segunda-feira, 26 de outubro de 2015

apnéia

Eu teria muito pra te contar do cativeiro - cheiro de urina e verniz e gasolina, texturas de paredes toscas, ásperas, trepidar e ricochete de geladeira de algum cômodo acima, cozinha provavelmente, torturas com choques elétricos e arrancar de unhas, cegueira, ridículo de chorar ou gritar ou espernear ou se inconformar, visitas frequentes de fantasmas, ânus, toca dos escritos, simples dor, talvez terra talvez não, acima o inferno, aqui a caverna, jogos de palavras, palavrões, bizarra disciplina perdedora de corpo e de mente, benção da água, língua, lágrimas, burburinho catatônico incessante da própria voz e de dentes seus, deformidade do corpo, imobilidade, jesus cristo, paladar de merda, cheiro dos órgãos, menos unhas que dedos, perda do medo e medo incessante... - entretanto talvez a terra na minha boca desfaça a aspereza dos fonemas, ou o trepidar dos lábios confunda as palavras, e de forma alguma eu quero transformar a complexa vida vívida vivida num ávido reflexo, num cuspe, num flashmob grotesco de insatisfação: talvez, portanto, eu precise desesperadamente dessa câmera, pra que ela seja a minha melhor arma, pra que ela mostre ao outro como eu o vejo, e principalmente, pra que toda lembrança do cativeiro - que revisito sempre nos pesadelos e nas filas do banco - seja revelada e mantida presa na minha jaula, como um frame na noite.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

desconfio

desconfio das festas que bombam demais ou por tempo demais ou que todo mundo ama nesse espaço estriado pouco claro que são as redes sociais e que tem mais confirmações do que caberia uma vez que parece que todos os eventos de sexta tem todo mundo confirmado em todos;
desconfio de quando me cumprimentam com muito carinho quando não me conhecem mas como se me conhecessem;
desconfio de pessoas que gritam ou falam muito alto ou não param de falar ou tem muita opinião assertiva sobre tudo numa noite em que só saí pra beber;
desconfio quando passam a mão na minha perna debaixo da mesa pode ter sido um esbarrão quem sabe;
desconfio de garçons que já chegam com a cerveja aberta na mesa ou já abriram antes de perguntar ou que não respondem perguntas direito;
desconfio de mesas muito grandes em que não está claro quem consumiu o quê especialmente quando eu não conheço nem metade das pessoas que estão ali sempre peço por fora ou arredondo pra baixo malandro malandro mané mané;
desconfio de bares point sem qualquer motivo aparente ou que o motivo é aparentemente estúpido;
desconfio da autoria das coisas que as pessoas postam não que eu me importe com autor mas quero saber quem fez mesmo;
desconfio mesmo de qualquer um que fale qualquer coisa sobre qualquer coisa pra mim é difícil falar alguma coisa então desconfio;
desconfio de (certas) risadas também;
desconfio de comerciantes que tem cara de que inventam um preço pra cada pessoa mas acho que isso é geral;
desconfio de caipirinhas de rua mas confesso que sempre tomo e não me arrependo;
desconfio de pessoas que usam "na verdade";
desconfio de gatos mesmo os fofos talvez principalmente os fofos visto que geralmente gatos são fofos;
desconfio (muito) de mauricinhos que estão na mesma roda/mesa/etc que eu;
desconfio de moradores de rua e depois me sinto um merda preconceituoso não vou levar isso adiante e depois desconfio da minha atitude auto-consciente vitimizante passiva olho pra frente ponho a mão no bolso se ele levantar eu corro mas tentar sacar se é realmente um lance violento ou não antes de correr etc eu sou tão menor que essas questões e simultaneamente tão biologicamente envolvido;
desconfio de boa parte dos políticos, empresários, CEOs, presidentes de multinacionais, basicamente todo mundo que aparece vestido de terno em jornais;
desconfio mesmo de quem usa terno;
desconfio de quem acorda muito cedo pro trabalho;
desconfio de trabalho;
desconfio de quem acha que arte é pra se expressar ou pra comunicar;
desconfio mais que tudo de mim mesmo diante de situações em que eu pareço estar respondendo automaticamente a novas perguntas (as perguntas são sempre novas quando refeitas é preciso re-respondê-las) usando de conceitos fixados em grupos de semelhantes incapaz de generosidade para os outros e extremamente desconfiado e arrogante.