A primeira coisa que me saltou aos olhos, foi a grande quantidade de artistas sobre os quais os filmes versavam em suas temáticas. Não só é evidente os dois diretores citados, mas também seus objetos, Rogério Sganzerla, nosso xerife prodígio do cinema, e Pina Baush, que é, pra mim, a criadora da dança contemporânea. E depois, Helena Ignez - a musa do cinema brasileiro! - e os bailarinos transculturais da companhia de Pina; e, ainda mais tarde, a grande quantidade de outros personagens do filme de Joel (Orson Welles, Grande Otelo, Guará, Jimi Hendrix, Paulo Villaça etc) e seus técnicos e também a equipe técnica de Win Wenders, que só vem confirmar a percepção de qualquer realizador de cinema de que esta é uma arte grupal, essencialmente. É uma profusão de personalidades mais ou menos conhecidas, onde depositamos mais ou menos prazer na visão delas. E o que fiquei pensando longamente era de onde viria esse prazer especial em assistir à essas pessoas? - qual a magia destas projeções que nos refrescam com um caldo imagético de vida tão potente que nos faz esquecer completamente da realidade para entrar em seu mundo de sonho?
Sobre este assunto já se debruçaram incontáveis pesquisadores com muito mais estudo e respeitabilidade do que eu, mas isso não me importa muito e, longe de querer, inicialmente, oferecer uma resposta positiva ou elucidativa sobre esta questão, prefiro somente esboçar algumas linhas que possam dialogar com essas reflexões anteriores - sem, claro, ignorá-las.
Inicialmente, podemos pensar no prazer incrível que o cinema evoca em sua belíssima projeção de imagens, as suas cores e luzes que tocam algum lugar da mente. Como eu comentei, sua semelhança com os estados de sonho é evidente: um espaço escuro, uma criação sem limites (como enuncia Sganzerla no filme): uma liberdade infinita; um espaço interminável de concretizar nossos desejos profundos. Esta é, sem dúvida, uma percepção importante, e válida para todos os filmes, de uma forma geral, afinal, boa parte deles se destina à nobre sala de projeção (que recentemente não é assim mais tão nobre...). No entanto, essa explicação não parece abarcar algumas outras questões que se formam: e os filmes que não adentram esse "espaço nobre"? e por que alguns filmes, mesmo dentro deste espaço nobre, não preenchem tão completamente essa satisfação? nesse sentido: o que tem feito a produção contemporânea de cinema - e, ainda mais longe, a produção contemporânea de ARTE?
(Quem sou eu para responder essas coisas todas?)
Me parece cada vez mais que a contemporaniedade se debruça enormemente com a questão da memória - e com isso pretendo dar alguma explicação a essas perguntas. A memória se assemelha ao sonho, em algum nível; a memória nos agrupa como "humanidade"; a memória é tudo o que nos resta depois da morte de Deus e depois da completa destruição da linguagem clássica que nos preencheu durante séculos seguidos os impulsos criativos.
Sobre sua semelhança com o sonho, pouco tenho a dizer. Deixo essa questão aos meus colegas psicólogos para me desenvolverem depois. No entanto, pra mim é fato perceptível que os sonhos assumem cada vez mais espaço nas nossas produções artísticas - isto porque é uma resposta impressionantemente forte ao absurdo existencial que nossa humanidade vive, com certeza, desde a Primeira Grande Guerra (tendo como seu gigantesco profeta a figura terrível de Nietzsche). Neste lastro incluo a produção de pessoas como Franz Kafka, Samuel Becket ou Arthur Adamov que, longe de aforismas insípidos sobre a validade da vida estrangeira que levamos (a única que existe, claro) - como colocados por Sartre ou Camus - descobriram na risada irônica a maior das respostas, talvez a única possível. Não estou me colocando acima destes personagens monstruosos: a colocação de Camus sobre o suicídio permanece, mas enunciada de maneira diferente - aqui, o absurdo de viver é digno de piada, não uma monstruosa barreira às ações (como o é à Hamlet).
Além disso, a memória é um fator necessário para a existência do grande grupo que chamamos Humanidade e que, insistentemente tentamos nos incluir (ou nos excluir, em alguns casos). Que ligação mítica é essa, também não sei dizer: esse tipo de questionamento é melhor respondido por aqueles que estudam esses processos (de novo meus colegas psicólogos) ou outros excêntricos, como Jodorowsky ou Joseph Campbell. Ainda assim, para Hannah Arendt, a História é determinante para esse sentimento unificador traduzido na palavra Humanidade, e é evidente que qualquer busca pela memória popular é uma forma de se inserir historicamente. O filme de Joel é exemplar nesse sentido - sua busca por arquivos (que preenchem quase a totalidade do filme) e por materiais de outros filmes caminha nesta descoberta da Humanidade.
E talvez tentando unificar os dois parágrafos anteriores, percebo também uma ausência de norte para qualquer criador. A destruição da linguagem que chegamos em meados do século passado tornou difícil qualquer aproximação inocente neste complicado terreno que chamamos arte. Os processos, agora, não são colocados de forma coerente por nenhum manifesto - as produções são dispersas. Sobre o que e - pior! - como devo criar? Nesse cenário, qualquer agrupamento teórico politizado me parece infantil, uma percepção pequena (e, porque não, alienada) da nossa condição como seres humanos absurdos. Assim, não estamos mais na época das soluções totalizantes, das vanguardas e das políticas. Preferimos, ao contrário, nos inserir historicamente, ou melhor, percebemos, finalmente, que essa é a única colocação ainda com vitalidade: a exibição desenfreada de memória. Só assim, me parece, podemos explicar a simultaniedade de filmes sobre personalidades, mostras sobre Péter Forgacs ou David Perlov e aberturas de novelas das 6 em fotos e filmes antigos.
E, finalmente, por quê? Por que a memória?
Porque, mesmo que apoiados nestes destroços de linguagem que nos restaram, a questão primordial - o TEMPO - permanece e sobre ele é que versou todo o lastro de arte contemporânea e, arrisco colocar, de arte de sempre e sempre. Diante do tempo inexorável reagimos como podemos, criando a humanidade, a linguagem e suas novas e novas apresentações - a arte - e tudo o mais. Quando todo o resto que sempre nos reuniu (fosse o belo, o bom, o certo ou qualquer outra coisa) fracassou, somente a memória restou e sobre ela (nossa própria vida vivida) nos debruçamos lancinantes, aproximando-nos cada vez mais de algum grande apocalipse, a única coisa que existe no final deste comprido túnel.
Que sacada, que bonito. So não acho que caminhamos na direção do apocalispe... a memoria, ela é fonte de inspiração para criarmos algo novo. Quando organizamos o confuso percurso que nos trouxe até aqui, não é somente para entender, construir e nos sentir parte da Humanidade, mas também para agir sobre ela. A presença da memoria é politica, ela justifica atos mas também revela contradições tristes, e muitas vezes ela revolta. Ela também provoca, como quando vemos Pina, o sentimento do maravilhoso... o maravilhoso provoca impulso, vontade de banhar o mundo nesse maravilhoso. A memoria, por fim, mostra que ja percorremos longo caminho, mas que ainda ha uma estrada infinita pela frente... a memoria revela o sentido do tempo, fadado a correr sempre, e nos junto com ele. Somos como um marinheiro que aproveita o sentido do vento para chegar ao porto, e depois partir. Não chegaremos ao paraiso, nem um novo ciclo começou em 2012, nossa opção é o movimento.
ResponderExcluir(não sei usar esse teclado, não sei onde estão os acentos)
O apocalipse é grandiloquente, eu admito. Mas o que valia era a imagem disso - uma grande reviravolta em termos de linguagem.
ResponderExcluirO que você colocou sobre a memória é onde eu quis chegar: não é redutor dizer que a memória nos cria como Humanidade; é simplesmente uma constatação (pra mim, pelo menos, evidente). Não sei se entendo bem quando você diz que "a presença da memória é política". Talvez eu não saiba à risca o que é política, imagino que você conheça um termo mais amplo que o meu. Pra mim esse conceito é vulgarizado, de forma que boa parte da produção artística (nessa concepção "lugar comum" de política) não é política. Porém, pensando que somente pela existência dessa produção dentro da nossa sociedade - e isso somente - já é um ato político, aí podemos concordar que a memória é política. Ainda assim, essa definição, pra mim, parece pecar pelo inverso: é muitíssimo abrangente, tornando até mesmo difícil descobrir algum fenômeno que não seja político, percebe?
Deixando a política de lado, acho que a memória toca mais fundo, como você colocou bem (e foi sobre isso que quis escrever esse texto): a memória tem o deslumbramento de nos revelar o tempo e a sua inexorável passagem. É uma potência maravilhosa e encantadora - é a própria vida.
Entendia "politica" como um dominio a parte na nossa organização social: maneira de agir, por meio de instituições e partidos, na sociedade; ou ainda, fora de instituições e partidos, politica como a criaçãoo de verdades que moldam a nossa compreensão da sociedade, a fim de manter ou subverter a ordem, etc... memoria é politica, visto o seu lugar central na nossa sociedade... os esquecimentos são politicos, como as revelações e as ideais bem estabelecidas. A maneira como enxergamos o passado é também o presente, e nos apoiamos na memoria para dar um passo em avante - percebe-se então seu papel fundamental. Pensava mais no dominio da educação e da passagem da memoria por museus, monumentos, livros didaticos - bem ligada ao ensinamento da historia.
ResponderExcluirAcho que isso me veio a cabeça porque você opos de certa forma a memoria ao politico... penso que não ha como separa-los. Não acho que a memoria possa ser contemplada, não acho que a compreensão do nosso lugar no mundo pela memoria resulte em inercia, mas, ao contrario, em ação, ou zelo, ou inquietude, ou criação...
(o paragrafo onde acho que disse o que disse que você disse: "E talvez tentando unificar os dois parágrafos anteriores, percebo também uma ausência de norte para qualquer criador. A destruição da linguagem que chegamos em meados do século passado tornou difícil qualquer aproximação inocente neste complicado terreno que chamamos arte. Os processos, agora, não são colocados de forma coerente por nenhum manifesto - as produções são dispersas. Sobre o que e - pior! - como devo criar? Nesse cenário, qualquer agrupamento teórico politizado me parece infantil, uma percepção pequena (e, porque não, alienada) da nossa condição como seres humanos absurdos. Assim, não estamos mais na época das soluções totalizantes, das vanguardas e das políticas. Preferimos, ao contrário, nos inserir historicamente, ou melhor, percebemos, finalmente, que essa é a única colocação ainda com vitalidade: a exibição desenfreada de memória.")
Ah! Mas estou apenas me referindo aos "movimentos" e às "vanguardas" que sempre pregam o novo "como deve ser", sem atentar para o fato de que apenas estão mudando seis por meia-dúzia. Esse foi o percurso do modernismo e da arte contemporânea de uma maneira geral: a destruição dos fundamentos que sustentavam a arte clássica. E claro, isso foi importantíssimo! Óbvio! O século XX deve tudo à Duchamp e Andy Warhol! Mas o Ferreira Gullar manda muito bem naquele livro "Argumentação contra a morte da arte" sobre o limite que essa abordagem da destruição de toda e qualquer linguagem chegou. Agora, qualquer um que tenta erguer uma ínfima estrutura é ou burro, ou, no mínimo ignorante de tudo que já foi feito. Ele defende a volta à alguns princípios, mas isso me parece uma opção meio estúpida. Vamos voltar a pintar quadros renascentistas? Não tem nenhuma lógica.
ResponderExcluirEstamos nesse beco sem saída há um tempo - a me parece que a única alternativa à esse beco, a tentativa com mais vitalidade, foi a do uso criativo da memória, um espaço que tem algum poder sobrenatural ou inconsciente sobre nós. Manoel de Barros etc e tal.
A memória é substância política extrema. Creio que o 'você' é a síntese das memórias de um ato. Todo o sistema judicial é baseado na hipótese de que o criminoso 'é' aquilo que ele 'era' quando cometeu o crime, que no meu ver nada mais é do que extrair o um de uma multiplicidade através da memória. Ora, será que existe um modo coerente de conceber o 'ele' como multiplicidade? Pelo menos politicamente preferimos uma resposta negativa.
ResponderExcluirDe qualquer forma, na ausência de um terceiro, até ai de vez em quando a gente se confunde com o 'eu' síntese de certos acontecimentos aleatórios(?) que ficam frescos na memória, e de vez em quando creio que nos obrigamos a ser essa síntese. Daí já creio que a questão se torna mais ontológica do que ética.
Eu já acho que uma concepção estética a princípio não deveria ser ligada a nenhuma concepção filosófica. Claro que a aliança amplia as possibilidades, mas a serenojovialidade também desempenha uma função importante. A arte racional está, por definição, submetida as fronteiras da razão. Talvez a criação que deveria tomar o papel de criadora, e não a criado o norte para a criação. Daí a memória tem um peso fundamental como próprio material bruto do 'eu'. Será que faz algum sentido?
Ah! Não estou muito ligada nas questões da produção artistica de hoje, vou aos museus, vejo bastante coisa, mas do lugar do espectador. Mas concordo com o que cê disse, pensando sobre o filme da Pina que cê comentou... é realmente um uso criativo da memoria. E ainda mais no cinema, pois unica maneira de eternizar a dança, e a dança da Pina, é filmando. Assim, constroi-se a memoria da Pina, ao mesmo tempo que se reconhece sua existência. Ou melhor, a memoria que temos da Pina torna-se presente, para sempre. E nessa tentativa do uso criativo da memoria, o cinema é uma arte adequada... ele pode trazer muitas facetas da memoria, tanto de uma so pessoa, quanto quando reune muitos testemunhos, imagens. E ainda se assemelhando ao que parece ser a nossa memoria: por exemplo, quando lembramos de um momento, ele esta sempre em movimento... não percebemos o mundo de maneira estatica, acho que é impossivel, visto que nos mesmos estamos sempre em movimento. E finalmente, o cinema também torna visivel um outro aspecto da memoria, a edição.
ResponderExcluirSe não, acho que, apesar desse "beco sem saida" da arte que você me explicou, tem obras que são eternas e inovadoras sempre. Na segunda vi Antigona, mas interpretado por um grupo de teatro palestino. Ja tinha lido a peça, ja tinha me emocionado com ela. Mas ainda assim, foi completamente novo, e tornou visivel tantas questões do homem (e dos palestinos, como não poderiamos deixar de pensar). Tão antigo, tão presente, tão humano!
me perguntava quem era Kurtachovo (que falta de memoria!). Quando li serenojovialidade, não tive duvidas... ai me veio a memoria da vez que visitamos a parte de antiguidade grega no museu do Vaticano. Que tal fazermos um filme, cheio de serenojovialidade?
ResponderExcluirhihihihihi
hahaha!
ResponderExcluirA serenojovialidade!
Acho que vocês tocaram em dois pontos importantes e totalmente relevantes quando se pensa em produzir arte hoje em dia:
- a memória como algo GENUINAMENTE constituinte do EU (como o "kurtachovo" colocou); algo essencial do homem; algo que, talvez (e poem talvez nisso, porque não tenho nenhum escopo teórico do que estou dizendo) supere o gigantesco abismo que o Bruno falou, entre o "eu" e o "ele";
- a distinção entre teatro e cinema que a clarissa esboçou nesses comentários.
Eu sempre fico me encucando com isso. Porque pra mim a coisa toda gira em torno disso: aparência e essência, apolíneo e dionisíaco, imagem e real.
O teatro, pela sua PRESENÇA FÍSICA intrínseca tem uma potência dionísica óbvia (o que não quer dizer que também não tenha que superar a barreira aparente das coisas);
O cinema, pela sua CONSTITUIÇÃO IMAGÉTICA é, claro, imagem. Sempre. Ainda assim, a IMAGEM é, cada vez mais - desde o modernismo - A questão. Se pensarmos bem, desde sempre... ("Ser ou não ser, essa a questão" - a dificuldade entre a aparência e a essência das coisas, este é o complexo de Hamlet e toda a sua questão com os atores etc.). Mas, a partir do modernismo, a questão da imagem passa a ser assunto em si mesma e isso, porque inverte-se o eixo de sua produção: desde o Renascimento os artistas produziam imagens que reproduziam o real (a mímesis); com o modernismo, as imagens ganham uma independência do real, o abstracionismo; então, a partir de esquemas de produção industrial e da vida moderna, na contemporaniedade, nos encontramos afundados por imagens (estáticas ou em movimento) - é quase impossível NÃO VER uma imagem em, sei lá, uma hora por dia. Agora, é o inverso: o real quer reproduzir as imagens, ou melhor, o real se produz à partir de imagens e de imagens à serem produzidas. E isso é óbvio. Ex: o star system do cinema e toda a indústria das celebridades; a indústria de cosméticos; os eventos criados totalmente para serem televisionados; o futebol etc. (ao extremo, podemos pensar até mesmo em atentados terroristas ou cerimônias, sei lá, do casamento do príncipe tal que são criadas a partir da noção de que serão transformados em imagem).
E, por isso, o papel central do cinema no mundo contemporâneo e do audiovisual como um todo.
Na minha cabeça, eu meio que inventei essa oposição: teatro X cinema.
(claro que eu sei que é totalmente forçado, ok? Não precisa gastar palavras pra me provar que um não é oposto ao outro, eu sei...)
Agora, entretanto, nos deparamos com a memória: um material filmado - portanto, UMA IMAGEM - que, podemos pensar: NÃO FOI FEITO PARA SER EXIBIDO! Isso é incrível! Sua fruição é completamente outra! - isso é a SERENOJOVIALIDADE nos filmes!
Acho que é por isso que eles ganham essa potência de ir ao âmago de um "ele" e mostrá-lo.
Resumindo, creio serem essas imagens amadoras criadas dentro de um círculo familiar uma ponte interessantíssima entre a superficialidade de uma IMAGEM e a "essencialidade" de um homem.
que me dizem?
INCRIVEL MESMO!!!
ResponderExcluirPenso também sobre como a presença de uma câmera interfere. A pessoa pode se expressar para essa câmera, para ficar guardado, para congelar aquela impressão. O "eu" ou o "ele" que passam nos videos de familia, pode ser aquele que a pessoa quis moldar diante da câmera. Claro, isso não invalida a autenticidade daquele eu-ele. E também, isso que estou afirmando pode não ser, ou ser apenas uma das multiplas reações e sensações que alguém sente diante de uma câmera. Quero dizer, a imagem do video não é como uma foto, onde moldamos uma pessoa feliz, ou ao menos um unico lado das nossas infinitas faces. A imagem do video é mais complexa, finalmenete mais fiel à maneira como percebemos o mundo - mostra não somente o movimento, mas as sutilezas das expressões, os sentimentos que podemos crer identificar, etc...
A câmera é um olho especial, um olho potencializador: nos torna visiveis não somente para um, mas para muitos. Poderiamos nos perguntar onde esta a essência do homem, se não nos outros. Quero dizer, o homem se constitui com os outros e para os outros. E um homem so é um homem quando se torna visivel. Assim sendo, o jogo do filme é complexo e intenso: podemos testemunhar o homem se construindo (se a pessoa tem consciência de ser filmada), e nesse processo mesmo podemos ver o homem sendo homem.
Agora, o caminho que você traçou - da imagem para o homem, a imagem construindo o homem - é diferente. Pode ser uma imagem que so sugere (como por exemplo, uma foto de modelo), provocadora de desejos. Outra imagem, carregada de historia dessa vez, seria por exemplo a novela. Um personagem cria um modelo de pessoa, como um conto de criança, como as historias de grandes herois. A diferença é que o veiculo pelo qual a novela passa é acessivel a todos os comuns, todos os comuns podem se sentir numa novela sendo filmados. Sera que poderiamos captar em um filmado a vontade de ser o heroi da novela?
E depois, revendo o filme, o filmado se avalia. Quantas vezes não vimos um video de familia e nos dizemos: nossa, como eu era isso ou aquilo. Podemos sentir vergonha, orgulho, etc... vertigem do tempo que passou. Ainda, podemos compreender o que estava acontecendo naquele momento de outra maneira, e perceber como nossa visão de mundo muda com o tempo.
A noção de que está ou não sendo filmado é muito importante nessa questão. (quase) Todas as culturas reconhecem, hoje em dia, o que é uma câmera e que, portanto, aquele material "deverá" ser exibido, de alguma forma... Existem variáveis. No começo do século, é notável a ingenuidade com que se tratava uma câmera. Isso não necessariamente faz com que seus atos sejam mais "verdadeiros" diante das câmeras, mas alteram significativamente seu registro. Hoje, partimos do pressuposto que qualquer imagem é uma construção. É o que o Coutinho sempre fala - e ele abre espaço para isso e dialoga com a construção que seus personagens fazem de si mesmos. Muitas estratégias podem ser criadas para amenizar esse aspecto, e disso os documentaristas devem saber melhor que eu - eles colocam a câmera no mesmo lugar e não mexem nela durante toda a entrevista pra que os entrevistados esqueçam da presença dela e coisas assim e conseguem os seus resultados específicos.
ResponderExcluirAlém disso, existe, como eu comentei, a percepção de que aquele arquivo será ou não exibido e em que circuito. O personagem que construímos para um filme caseiro é muito diferente daquele que fazemos para, digamos, uma entrevista de emprego, ou de um jornal, sei lá.
Não sei como colocar isso: me parece que nos filmes caseiros existe, em algum nível, uma "honestidade" maior dos personagens. Isso se contradiz com o que eu acabei de dizer, eu sei. Mas não consigo concordar que os homens sejam apenas imagens, porque nós sabemos que nós mesmos não somos somente imagens. Nós existimos socialmente como imagem, ok, mas não para nós mesmos. E esse equilíbrio de imagem/real varia de pessoa pra pessoa que conhecemos e a isso chamamos intimidade. E, ao direito de ser somente imagem, privacidade.
Tem algum equilíbrio ainda não esclarecido, pra mim, entre as imagens caseiras, íntimas e privadas e suas personagens. Faz toda a diferença. E eu acho isso lindo.
Opa!
ResponderExcluirQuanta coisa! Levei alguns dias lendo (horário apertado)...
vamos ao meu comentário (que vai se referir a trechos dispersos dessa conversa toda!):
1) sobre política vs memória: sugiro "a condição humana" de Hannah Arendt. Digo "sugiro" porque não vou saber dizer tão bem quanto ela coloca no livro. Impressionantemente claro. Em resumo: 3 condições para a existência do "humano". 1a) animal laborans / trabalho / espécie; 2a) homo faber / obra / "memória" ("por participar de um mundo de existência linear, apesar da sua existência circular de animal laborans"; 3a) política (porque somos "homenS" e não "homem") / ação (permite identificar existências individuais, em contraste com a noção coletiva de espécie) / nascimento.
Para Arendt, então, a política está ligada à novidade no mundo e, não, à memória (que está ligada à fabricação de obras duráveis no mundo, às vezes mais duráveis que a própria existência biológica).
Nesse sentido - e agora serei bastante tosco em minha análise - toda arte seria política e, quando não fosse, seria artesanato. Em outras palavras: arte relaciona-se com o novo, com o nascimento... Já artesanato é o que se relaciona com a memória, no sentido de poder existir enquanto duração em um tempo linear (ou melhor ainda: artesanato "dura" (no tempo), já arte, não: ela é sempre o instante novo do contato sujeito-obra...)
Vamos ao que não estou dizendo (pensar na negativa é uma boa saída...):
i - um mesmo objeto não é necessariamente associado a arte ou artesanato. Um livro, por exemplo, pode ter seu conteúdo absolutamente artístico, mas com um formato artesanal (com capa, folhas de papel, tinta...): em outras palavras, a mesma produção é arte e artesanato.
ii - uma não é melhor que a outra (as duas têm importância fundamental para a formação da condição humana);
iii - não quis dizer que a memória não é subjetiva: mas que a possibilidade de memória está associada a uma condição não-subjetiva (produção artesanal). Talvez aqui as palavras não ajudem... Cada pessoa tem a sua memória (individual), mas o mundo que tem memória não é arte, é obra (no sentido arendtiano)... Talvez aqui valha a pena destrinchar um pouco mais, porque acho que não estou conseguindo expressar direito o que estou pensando... (Reli e não entendi o que disse. Mas deixa aí como uma amostra de como essas coisas fundem a cuca.)
vi - só um outro dado: eu acho que estou concordando com arendt quando separa a filosofia (que se preocupa com a memória de morrer) da política (que se preocupa com a novidade de nascer).
...
2) Para a memória fotografada, sugiro dois livros: Barthes (LA Chambre Claire) e Susan Sontag (Sobre Fotografia).
O primeiro é mais fenomenológico em relação ao "processo de memória". A segunda versa bastante sobre fotógrafos que trabalharam no limite da "produção de memória"...
Nesse assunto eu só um leitor que sugere livros. Não saberia comentar além do que os próprios autores falam...
...
3) Para a memória filmada, sugiro O Espaço Crítico, de Paul Virilio. (Muito bom pra entender como essa realidade filmada transforma a noção de espaço e dimensão.)
...
Cansei de escrever. Tenho que voltar ao trabalho.
Abs!
gostei,
ResponderExcluiras perguntas aí sao muito fortes, me levou a perguntá-las a mim. a história é mais vasta que o homem, esse paradoxo é o infortúnio trágico e o prazer vivo do filósofo. Filósofo hoje em dia acredito que é e cada vez mais só é, enfim, artista. fim da filosofia? pergunta tambem forte.
Sobre Pina, é realmente fantástico, mas vi ela morta no filme. critico os depoimentos e a ainda necessidade de explicar alguma coisa, porque nao só e somente só o teatro enquadrado e espaçado na camera ? depoimentos, ainda que sem fala, ainda falam demasiado e mais elouquentes que antes. De alguma forma o filme presentifica uma fissura, uma rachadura do cinema de Wenders: técnica magnífica e beleza estonteante em movimento puro nao se misturam com o instante presente de cada frame. A homenagem magnífica é antes de ser magnífica, uma homenagem. É uma critica sobre a gastura de ver um diretor que envelhece no auge da visada e da técnica, mas que retrocede invariavelmente no argumento. E entao me faço sua pergunta, qual é a relaçao que temos em Pina com o tempo e a memória? Eu diria que é ainda nostalgica, perdida, ou até disforme. A dança é o que refresca e resguarda ainda o movimento de pura vitalidade, no mais, há demasiadas lacunas e fissuras não respondidas, nem mesmo aludidas e no entanto absolutamente latentes no filme. São opinioes que tive de impressao que senti. A memória, tema do contemporâneo, me parece ainda distante de ser memória criadora, como contrução livre e não linear do tempo.
tenho q ir, mas tudo isso me preocupa e gostaria de discutir mais. adorei.
beijos, marina