos suas pernas, mas sua posição sugere que estejam cruzadas em pose elegante, enquanto casualmente beberica de leve seu drinque azul.
O outro homem veste camisa social azul com mangas dobradas até a altura dos cotovelos, dois botões abertos no peito, ainda possível ver os vincos da dobradura da camisa nas laterais dos braços e no ombro e duas linhas ao longo do peito em paralelas que coincidem com as longitudes de seus mamilos (invisíveis claro, estamos assumindo aqui uma aproximação, uma possibilidade bastante provável que, pra efeitos de humor, queremos levar à cabo - supor precisa simetria entre dobradura de camisa e mamilos nos soa divertido). Seu blaser, menos elegante, mais ordinário (íamos dizer "mais dia-a-dia" com a acepção de que parece ser uma peça de trabalho do segundo homem, mas depois "mais dia-a-dia" nos pareceu impreciso - vamos prosseguir e refletir sobre a possibilidade de "mais dia-a-dia"), e apóia sua bolsa-maleta ao seu lado - tudo sugerindo que este homem veio para o restaurante imediatamente após o trabalho diário. Tem cabelos cheios e despenteados, olhos grandes, mãos grandes, pele notadamente mais branca que a de seu colega, e também jeitos menos sofisticados, menos elegantes, o que nos parece indicar que a sugestão desse restaurante veio do primeiro homem, do mais elegante, de fato, "faz mais a cara" daquele (expressão aqui empregada não apenas pra indicar essa semelhança de gosto, mas também num gesto irônico de que o primeiro homem quase se camufla como peça de decoração: suas roupas combinam-se perfeitamente com as almofadas dos bancos, tanto em textura quanto em tonalidade).
Não comem. Bebericam drinques. Conversam.

É difícil de engolir.... difícil mesmo. Eu não sei o que te dizer agora, mas também não vou dizer que concordo. Apenas... entendo.
É porque estou certo - por isso você não tem resposta.
Me soa terrivelmente misógino, acho...
Não, justamente o contrário - todo esse mundo de ideologias, de sistemas, de, se me permite colocar nesses termos, uma vontade de razão, tudo isso, é fruto dessa forma-pensamento que utilizamos, é fruto da nossa sociedade macho branco heterossexual ocidental capitalista, entende?
Mas é um sofisma grosseiro incluir o feminismo nessa conta, ou seja, o que surge como oposição à esse sistema...
Claro que é possível incluí-lo: o feminismo atua de forma a incluir certas práticas dentro dessa sociedade, atua pela inclusão, seja de direitos, ou de leis.
Ou seja, de maneira a transformar essa sociedade pra melhor, pra curá-la de pelo menos um de seus preconceitos...
Talvez, mas foi você mesmo que colocou a questão - de como mesmo em ambientes, digamos, 100% feministas, totalmente pró a inclusão das mulheres nos mercados de trabalho, nos ambientes que lhes foram cerceados por tantos séculos, mesmo ali, resta uma impressão de que elas não executam tão bem quanto um homem...
Não foi isso que eu disse.
Foi o que você falou, você falou do seu departamento, das mulheres no seu departamento...
Falei justamente pra enfatizar o quanto ainda temos que avançar, que mesmo num ambiente aparentemente aberto a mulheres, ainda restam...
Não, não, não estou questionando isso - isso é claro: a nossa inclusão parcial está bem longe de ser ideal, mas você mencionou - pelo menos assim entendi - que você não achava que as mulheres do seu departamento eram tão brilhantes, que você tinha a impressão de que elas estavam no lugar errado, porque aquilo seria de certo modo uma função de um homem - você mesmo comparou: seria como se criassem uma cota para mulheres em um campeonato de esporrada à distância...
Fala baixo. Você está eufórico. Calma.
Perdão... bom, você colocou dessa maneira.
Sim, eu disse - disse que certas funções não foram pensadas pra serem executadas por mulheres, são espaços totalmente masculinos, mas isso não quer dizer imediatamente que sejam machistas. - ao contrário, digamos que existe mesmo uma espécie de homoafetividade intensa nesses espaços. Nas Forças Armadas, por exemplo.
Sim! Exatamente. O meu ponto, se me permite uma metáfora, é que é como se nós estivéssemos jogando esse enorme jogo, cujas regras foram escritas por homens, e que era exclusivo aos homens - brancos heterossexuais ocidentais etc - jogá-lo. E agora, vemos todas essas minorias reclamando seu direito de jogá-lo. Justo, claro - mas elas se esquecem de que as regras foram feitas por homens para homens, eles serão sempre os melhores jogadores, esse é o jogo deles, eles vão ganhar sempre...
Mas eles querem mudar as regras também! Para que elas os contemplem também! Estão subindo ao Congresso, estão aprovando novas leis, estão mudando o jogo por dentro...
Não, você não está acompanhando. A própria ideia do Congresso etc, de como o Estado atua, de qual seu papel na sociedade, enquanto sujeito, entende?
Não, acho que você está propondo uma espécie de revolução, mas sendo extremamente preconceituoso com todas essas minorias que você diz estar levando em consideração. Não existe política nisso que você diz, apenas palavras fortes. Apenas ser do contra.

Os dois homens tornam a beber seus drinques elegantes sentindo a brisa leve e agradável de onde estão. Os drinques estão balanceadamente refrescantes, os gelos titilam alegremente (íamos dizer "como sinos de natal", mas depois nos pareceu uma expressão por demais jocosa, como se estivéssemos emitindo algum tipo de julgamento moral desse tipo de bebida e, por extensão, dos dois homens - não estamos), mas eles não chegaram a um entendimento.
Pedem a conta com um sinal e um gesto de mão-que-escreve-no-ar. Foi caro.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Entrada

Nossa, eu conseguia sentir forte seu cheiro, como se você fosse a própria brisa do mar. Essas situações pedem depoimentos dramáticos, né? Realmente tem essas coisas que você só compreende essencialmente quando elas acontecem contigo - talvez a maioria das coisas - um conhecimento "corporal", "visceral", como costumam dizer, né? Como eu posso te explicar?
Começa pelo começo... (riso cheio de dentes brancos)
Poxa... bom, eu não queria usar a palavra "se apaixonar" porque ela é muito forte e muito usada vulgarmente como uma situação muito explosiva, romântica, né? Tem a ver com o que eu quero dizer... Bom, se você me permite uma digressão etimológica, acho que páthos é a parada que estou tentando achar, que é o radical de "apaixonar-se", né? É dessa "paixão" que eu queria falar, mas não queria que esbarrasse em "apaixonado", "apaixonada", pelo menos não por enquanto, me incomoda um pouco isso agora.
Tudo bem... vamos deixar de lado. (sorriso simpático)
Tá (sorriso sem jeito). É simples, é só que a gente praticamente não se conhece, nos conhecemos super randomicamente, bem aleatório, e eu estou curtindo pra caralho esse papo que estamos tendo, acho impressionante que tenhamos chegado tão fundo logo num primeiro encontro, né?
(sorriso com dentes, olhos fixos nos olhos)
Então, e comecei a sentir essa "paixão" difícil de descrever, uma coisa realmente corporal, vou até dizer fisiológica, entende?
(pausa) Tipo uma dor de barriga? (risos)
(risos) Não sei, talvez! (risos)
(risos)
(risos - pausa, olhar perdido, pensamento por trás dos olhos) Bom, não sei o que é, mas percebi que estava diretamente relacionado contigo, entende? Notei que é esse nosso papo tão fluido, né? tão fácil, tão difícil de se ter normalmente com uma pessoa estranha, e que isso me fazia muito bem e tive essa "compreensão corporal", tipo, meio que soube dentro de mim essa coisa que estou tentando te explicar, mas o mais importante é que é uma certeza, uma descoberta, feita pelo corpo.
(olhar interessado, talvez felino, talvez jeito sensual, talvez um botão da camisa se abriu sozinho, talvez dois)
(sorriso pálido de canto de boca, olhar apreensivo, talvez volátil, talvez tropeçando eventualmente em peito recém descoberto, ligeiro gaguejar, tentativa de disfarçar) E o mais estranho é justamente o que eu estava te dizendo que não gosto muito da ideia de "se apaixonar", acho uma coisa criada, "amor romântico", entende? Acho que projetam esse tipo de coisa na vida, mas a vida não é assim, né? E a coisa é levada a um nível absurdo, de "amor à primeira vista", entende?
Eu já me apaixonei a primeira vista. Eu não esperava muito que rolasse, mas rolou, e foi incrível, uma sensação de proximidade difícil de descrever...
Tipo coisa de filme, assim?
Tipo mais que isso. Tipo, em filme é apenas o momento de se conhecer, eles sempre terminam o filme quando o casal meio que se firmou e pronto - "felizes para sempre", ou alguma coisa parecida com isso que tem esse efeito. Mas isso o que eu estou falando é do próprio relacionamento explosivo que a gente teve. Foi curto e intenso. Foi muito importante pra mim. (rearruma-se, talvez note botões demais abertos, talvez feche apenas um)
É, acho que você entende, então, o que eu estou tentando descrever. Essa sensação corporal, esse páthos intenso de um encontro significativo com alguém, ou que te confere significado de algum modo, quer dizer, não significa nada, mas não é esse o ponto, o ponto é o encontro intenso, a conexão, né?
Sim... (sorriso)
Pois foi isso que eu senti, que estou sentindo ainda... e começo a desconfiar que talvez seja apaixonar-se, talvez seja amor a primeira vista, talvez seja isso tudo que eu sempre recusei, combati até... (proximidade, momento crítico, inclina-se para beijo)
(não se inclina, mantém olhar, não se reclina tampouco)
(apreensão, certa dúvida, agora não tem mais volta, inclina-se para beijo pra valer)
(aceita todo novo toque, recusa beijo olhando pro lado quando lábios quase colam)
(pensamentos por trás dos olhos, inclinar-se se torna abraço, respira fundo)
(recebe abraço, pausa, desfaz abraço, sorriso miúdo sem dentes, talvez mais dois botões se abriram, talvez note e feche apenas um)
(talvez note peito redescoberto, talvez certo grau de desejo sexual primário)
(pausa) Olha, é que eu não senti tudo isso que você falou...
Não, claro, não era esse meu ponto também... Aliás, acho que foi bastante exagerado o que eu falei.
Sobre a gente estar se dando tão bem num primeiro encontro?
Não, sobre apaixonar-se, entende? Tipo, não acredito muito nisso, é o que eu estava te dizendo, é uma coisa inventada, vendida, muito naturalizada, mas tem data de nascimento, poetas do século XIII ou XII, não sei bem... (olhar pro chão, ou pra longe, ou pra qualquer lugar exceto o outro olhar)
Sim, na Ocitânia.

quinta-feira, 23 de julho de 2015

O Rio quer se tornar Ibiza

Tenho que admitir que tenho estado muito muito interessado em te matar, assim, é uma ideia que tem me passado muito pela cabeça, sabe? Sem drama, não quero que isso pareça querer dizer nada, e sem nenhum rancor também. É só que está cada vez mais frequente eu me pegar longas horas imaginando isso, idealizando formas, maneiras, um certo cenário, as vezes lentamente, outras um tiro na cabeça e fim, as vezes com tortura e tal. Sabe? Não, não, não tem por quê, você está sendo limitado, meio careta até, se me permite dizer, pensar numa causalidade; não é pra ser motivado, nem pra ser pensado como reação a nada, simplesmente é, sabe, "ser enquanto ser" ou algo desse tipo. Não sabe? Achei que você já tivesse lido Heidegger, não? Eu mesmo nunca li li, só assim, de passagem, alguns trechos de Ser e Tempo numa aula de mestrado que eu fiz uma vez na Filosofia. Foi ótimo. Você nunca escutou essa expressão "ser enquanto ser"? - nem sei exatamente se é essa expressão, pra ser honesto, mas... viu? Você nem conhece a expressão, sabe, esse é o tipo de coisa que as vezes eu penso em te dizer quando me imagino te prendendo numa cadeira e cortando a sua orelha, tipo Cães de Aluguel, mas conseguindo te queimar vivo sem que me matem antes, eu estaria bem atento a isso no momento, claro, seria bizarríssimo que eu tentasse emular uma cena de um filme, nessa onda a-realidade-que-tenta-representar-a-imagem-e-não-o-contrário, e realmente surgisse inesperadamente alguém e me matasse antes de te queimar exatamente que nem no filme. Bom, de qualquer forma, você ainda estaria sem orelha - e eventualmente seria morto mais tarde, né? - o que me reconforta um pouco, devo dizer... Você já viu Cães de Aluguel, eu presumo... Como não, cara? Caralho, você é muito alien - quer dizer, eu me sinto muito alien a maior parte do tempo, mas isso pra mim é bizarro, Cães de Aluguel é super batido, todo playboy assiste e diz que é o melhor filme do mundo, ou sei lá, Bastardos Inglórios... Sim, o que o Hitler morre no cinema. Pelo menos esse você viu. Gostou? Não? Porra, eu acho foda. Bem irado, pra ser honesto. Mas, bom, o que estava dizendo é que eu tenho cada vez mais imaginado essa situação de homicídio cruel, sempre bastante cruel, com níveis de perversidade radioativos, saca, e passo horas pensando nesses detalhes obscenos, e como evitar que você se desvencilhe da tortura ou que eu seja eventualmente pego ou morto, como nessa cena do Cães de Aluguel que você não viu, mas de um modo geral eu sempre acabo achando que eu vou ser pego, que vai ficar na cara que fui eu, sabe? Tipo, na real, parece que o que realmente me impede de executar, de te matar ridiculamente, de te empalar ou, sei lá, qualquer coisa muito muito cruel, é só mesmo o medo da represália depois. Que nenhuma educação de nenhuma ordem me tirou essa vontade estúpida de te torturar sem qualquer causa aparente. Você acha que tem causa? De novo acho que você está sendo meio careta... Eu sei, ok, uma possível "causa" inconsciente, mas, tipo, eu revisitaria essa sua pseudo-psicanálise ou sei lá de onde você tira essas noções, porque eu não acho que toda aparente loucura ou esquizofrenia seja automaticamente recalque ou algum "complexo" de castração ou apenas uma "pulsão de morte" ou "patrocínio" - epa, quer dizer... como é mesmo?, assassinato do pai é...? Me escapou... Ah, você entendeu, aquela história toda de assassinato primordial e tal. Acho que pode até ser, e talvez o seja na maior parte dos casos hoje em dia, mas sempre também é mais que isso, e não acho que exista um tal estado saudável de sanidade que o Freud parece estar sempre propondo e tal... Ah, sim, eu concordo. É verdade. Sim, sim, acho que sim. É, por exemplo, quando eu era criança eu lia muito e detestava os livros da Lygia Bojunga, sabe? Daí adolescente eu tive uma releitura dela e achei maneiro essa pegada meio "temas adultos nos livros infantis", sabe? Achei maneiro bater de frente com essa moralização idiota do que deve ser produto para crianças, sempre um politicamente correto bastante idiota. Mas hoje em dia, eu detesto a Lygia Bojunga, não muito por qualquer atributo da sua obra, mas porque ela é uma dessas mantenedoras de "direitos autorais" e, sei lá, fez uma editora própria só pra não ter que "ceder os seus (ditos) direitos" e não deixa ninguém adaptar os livros dela pro teatro ou coisas assim, cheia de mimimi. Cara, eu detesto essa idiotice de direitos autorais, é uma cascata deslavada, pretensamente para "proteger os artistas" (o que quer que isso queira dizer), pretensamente um "direito", essas merdas todas - direito de imagem, direito autoral - é tudo inventado pra mercantilização da arte, apenas pra isso - e quando inventaram isso, isso que eu estou dizendo era a própria argumentação da parada, pros artistas fazerem dinheiro etc. sei lá. Mas hoje em dia as pessoas falam como se fosse um direito natural do ser humano, tipo, apelam pra Declaração Universal dos Direitos Humanos ou coisas nesse nível, sabe? É muita burrice. Mas do que a gente tava falando mesmo? Ah é, a importância da infância... é verdade, eu concordo com isso. Não sei dizer exatamente como, mas acho que sim. E traumas e tal. Concordo a vera... Mais uma? Caralho, aqui é caro pra cacete. Tá, pede mais uma, vou no banheiro.
Cara, desculpa voltar a isso, mas acho que a gente tem intimidade pra essas coisas. Cara, de novo, eu tava no banheiro, e cheio de merda e mijo pra todo lado - eu sempre abro a porta com o pé e tento dar descarga com o pé também, pra não encostar nessas superfícies super contaminadas - e eu pensei em te afogar no vaso ou alguma coisa bem escatológica assim; mas daí me lembrei que tem aquela viatura da polícia ali na frente daquela boate, então eu provavelmente seria pego e foi isso que meio que abortou a minha imaginação... Tá, a gente pode mudar de assunto, ok. Sim, sim, eu meio que ouvi falar. De relance. Uma parada meio homofóbica, não é? Ah, mas, cara, eu tenho duvidado muito dessas coisas que neguinho faz circular por aí, tipo bar homofóbico e tal, e daí você vai saber melhor o que rolou e descobre que os caras importunaram pra caralho por horas a fio e vieram na moral pedir pra baixar o tom, daí rolou baixaria e porradaria, e daí é imediatamente "homofobia", tipo de argumentação fácil e pobre; ou chama qualquer tipo de ato contrário de "fascista", mais pela força da palavra, pra acabar de vez com o cara, porque ninguém vai querer se posicionar como fascista ou como homofóbico, claro - a não ser, lógico, fascistas e homofóbicos "assumidos", tipo um Bolsonaro, mas estou pensando numa galera menos abertamente fascista e que com certeza não se diz fascista - você meio que corta qualquer discussão sobre qualquer coisa deixando implícito que ser contra aquilo ou interferir ou abafar aquilo é ser automaticamente o oposto, ou seja, fascista, homofóbico, machista etc. sabe? Justamente. Justamente, e neguinho acaba entrando numa lógica de espetacularização da política, sem perceber que, essa sim, é uma estratégia, um modus operandi do fascismo, derreter a estética em política necessariamente, e não o contrário... Dilma. Nulo? Respeito, pensei muito no nulo, mas li uns artigos que o Chico Alencar postou na página dele tipo na semana antes do segundo turno e mudei de ideia. Mas não queria muito me alongar nisso... Vai lá, vai lá.
Não tá? Pois é, é grotesco, mas eu confesso que diversas vezes mijo randomicamente pra frente pela diversão de emporcalhar a parada, sabe? Movimentos brownianos de pau!

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Esperando um trem que vai te levar pra sempre

fica quieto um minuto.
cala a boca, na moral.

Esculpindo cada post
Modelando cada bosta
Cada merda, o negativo do intestino

Fica aqui comigo, querido
Olhando minhas costas
Ligando minhas pintas

só um segundo.
para de falar, porra.

Fica aqui comigo, querido
Chupando meu cuspe
Beijando minhas cartas
Olhando minhas costas
Ligando minhas pintas

Fica aqui comigo, querido
Como quem espera o trem pelado na estação
E vamos dançar com a nossa sombra
Até ela cansar

Fica aqui comigo, por favor
Ligando minhas pintas
Constelações das costelas e das costas
Encostando nesta vasta sensação
Como quem espera o trem pelado na estação
E vamos dançar com a nossa sombra
Até ela cansar
Ou até ficar tão nublado
Que ela vai sumir

terça-feira, 19 de maio de 2015

Aquilo que chamam estar numa corda bamba

ELE está com uma preguiça enorme de continuar, sabe? Quando você tem uma responsabilidade imensa e inadiável, que deve urgentemente ser resolvida e depende exclusivamente de você para tal, mas ainda assim insiste em demorar-se em atividades laterais, tergiversar, gastar tempo noutros cantos como que inventando uma importância pra essas atividades laterais, como que tentando mesmo se enganar, meio que dizendo na sua mente que aquilo que parece lateral pode ter alguma importância também, ou, talvez outros discursos mais auto-apologéticos, como algo eu-não-deveria-ser-obrigado-a-fazer-o-que-eu-não-quero, meio que transferindo a responsabilidade pra um certo sistema (quando não transferindo diretamente pra uma outra pessoa; mas você não chega a esse ponto, não, isso seria por demais evidente pra você, transferir pra uma outra pessoa algo que clara e obviamente é sua responsabilidade e você sabe bem disso; mas talvez assumir que você está sendo "levado" por uma lógica de trabalho e eficiência e produção e pró-atividade que te foi introduzida com força por um sistema X que você despreza e não quer fazer parte e deve se esforçar para estar sempre consciente de quando está sendo ludibriado a fazer o que não quer fazer por esse sistema, isso sim você pode aceitar como algo a ser evitado e, portanto, justificar a sua recusa - que poderia facilmente passar por preguiça - em trabalhar no que merece a sua responsabilidade; a própria ideia de preguiça pertencendo a esse sistema de produção de produção que você quer sempre se esforçar pra não colaborar, não ser uma peça a mais nessa engrenagem, nessa máquina que é impossível ver o tamanho, e de onde vem e para onde vai, e que alimenta suas peças e engrenagens com falsas verdades, pequenos desejos a serem satisfeitos, ilusões passageiras etc, por exemplo a ideia de que trabalho é algo nobre, ou que todos devem trabalhar, ou, mais sutilmente, que existe alguma coisa como preguiça, ou seja, em último grau, um pecado de não trabalhar, e, mesmo que não levado ao último grau, ao nível de pecado, um gesto repreensível de não estar ajudando, ou não cumprindo sua responsabilidade, como ELE, agora), e estranhamente consciente desse gesto, desse gesto de transferir para alguma outra instância, seja o sistema, ou outra pessoa, ou falsas idéias de eficiência e pró-atividade, e alongando ad infinitum esses argumentos abstratos que possivelmente justificariam a sua preguiça, sua enorme preguiça em continuar com sua responsabilidade (argumentos que até aniquilam a ideia de preguiça talvez) e ciente de que esse gesto, e o próprio refletir sobre o gesto e sobre a consciência do gesto é também uma forma, uma meta-forma, de adiar sua responsabilidade, de empurrar com a barriga, procrastinar, e, em última instância, derrotar-se pela preguiça e pelo imobilismo de argumentações abstratas na sua cabeça; sendo que curiosamente nem mesmo lhe é uma responsabilidade imposta, não é um trabalho para outros, não se trata de um emprego, de um ofício, de um serviço para qualquer pessoa, é um trabalho seu e de seu único e exclusivo interesse, só quem sai perdendo é você, tanto faz pro resto do mundo você seguir adiante e vencer a preguiça e continuar, ou manter-se em atividades laterais menos importantes, a exigência de cumprir essa responsabilidade é auto-infligida, e, mais uma vez, você pensa no sistema de trabalho pró-ativo e funcionalidade e vitalidade que imprime nas pessoas essa ideia de que tem que ser eficientes e evitar desperdício de tempo, a própria ideia de que se pode desperdiçar tempo, perder tempo e tal, a contagem de tempo estabelecida; mas que, mesmo assim, talvez você também não esteja indo longe, que também essa sua forma de encarar o sistema e de criticá-lo é bem clichê, a própria máquina já reserva espaços e funções pra pessoas que pensam assim, um outro tipo de peça, um outro lubrificante: uma outra verdade totalizante e capaz de toá-lo em uma produção qualquer, que, de um modo geral, pode ser capitalizada, apropriada, simplificada à simplicidade de quem pode desejar aquilo (mais simples para os mais simples, menos simples para os menos simples não tão simples quanto os simples para que possam acusar de simplificada a apropriação simples etc.) e é extremamente presunçoso se colocar como alguém que poderia destroçar esse sistema simplesmente deixando de lado uma responsabilidade auto-imposta e procrastinar, até porque isso é possivelmente o que a maior parte das pessoas no globo faz; sendo crítico, parece mais radical ser uma pessoa responsável com seus projetos, crítico consigo mesmo e suas procrastinações, consciente desse lugar fácil de crítica ao sistema, dessa saída preguiçosa de que qualquer coisa que te faz sofrer ou te coloca em dúvida, ou que você é incapaz de realizar com a devida precisão e satisfatoriamente e, por isso, te fará perceber sua própria falência e simplicidade diante do mundo seria anti-natural ou culturalmente imposta; é fácil culpar o sistema ou outra pessoa, ou, menos simples, o sistema em si mesmo (mas tendo sido empurrado pra dentro de si por um agente externo corruptor, agora impossível de eliminar, pela cultura ou qualquer nome que tenha, melhor não se perder nesse debate), essa parece uma saída óbvia, e a saída não óbvia, não fácil, seria, portanto, exigir de si cumprir suas responsabilidades o melhor possível, cumpri-las atenta e criticamente, colocando todo seu empenho nelas, e, assim, tornar-se facilmente alvo de críticas duras, expor-se claro, porque você estaria inteiro ali, você teria feito algo, finalizado, e todas as suas fraquezas e burrices e incapacidades e simplificações e condições de classe e ranhuras de raciocínio e deturpações e, em último grau, todo o seu óbvio pertencimento a essa máquina azeitada de produção de produção, estaria evidente, até mesmo pra você (você se criticará duramente também), dando a tudo um invólucro de fracasso talvez, e que portanto, quando ELE hesita entre sua enorme preguiça e o cumprimento de sua responsabilidade auto-infligida, hesita apenas entre dois lados da mesma moeda, moeda essa que é a corrente das engrenagens, hesita entre o salto do trapézio ou a corda bamba onde deve cair e se equilibrar depois.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Manoela e a roda

Manoela sabe que quando o samba gagueja não quer dizer final mas breque, ou seja, Manoela entende que todo toque toda ginga ou bamba fraqueja pra poder trocar olhar mais tempo, pra fazer durar o tempo, pro tempo real ser tempestade, temporal, enchente e tal, e do fundo desse tempo todo poder voltar como esgoto em maré cheia. Ela anda descalça na rua atenta mas desleixada nas poças amarelas de varíola e cólera e raiva, catarros descartados pela chuva, carros assassinados pela enchente, servos do sistema, quer dizer, tudo que ela despreza mas não teme. Manoela é esguia, é linda, é peixe, enguia, é fruto podre na varanda ao vento ao ataque do tempo e do vírus; Manoela é calma, é como a lama abaixo.
O que Manoela não sabe é que naquele lado daquele dia, no laudo dos sobreviventes, não havia a poesia das águas, mas a prosa dos jornais, os ataques dos abutres, a sujeira dos asfaltos, e os altos e baixos das depressões apaixonadas, portanto, o nado desesperado dos ratos nos navios que singram, os patos que migram, o cheiro que antecede os terremotos, e que cruzar a rua descalça seria um zarpar sem volta, e que entrar naquela roda, naquela praça, excelsa a chuva do céu, lenta a nave dos olhos, forte o perfume do fumo, morria a criança abraçada no fiapo de sentido que é sentir-se vivo infelizmente.

Assim, Manoela descansa os olhos na roda à frente na praça sobre as poças podres sob a garoa boa da tarde de outono morno e desesperadamente triste sentindo que toda a sua vontade de estar ali se fora assim que sujou seus cabelos negros naquela água, quer dizer, que simplesmente sair de casa era sujo. Manoela olha pra si, pras suas roupas coladas ao corpo, pros seus colares e pulseiras, pro seu ventre livre à mostra, pra sua saia rasgada e recosturada, pras suas cores tristes, pras suas unhas, pros seus pés submersos no mangue...

Manoela sabe que tem uma pergunta mas não sabe formulá-la e então melhor calar-se pra quando puder dizê-la, fazê-la agora soa prematuro.
Manoela não sabe que ela é a pergunta prematura e linda e enguia e livre e descalça e chuva e rescosturada e fumo e praça e terremoto e tempestade e de volta o samba se encaixa nela como só depressões apaixonadas encaixam.

terça-feira, 28 de abril de 2015

aquele ele

O que fazer?
ele se pergunta enquanto soca ambos os joelhos cada um com uma mão simultaneamente e com muita força mesmo, tão forte que marca-lhe primeiro vermelho depois roxo igualmente em ambos os joelhos.
Ele está chorando muito, convulsivo, bem feio, afinal são poucos os que permanecem bonitos quando choram - e ele, que mesmo sem chorar não é uma beleza, ou, pelo menos, não é alguém que o senso comum destacaria por beleza, quando chora então fica com uma cara feia, toda contraída. E chora aqueles choros silenciosos, terríveis, pontuados por fungadas de nariz, mas sem nenhum gemido, as vezes um guinchar muito agudo e muito baixo e curto e seguido por uma fungadinha. E lágrimas também, claro.
Ele não está preparado praquilo, praquela solidão terrível, praquele não saber o que fazer, praquela casa de sempre, e aquela cara de sempre, praquele medo dos outros, praquela falta de carinho dos outros - que ele entendia não ser algo gratuito, o carinho, veja bem, ele não é ingênuo e não acredita que nascer significa portanto ser feliz, aliás, longe disso, bem longe disso, quase o contrário, e que, na verdade, o estado em que ele se encontra agora era para ele o estado normal de se encontrar, uma vez que vivo (aquela sabedoria de Sileno e tal), mas ainda assim, o desejo de receber carinho de outrem sobrevinha, e um subsequente medo de ser ridicularizado quando ensaiasse pedir esse carinho, fosse como fosse, lhe parece absurdo esse carinho - exatamente pela sua exemplar visão de mundo onde o normal é chorar nos cantos sem incomodar ninguém.
Também o medo da imagem de chorão o consume, e aumenta a sua solidão. Antes, quando não sabia o que fazer e chorava dessa forma, ele costumava procurar seus amigos, para consolo e carinho, mas agora, lhe parece que, primeiro, seus amigos estão fatigados desse tipo de consolo e carinho, segundo, que, sendo criterioso, não é esse o tipo de carinho que ele está exatamente interessado, uma comiseração por seu estado miserável, não, ele busca um carinho desregrado e dado sem ser pedido, um carinho que o senso comum destacaria como genuíno amor, fosse de amigos, mas mais especialmente de alguém que pudesse chamar namorada (ele é heterossexual) ou algum desses novos nomes dados a pessoas que se envolvem sexualmente e se oferecem carinhos desregrados mas não necessariamente vinculados por aquilo que o senso comum chamaria "fidelidade", muito embora as pessoas assim envolvidas provavelmente discordem - e provavelmente, com razão - do uso deste termo, uma vez que ambas sabem no que estão se envolvendo, não estão sendo "infiéis" quando se relacionam com terceiros, enfim, e terceiro, que chamar um amigo e encontrá-lo para chorar e perguntar o que fazer soa agora pra ele como uma espécie de imagem de sofredor muito tosca, como algo que parece ser falso, como uma projeção péssima do seu genuíno sofrimento que vai, mais uma vez, requerer a comiseração comprada do seu amigo, algo que o senso comum chama as vezes de "chantagem emocional", que pode, se bem executada, resultar, como dito, em alguma forma talvez de carinho, mas não o carinho almejado por ele.
O ponto-chave é, portanto, como receber carinho sem pedir carinho.

Ele não sabe o que fazer.
vou ao banheiro fazer cocô, pensa.

Ele decide olhar sua caixa de entrada do email enquanto defeca. Ainda chora um pouco. Ainda funga um pouco. Defeca pouco também. Lê um email de um dos seus aplicativos de espaço virtual na nuvem dizendo com frases alegres naquele vocabulário típico de economia criativa de internet que ele acabara de ganhar 500 gigas a mais de espaço na sua conta! e essa notícia o alegra parcialmente, ele para de chorar, termina de fazer cocô, se limpa, e pensa, talvez agora eu possa fazer um bom backup dos meus vídeos, eu estava mesmo precisando de um espaço extra.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

ontem sendo hoje

Acho um estojo de plástico para guardar cds e nele encontro os cds que eu copiava há muitos anos, como muitos faziam: Nirvana, Acabou Chorare, 4, do Los Hermanos, The Wall 1 e 2, Blind Guardian, Foxtrot, Dave Brubeck, Dorival, Gil etc. O estojo é de plástico com um gel colorido dentro que fica boiando, mas que agora secou, como sangue coagulado, e está muito nojento. Tem um furo pequeno por onde formam bolhas laranjas também. É muito nojento mesmo. Acho que esse estojo reflete um novo paradigma dos gostos musicais na minha geração. Desculpem. Acho que qualquer raciocínio que se sustenta numa tendência de uma geração, especialmente uma que se declara "a sua geração", um raciocínio bastante estúpido. Desculpem. Acho que é força de expressão, ou talvez porque as pessoas correntemente se expressam assim. Veio sem querer. Bom, meu ponto é que hoje em dia gostos musicais não se baseiam mais em estilos, gêneros ou bandas. É incomum alguém se colocar apenas como fã de rock ou samba. Acho que hoje em dia as pessoas se organizam por playlists - como você desenvolve seu apuro musical tem mais a ver com a ordem certa das músicas pra cada ambiente ou situação diferente que propriamente com a música ser boa ou ruim. Digamos, uma relativização. Ou uma análise bem pós-moderna dos gostos, que não se interessa tanto pela estrutura do objeto, mas mais por seu lugar. Sei lá. E também tem esses revivals incompreensíveis: agora tipo Kurt Cobain ou Cássia Eller ou um pouco ainda o Tim Maia. Eu também acho que sou assim, porque gosto desses três e de fato estou ouvindo um pouco mais dos três nesses últimos meses e agindo como se fosse fã deles desde sempre, o que sei que não é verdade.
Mas esse não é o ponto.
Estou gripado. Não propriamente gripado, quer dizer, não sei se é gripe, mas estou espirrando muito, e quando espirro arranha a garganta e estou também com muito catarro e nariz escorrendo. Daí eu faço um chumaço de papel higiênico e arrolho a narina que está pior pra não ter que ficar assoando a cada minuto, não só porque é chato, mas também porque já estou com as pontas das narinas vermelhas de tanto assoar, uma espécie de DST naso-faríngica.
Mas esse não é o ponto, tampouco.
Estou sozinho no meu quarto. Pertenço a uma classe média abastada, não propriamente rica, quer dizer, que não gosta de se dizer rica - ainda que provavelmente pertença ao 1% mais rico da população - porque reconhece seus próprios limites financeiros, e, sei lá, a maioria dos meus amigos é visivelmente mais rico que eu, e eu não viajo pra Miami e nem tenho tudo dessas coisas triviais que o consumismo nos faz desejar, tipo um computador foda, ou sei lá, roupas pra todos os lados, essas trivialidades, enfim, essa classe média alta que viaja uma vez por ano e gosta mais da europa que dos estados unidos e sonha fazer coisas que nunca faz. Em tempo. Moro com meus pais - ou seja, já não tão abastado, porque adoraria morar sozinho, quer dizer, não sozinho, mas sair da casa dos meus pais, mas falta grana minha pra isso. Mas também talvez eu não me esforce tanto, ou talvez eu prefira continuar trabalhando com o que eu amo, apesar de não me oferecer qualquer renda decente, do que trabalhar em algo indecente que me ofereça uma grana obscena. Piadas... De qualquer forma, aqui eu moro, com meus pais, meu irmão mais novo, minha avó senil que anda de sutiã pela casa e pensa que ainda mora no interior de São Paulo, e uma legião de empregadas domésticas com funções diferentes, mas que basicamente estão aqui pra salvar minha avó de si mesma, caso ela decida levantar as 3 da manhã e subir as escadas atrás da cachorra ou qualquer coisa do tipo, e pra fazer faxina, e pra cozinhar porque ninguém aguenta cozinhar pra tanta gente se não estiver sendo pago pra isso; ou seja, uma espécie de círculo vicioso de vínculo empregatício, ou talvez, uma microeconomia baseada no capital dos meus pais mais pensão da vovó (que tinha avô militar, esses machismos militarismos bizarros que a gente aceita quando vêm a nosso favor, claro, não tá fácil pra ninguém, nem pra classe média abastada insegura) onde um emprego só faz sentido por conta do outro: só existe uma cozinheira porque alguém precisa fazer comida pra arrumadeira, pras duas enfermeiras e pra minha avó (e, uma vez que já tem cozinheira, pro resto da família também, claro), e só existe arrumadeira, porque tanta gente assim numa mesma casa faz muita sujeira e bagunça, e assim por diante...
Ainda não é meu ponto, mas acho que estou chegando lá.
Minha janela está aberta, o vento balança minhas cortinas (novas), e a obra em frente está gemendo um pouco mais baixo porque deve ser horário de almoço. Os dias têm ficado mais suportáveis porque é outono - talvez daí a minha proto-gripe. Explico: vivo no Rio de Janeiro, mais precisamente, na zona sul, em Botafogo. Bairro de classe média abastada e insegura, não é uma Ipanema, ou Leblon ou Gávea, todos sabem, mas também não é Barra (num outro sentido), e nem Zona Norte. Também não é Tijuca, zona sul da zona norte. Enfim. Essas análises são todas muito preconceituosas, mas temos que partir as vezes de certos discursos genéricos para se fazer entender em certos pontos. Os bairros têm uma identidade - dizer que não seria cometer a generalizacão da relativizacão, ou uma espécie de morte por osmose, sei lá. Bom, também não sei onde queria chegar com esse ponto - apenas me lembrei que ontem mesmo uma amiga muito querida (acho que mesmo ela não sabe o quanto eu gosto dela) me dava carona pra casa, daí perdemos o retorno e tivemos que fazer uma volta maior, passando então por uma praça que eu, que moro onde moro há muitos anos, sempre associei exatamente a uma espécie de retorno-adiante, enquanto ela, que mora por ali, me disse nunca ter usado aquela praça como retorno, que foi muito esquisito pra ela e tal. Ficamos então pensando como os lugares ficam carregados com esses pequenos afetos e memórias (obviamente totalmente pessoais, únicas, específicas etc e tal) criando uma espécie de teia muito bonita de possibilidades de relação, estou tentando evitar falar em conceitos nesses últimos tempos, me sentindo meio acadêmico demais, faz as pessoas olharem meio inseguras pra mim, sei lá, mas fiquei pensando nesses lugares como os rizomas e territórios de Deleuze, mas não só pensando, mas meio que sentindo isso muito fundo, como se de alguma maneira pudesse ali, então, enxergar essa beleza de possibilidades e potências em uma única praça-retorno, meio sem-graça até, eu chamava criança de "praça-dos-pombos" (um absurdo cartográfico, claro, por falta completa de especificidade).
O que acaba me trazendo de volta aos cds no estojo nojento de plástico, porque talvez o que me interessa não é exatamente parecer que sempre fui fã de Nirvana ou nem mesmo criticar aqueles que querem terem sempre sido fã de Nirvana, mas uma sensação viva de como esses significados podem sempre se relacionar no espaço e no tempo, de como essas noções - de espaço e tempo - precisam ser mais e mais entendidas para que com justiça possamos nos declarar sujeitos de ação, capazes de transformações (políticas mesmo, mas não só, também psicológicas, eu acho, posso estar falando besteira), uma coisa meio holística dos territórios. E por isso, apesar de ser incapaz de organizar melhor esse fluxo de pensamento (e percebendo que ele é deficiente, inconclusivo, incompleto, pouco claro, talvez bastante desinteressante até - sobre isso vocês vão ter que ser simpáticos comigo e tentar ao máximo ultrapassar esses obstáculos de linguagem) é que sinceramente sofro com as atuais políticas ditas progressistas de refabricacão da cidade e de seus potenciais simbólicos, como se alguém visse aquela rede e, sei lá, não só risse da nossa cara, dizendo que ela é uma rede muito pobre e feia, mas então, sei lá, mijasse em cima, escarrasse e depois dissesse que é pro nosso bem. Não sei... ainda não achei meu ponto, mas se for pra manter a imagem da teia vou ter que parar de procurar meu ponto e passar a lidar melhor com esses fluxos pontuais interrompidos.

sábado, 11 de abril de 2015

ciúmes

faz tempo que eu tenho qualquer coisa chamada sorte ou próxima disso ou mesmo muito tempo desde que sorrio incansavelmente por um acidente de percurso qualquer que inesperada e/ou ironicamente te cruza e destrói todo o seu pequeno mundo de tristezas de melancolia crônica e alumia os ecos das vértebras. A coluna oca respira cada partícula e o sorriso prende na pele mole da cara qualquer imprevisto, como dentes de tubarão, que se mexe pra respirar, que se perde turvo treme trinca com sangue nos olhos, quase literalmente. Estão acompanhando? Não tem imagem aqui, aqui são palavras sendo. Sério. Essa sorte esse milagre esse tempo essa travessia, não, não acontece tem muito muito tempo, e quando me toco disso, como uma masturbação triste, ejaculo cada uma dessas lágrimas mais grossas que sangue, e sinto como se o dia fosse frio e algum gigante me descascasse como uma espécie de batata podre - aquela miséria tão gosmenta e desprezível que dá até vergonha de encontrar pessoas, simplesmente a existência cessa e apenas somos uma pasta amorfa como catarro, sem sabor e sem sentido.
Isso tudo é ciúme.
Eu não posso me desvincular do que já sou pros outros por mais que me esforce, mesmo em casa, sem ninguém, continuo sendo essa cara abominável inominável determinada a ser sempre sua.

quarta-feira, 4 de março de 2015

seis partes

1. Entreouve-se no silêncio, ou eu imagino. E, como de praxe, hesita-se, evita-se, ainda que haja toque, disfarça-se, demora-se, pior, atrasa-se demasiado, perde-se, enfim. Não há causa ou efeito, apenas pena - enorme pena infundada enfiada afiada, faca,  foie gras, assim, violento e deliciosamente perverso, terrível, incurável, como a necessidade de cagar.
E por isso eu sempre retorno. Vê? não tem causa, qualquer motivo que seja: é a simbiose do soco e da borboleta.

2.
flashback: Convidei-a pra assistir uma peça, ao que ela aceitou de pronto e, portanto, ericei-me acreditando-me sortudo e venturoso etc, normal. Equivoquei-me. Novamente normal.

3. Obrigatório mudar de marcha, alguma coisa errada nesse fluxo infernal de gases e confetes e surras e foliões e ruas e beijos e risos e alegria e então maravilhosamente a chuva e escuto novamente no silêncio essa loucura: paradoxo de amor. Comecei a chorar, que é como eu somatizo dúvida, é assim: fraqueza, tremeliques, silêncios longos. E você sendo vento fende lenta quente o largo. Como você molhada. Poderia mesmo dizer imunda.

4. Agora a paz é tanta que desaprendi o que é amar e cago todos os dias pontualmente. (Acuda)

5.

6.

domingo, 25 de janeiro de 2015

ensaios de carnaval

Tudo quer olhar você
E você vira o rosto
sorrindo

Sendo lindo maculelê
bailarina do oposto
sorrindo

E de lá sem te ver
Tudo teima desgosto
sorrindo

Outra volta volver
Seu sorriso é fosco
sorrindo