sábado, 15 de setembro de 2012

O Bexiga

Um amigo estrangeiro, depois de algumas semanas de insistência, finalmente o convencera de saltar de asa-delta.
Kit era o tipo de cara perfeito pra esses esportes: marombado e maconheiro, atlético como um elevador; mas Citônio, que recentemente tivera uma pneumonia depois de assistir à final de fórmula um num bar recheado de abelhas-cachorro, estava mais pra nado-sincronizado que pulos voadores. Kit tentou convencê-lo de todas as formas, chegou a lhe arranjar ingressos para um bar mitsva guei num barco de um empresário rico, comprou-lhe pantufas novas, e pagou-lhe, inclusive, por um seguro de vida caso o salto fosse trágico. Nada lhe convencia. Foi só depois que Citônio fracassou pela quarta vez na prova de ingresso para o Régio Conservatório de Acordeão Local, e decidiu afogar as mágoas num mix de vodca Trótski com própolis das abelhas-cachorro que o dono do bar recolhia com uma rede de caçar borboletas, que Kit o fez jurar e assinar que iria fazer o salto no próximo fim de semana ensolarado.

O dia chegou, o sol brilhava como uma gaita nova, e Citônio vestia-se com aquelas roupas de tecido sintético, um tanto arrependido de ter tão boa caligrafia quando está bêbado. Pra quem já pulou de asa-delta, este parágrafo pode ser ignorado - vou tentar descrever a sensação pra quem nunca o fez. Depois da válvula de adrenalina acionada exatamente no momento em que só te resta correr e pular, vem aquele diabólico tremer na próstata que precede um orgasmo, acompanhado daquele eriçar de cabelos meio clichê nos esportes radicais. A urina congela na saída do túnel e suas pernas correm sozinhas, porque os olhos não desviam sua atenção do abismo geográfico (literalmente, claro) que te resta à poucos metros, melhor dizer, poucos segundos. E quando o vento ácido da corrida transforma o medo em determinação te resta um último micrésimo para gritar qualquer maluquice!
"FODAAAaaa...!!" gritou Citônio, quando caiu como um... foguete, vá lá - é uma comparação meio óbvia, mas eu acho bonitinha - sobre as florestas secas da cidade. "Foda" é, por sinal, uma ótima escolha de palavra pra se gritar, caso se almeje algo "gritável" (palavra que aqui significa qualquer coisa que se diz quando se foge de um animal selvagem) e, ao mesmo tempo, de complexa tradução para outras línguas. Isso porque usamos "foda" tanto como substantivo, como adjetivo, quanto como verbo. E se encaixa em frases iguais as vezes com sentidos opostos.
E foi gritando "Foda!" que Citônio voou como uma cotovia apaixonada. O ar exalava um cheiro de maresia e um frescor arenoso. Citônio sentia-se alegre, com vontade de cantar belas canções, de jogar isqüéch e de pentear os cabelos! Cada fibra do seu corpo se condensava em excitação, numa euforia budista sem tamanho.
Mas, naquele momento, os telejornais da cidade alertavam estado de calamidade pública: o calor do dia escondia um evento climático exótico e pouco comum que ameaçava a vida de todos que pesassem menos de 240 quilos: um tufão tropical - apelidado carinhosamente de Bexiga por comunidades helvéticas da América do Sul depois de uma votação disputadíssima na internet (Pum, Pluft e Pandora acabaram dividindo os internautas amantes do 'P') - formado por camadas intercaladas de ares frios e quentes trazia consigo uma chuva intensa e, claro, muita ventania: as baratas se alojaram em seus ninhos de argila; os bares fecharam, abandonando seu lixo nas ruas: os bueiros fecharam com o lixo dos bares: a cidade inundava pela terceira vez em menos de quatro meses.
Citônio, pego de surpresa, tentava segurar firmemente suas asas, pensando que, no final das contas, pentear o cabelo teria sido inútil. Via a água subir rapidamente, como corrida à vera de criança, uma massa líquida terrível que tudo abraçava com sofreguidão. Tudo termina na água: a cidade submergia com velocidade, os carros varridos dançavam como formigas sem trilha; as pessoas se afogavam como pixels; e as antenas parabólicas brilhavam como pequenos peixes. Citônio agarrava-se à ventania, segurava no ar com toda a força da vida.

Foi apenas depois de três dias voando em meio à chuva infinita, com as pestanas congeladas e com cabelos permanentemente despenteados que Citônio percebeu que voava sobre o Atlântico. As nuvens abriram uma pequena clareira, como uma janela que se desembaça no meio, e Citônio pode notar as constelações do norte à lhe guiarem. Ele viajava com muita muita velocidade como... um foguete, pode ser. As ondas elevavam-se e desciam, como batimentos cardíacos, a maré mudava e desmudava. Então, depois do quinto dia, quando Citônio conseguira capturar sua primeira carpa voadora com os cadarços soltos das polainas, ele avistou terra firme!
"FODAAAaaa...!!" gritou, dando razão a plurissignificação que eu apontara. Nós temos muitas habilidades escondidas, prontas para despertarem, como um animal selvagem (palavra que aqui quer dizer qualquer coisa que mereça um grito ao ser vista), nos momentos de perigo ou necessidade. Mesmo sendo seu primeiro voo, Citônio não teve dificuldade em descer do céu nublado, cinza como filmes velhos, e pousar na praia adiante, repleta de restos de um avião que caíra perto. Era um avião de correio e, entre as encomendas empresariais, as cartas de amor, álbuns de fotos, chaveiros, vinhos importados, placas de rua e LPs de astros da década de 60, Citônio conseguiu encontrar comida e balas Juquinha. A refeição foi breve, mas suficiente. Levantando-se, começou a caminhar num sentido onde via prédios ao longe. Perdido, mas encontrado, Citônio seguiu reto, achando as ruas, túneis e auto-estradas estranhamente familiares. As placas liam-se em português, as árvores eram semelhantes às de casa.
Ao entrar na cidade, pelos fundos, sobre um enorme viaduto circular, Citônio teve certeza: estava numa cidade idêntica à que morava! Abismado, olhou melhor, em busca das serras, florestas e praias que povoavam sua cidade natal. Não era exatamente igual: as descargas das privadas giravam em sentido contrário, e os livros de kama sutra exibiam posições invertidas: esta cidade era um inverso exato da que morava! Correu, atrapalhando-se como quem se penteia em frente ao espelho, em busca de seus lugares conhecidos. Cruzado pelas pessoas que o ignoravam de modo invertido - pegou um ônibus pela porta de trás numa linha de número ao contrário e saltou em casa. Estava lá. Reflexo da que sempre morara.

Os anos se passaram e Citônio já se acostumara àquela vida de revés. Nem tudo era exato: algumas pessoas não mais existiam ali: Zepelin, seu grande amigo, sumira; mas Trivela permanecia. Próclise, sua dentista barbuda também não morava ali. Conheceu um novo professor de acordeão, que se chamava Assíduo e conseguiu passar na prova do Conservatório local, que era um inverso perfeito do outro. Paracelso, colega da escola, também morava ali, mas não tinha 3 rãmisters, mas 3 sapos de cores diferentes que sabiam cantar em acordes em tom menor.

Citônio aprendeu que tudo que sobe, desce.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Da janela do ônibus

Da janela do ônibus eu vi o Rio passando
Escorria como ressaca
até as poças do Aterro.
Eu te liguei e você atendeu
E a sua calma era um berro
já que não tem mais você e eu

Da janela do ônibus eu vi o Rio chorando
Escorria como samba
e molhava Botafogo.
Eu liguei pruma amiga querida
e ela me ouviu e veio logo
porque é vindo e vendo que é a vida

Da janela do ônibus eu te vi se molhando
Escorria como criança
de blusa branca e short rosa.
Eu te vi e fiquei te vendo
sabendo que você está toda prosa
pois minha poesia aguou no relento

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Acontece

Sem amigos, irmãos, namorada
Sem eira, nem beira,
Sem nada.

Nem um piscar de adeus
Nem eu e você,
Nem você, nem eu.

O nada aconteceu
Sem final romântico
Sem estrelas, só o Atlântico.
O verão inverneceu.

O que me aconteceu?
Seu seio virou palma.
Nem tripas, nem alma,
Sem você, sem eu.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

O que é o seu armário?

Meu universo de vestidos.
Não guardo rancores ou malícia.
Achados e perdidos.
Cobertores de amores,
Afagos, e carícias:
Só o que sobrou.

Debaixo dos caracóis,
das meias, saias, lençóis,
Uma visita torta.
Como algum poeta.
Como uma invasão.
Porta transposta e concreta,
Caminho sem volta e sem visão.

Entre o fecho e o trinco
Entre e feche o trinco
Entro e fecho o trinco

A poesia dos que passarão,
De quem é fingidor,
Que mesmo em face do maior encanto,
Ainda prefere morrer de amor.

Não sei o que é o meu armário.
Se é de pano o seu recheio,
Se é de pássaro sua cor.
Mas, se acessível for,
Depois do momento imóvel
Visto vestes de vento,
Me lavo e me passo à vapor.

Não sei o que é o meu armário,
Mas ele está aberto,
E quem rompeu-me o lacre
Não me olha mais de perto.