terça-feira, 30 de novembro de 2010

O Bandeirante e a Caipora - Canto II: Sina do Mundo

Era o dia da partida:
não tem volta, a vida é ida.
No aceno não tinha adeus,
só o desejo dos pés seus.

Tinha a estrada nos olhos
E, estradando, tinha estrada
até no cu dos fundilhos.
Era no meio do nada.

Parda paisagem poeira:
O império passo apressado
pesava no paraíso

pois do porte da sujeira
era o primeiro passado
que empurrava o caraíba

Portanto, se por si pensa
Repense o próprio pensar:
Pior com pior, condensa
melhor não ver e marchar.

Dito e feito fez o homem
bicho gingando apressado
lugar que vai não tem nome
melhor que Predestinado

Solitário como olhar,
tão triste como um trinado
de um pássaro sem voar

bicho de olho furado,
tem mundo, mas não o mar;
livre, mas engaiolado.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Despedida

Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão,
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:
quero solidão.

Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces? - me perguntarão.
- Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.

Que procuras? - Tudo. Que desejas? - Nada.
Viajo sozinha com meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.

A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!
Estandarte triste de uma estranha guerra...)

Quero solidão.
Cecília Meireles

domingo, 14 de novembro de 2010

O Bandeirante e a Caipora - Canto I: Saudação

Quais mistérios guarda
nossa pátria gorda,
virgem como freira,
freira como fada?

Bandeirante cego
entra nessa mata
guia-lhe o vento,
cantos, cheiros, nadas

Andarilho roto,
nordestino pobre
traz um punhal torto
e um cantil de cobre

Faces definidas
pelo sol ardente
olhar de valente
branco igual caatinga

Herói de cordel
nem deus nem diabo
- tem fogo no rabo
e lugar no céu.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Suavíssima

Os galos cantam, no crepúsculo dormente...
No céu de outono, anda um langor final de pluma
Que se desfaz por entre os dedos, vagamente...

Os galos cantam, no crepúsculo dormente...
Tudo se apaga, e se evapora, e perde, e esfuma...

Fica-se longe, quase morta, como ausente...
Sem ter certeza de ninguém... de coisa alguma...
Tem-se a impressão de estar doente, muito doente,

De um mal sem dor, que se não saiba nem resuma...
E os galos cantam, no crepúsculo dormente...

Os galos cantam, no crepúsculo dormente...
A alma das flores, suave e tácita, perfuma
A solitude nebulosa e irreal do ambiente...

Os galos cantam, no crepúsculo dormente...
Tão para lá!... No fim da tarde... Além da bruma...

E silenciosos, como alguém que se acostuma
A caminhar sobre penumbras, mansamente,
Meus sonhos surgem, frágeis, leves como espuma...

Põem-se a tecer frases de amor, uma por uma...
E os galos cantam, no crepúsculo dormente...

Cecília Meireles