quinta-feira, 29 de abril de 2010

Duas da tarde na Cinelândia

Sempre que Citônio dizia no colégio que escrevia poesia, chamavam ele de viado. "Poesia é coisa de viado." Demorou quase três meses pra Citônio perceber que é verdade. (Não é à toa que estou escrevendo um conto, forma bem mais máscula de redação). Mas demorou mais ainda pra ele perceber que poesia tem muito mais a ver com internar coisas do que com externar. Feito isso, foi à Biblioteca Nacional, tirar direitos autorais sobre certos poemas primorosos seus. Chegando nas escadarias pedrosas da fachada, avistou ninguém mais, ninguém menos do que a gatinha mais gostosa da escola: Loirelinda, filha de um diretor da Globo, casado com uma professora e chefe de departamento de alguma ciência aí na UFRJ.
Inspirado pelos deuses mais sacanas de todos os credos do mundo, mais todos os brasileiros, encantou-se com a ideia estapafúrdia de uma belíssima intervenção urbana: a leitura declamada e apaixonada - e apaixonante, quem sabe? - de um de seus poemas, para ela, a musa cor-de-rosa em chortinhos diins, de pernas delgadas e fosforecentes, que subia, rebolante e lentamente, os degraus. O "soneto dos caramujos" lhe pareceu conveniente, ao que se enjoelhou no esquerdo, pos a mão ao peito, e declamou-o com voz de ganso.
No segundo verso já se arrependera, mas achou melhor não parar no meio, talvez fosse ainda pior. O fato é que percebeu que todos pararam a sua volta, com risos escorrendo pelas caras, e puxavam celulares e máquinas para registrar o acontecimento tão logo ele se iniciara. Havia até mesmo um, chamado Duracel, que já estava filmando a coisa antes dela começar! Mas, de todos, somente Loirelinda não reparara, e continuara com seus passos bambos de calopsita até adentrar no saguão da biblioteca.
Citônio terminou a recitação sob uma ovação desconcertante de várias pessoas e lhe pediram mais um, e depois mais um, e depois mais outro, ao fim do qual anunciou que, para mais, procurassem o blog dele.
Atordoado, pegou o metrô e voltou para casa, sem registrar uma só poesia.
Ainda que não tivesse conquistado Loirelinda, Citônio passou a ser dono de um dos blogs mais badalados (diferente deste aqui) e os vídeos todos foram para internet - o de Duracel foi o com mais vistos, porque era o único completo.
Citônio aprendeu que ajoelhar-se não favorece a voz e que dói o joelho, além de sujar as calças.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Sou a favor de uma arte...


-->
Sou a favor de uma arte que seja místico-erótico-política, que vá além de sentar o seu traseiro num museu.
Sou a favor de uma arte que evolua sem saber que é arte, uma arte que tenha a chance de começar do zero.
Sou a favor de uma arte que se misture com a sujeira cotidiana e ainda saia por cima.
Sou a favor de uma arte que imite o humano, que seja cômica, se for necessário, ou violenta, ou o que for necessário.
Sou a favor de uma arte que tome suas formas das linhas da própria vida, que gire e se estenda e acumule e cuspa e goteje, e seja densa e tosca e franca e doce e estúpida como a própria vida.
Sou a favor de um artista que desapareça e ressurja de boné branco pintando anúncios ou corredores.
Sou a favor da arte que sai da chaminé como pêlos negros e esvoaça ao vento.
Sou a favor da arte que cai da carteira do velho quando ele é atingido por um páralama.
Sou a favor da arte que sai da boca do cãozinho, despencando cinco andares do telhado.
Sou a favor da arte que o garoto lambe, depois de rasgar a embalagem.
Sou a favor de uma arte que sacuda como o joelho de todo mundo quando o ônibus cai num buraco.
Sou a favor da arte tragável como os cigarros e fedorenta como os sapatos.
Sou a favor da arte que drapeja, como as bandeiras, ou assoa narizes, como os lenços.
Sou a favor que se veste e tira, como as calças, que se enche de furos, como as meias, que é comida, como um pedaço de torta, ou descartada, com total desdém, como merda.
Sou a favor da arte coberta de ataduras, sou a favor da arte que manca e rola e corre e pula. Sou a favor da arte enlatada, ou trazida pela maré.
Sou a favor da arte que se enrosca e grunhe como os lutadores. Sou a favor da arte que solta pêlo.
Sou a favor da arte que você senta em cima. Sou a favor da arte que você usa para cutucar o nariz, da arte em que você tropeça.
Sou a favor da arte vinda de um bolso, dos profundos canais do ouvido, do fio da navalha, dos cantos da boca, da arte enfiada nos olhos, ou usada nos pulsos.
Sou a favor da arte sob as saias e da arte de esmagar baratas.
Sou a favor da arte da conversa entre a calçada e a bengala de metal do cego.
Sou a favor da arte que cresce num vaso, que desce do céu à noite, como um raio, e se esconde nas nuvens e retumba. Sou a favor da arte que se liga e desliga com um botão.
Sou a favor da arte que se desdobra como um mapa; que se pode abraçar como namorado ou beijar como cachorrinho. Que expande e estridula, como um acordeão, que você pode sujar de comida, como uma toalha de mesa velha.
Sou a favor da arte que se usa para martelar, alinhavar, costurar, colar, arquivar.
Sou a favor da arte que diz as horas, ou onde fica essa ou aquela rua.
Sou a favor da arte que ajuda a velhinha a atravessar as ruas.
Sou a favor da arte da máquina de lavar. Sou a favor da arte de um cheque do governo. Sou a favor da arte das capas de chuva de guerras passadas.
Sou a favor da arte que sai como vapor dos bueiros no inverno. Sou a favor da arte que estilhaça quando se pisa numa poça congelada. Sou a favor da arte dos vermes dentro das maçãs. Sou a favor da arte do suor que surge entre pernas cruzadas.
Sou a favor da arte dos cabelinhos da nuca e dos chás tradicionais, da arte entre os dentes de garfos dos bares, da arte do cheiro de água fervendo.
Sou a favor da arte de velejar aos domingos e da arte das bombas de gasolina vermelhas e brancas.
Sou a favor da arte de colunas azuis brilhantes e anúncios luminosos de biscoito.
Sou a favor da arte de rebocos e esmaltes baratos. Sou a favor da arte do mármore gasto e da ardósia britada. Sou a favor da arte das pedrinhas espalhadas e da areia deslizante. Sou a favor da arte dos resíduos de hulha e do carvão negro. Sou a favor da arte das aves mortas.
Sou a favor da arte das marcas no asfalto e das manchas na parede. Sou a favor da arte dos vidros quebrados e dos metais batidos e curvados, da arte dos objetos derrubados propositalmente.
Sou a favor da arte de pancadas e joelhos arranhados e traquinagens. Sou a favor da arte dos murmúrios das mães.
Sou a favor da arte do burburinho dos bares, de palitar os dentes, tomar cerveja, salpicar ovos, de insultar. Sou a favor da arte de cair dos bancos de botecos.
Sou a favor da arte de roupas íntimas e táxis. Sou a favor da arte das casquinhas de sorvete derrubadas no asfalto. Sou a favor da arte majestosa dos dejetos caninos, elevando-se como catedrais.
Sou a favor da arte que pisca, iluminando a noite. Sou a favor da arte caindo, borrifando, pulando, sacudindo, acendendo e apagando.
Sou a favor da arte de pneus de caminhão imensos e olhos roxos.
Sou a favor da arte Kool, arte 7-up, arte Pepsi, arte Sunshine, arte plástico, arte mentol, arte L&M, arte laxante, arte grampo, arte Heaven Hill, arte farmácia, arte sana-med, arte Rx, arte 9,99, arte agora, arte nova, arte como, arte queima de estoque, arte última chance, apenas arte, arte diamante, arte do amanhã, arte Franks, arte Ducks, arte hamburgão.
Sou a favor da arte do pão molhado de chuva. Sou a favor da arte da dança dos ratos nos foros.
Sou a favor da arte de moscas andando em pêras brilhantes sob a luz elétrica. Sou a favor da arte de cebolas tenras e talos verdes firmes. Sou a favor da arte do estalido das nozes com o vai-e-vem das baratas. Sou a favor da arte triste e marrom das maçãs apodrecendo.
Sou a favor da arte dos miados e alaridos dos gatos e da arte de seus olhos luzentes e melancólicos.
Sou a favor da arte branca das geladeiras e do abrir e fechar vigoroso de suas portas.
Sou a favor da arte do mofo e da ferrugem. Sou a favor da arte dos corações, lúgubres ou apaixonados, cheios de nougat. Sou a favor da arte de ganchos para carne usados e barris rangentes de carne vermelha, branca, azul e amarela.
Sou a favor da arte dos objetos perdidos ou jogados fora na volta da escola. Sou a favor da arte de árvores lendárias e vacas voadoras e sons de retângulos e quadrados. Sou a favor da arte de lápis e grafites de ponta macia, de aquarelas e bastões de tinta a óleo, da arte dos limpadores de pára-brisa, da arte de um dedo na janela fria, no pó de aço ou nas bolhas das laterais da banheira.
Sou a favor da arte dos ursinhos de pelúcia e pistolas e coelhos decapitados, guarda-chuvas explodidos, camas violadas, cadeiras com as pernas quebradas, árvores em chamas, tocos de bombinhas, ossos de galinha, ossos de pombo e caixas com gente dormindo dentro.
Sou a favor da arte de flores fúnebres levemente murchas, coelhos ensangüentados pendurados e galinhas amarelas enrugadas, baixos e pandeiros, e vitrolas de vinil.
Sou a favor da arte das caixas abandonadas, enfaixadas como faraós. Sou a favor da arte de caixas-d'água e nuvens velozes e sombras tremulantes.
Sou a favor da arte inspecionada pelo Governo dos Estados Unidos, arte tipo A, arte preço regular, arte ponto de colheita, arte extraluxo, arte pronta para consumir, arte o melhor por menos, arte pronta para cozinhar, arte higienizada, arte gaste menos, arte coma melhor, arte presunto, arte porco, arte frango, arte tomate, arte banana, arte maçã, arte peru, arte bolo, arte biscoito.
acrescente:
Sou a favor de uma arte que seja penteada, que pende de cada orelha, seja posta nos lábios e sob os olhos, depilada das pernas, escovada dos dentes, que seja presa nas coxas, enfiada nos pés.
quadrado que se torna amorfo

Claes Oldenburg

domingo, 4 de abril de 2010

Desmentiras

os meus vômitos têm estrelas
cadentes de porcaria

me disseram que se fizesse
careta
e o vento passasse
eu ficaria assim pra sempre todo

morria de medo de vomitar ao ar livre
e morrer de vomitar pra sempre

mas pelo menos o mundo teria mais
luzinhas
mais que as lampadinhas acesas
das casas de cada pessoa
com medo do escuro

eu tinha medo de escuro
porque apareciam ètés e fantasmas
na sombraria da casa vazia
no vaga-lume do costume
de andar de luz acesa

a vó também me disse
que bolo quente faz mal
dá dor de barriga e queima o esôfago
fosse lá o que fosse isso.

imagina comer bolo
fazendo vesgo na noite escura...
ia ser o caos dos vaga-lumes-estrela
junto com bolo queimadura da dor de barriga
vomitados da minha cara desfocada eternamente
e com assombração de outros mundos!