Há uma época do ano em que os dias mancam muito quentes, mas todo início de tarde chove desesperadamente até de noite. São temporais fortíssimos, que transformam praças em lagos, marquises em cortinas de cachoeiras, canteiros em lodaçais, mendigos em húmus, plásticos em água-viva, ladeiras em corredeiras aceleradas - de fato, algumas espécies de peixes migravam de oceanos distantes e subiam as ruas até o alto dos morros numa piracema urbana curiosa para colocarem seus ovos na copa dos coqueiros submersos. Pela manhã, o sol nasce com tanta luz e tanto calor, que a água voa rapidamente, revelando uma cidade já consumida pelo caos e pela sujeira. Às 4 da manhã saem os tratores da prefeitura recolher o lixo, os afogados e os destroços dos barracos que rolaram dos morros naquela madrugada. Às 6, todos saem para seus trabalhos.
Foi assim que Tifo e Larica se conheceram. Tentando voltar para casa, os dois apanhados pela chuva e se refugiaram debaixo da mesma marquise. Era noite e a luz dos postes refletia na água suja que passava veloz pela rua, como uma corrida de porcaria. Os dois sentavam no degrau da farmácia da esquina onde ficaram presos, completamente molhados, como se tivessem tomado banho, só que ao invés de se limpar, se sujaram. Nessas horas, quando nos vemos presos num mesmo lugar com um - e apenas um - desconhecido, seja em um elevador que para misteriosamente, seja no engarrafamento com um carona misterioso ou em um passeio de barco onde a gasolina misteriosamente acaba, é comum alguém acabar puxando um assunto para, como se diz, quebrar o gelo. Mas não eles dois. Tifo e Larica, os dois, eram mais tímidos que labirintos de parque de criança, e a situação não era das mais alegres. Tifo sabia que estava fedendo de chuva e suor, porque tentara correr para evitar exatamente o que acabara acontecendo e seus sapatos molhados estavam fazendo barulho de água mesmo quando ele não movia os pés; Larica percebia que a tinta do seu cabelo recém aplicada estava asquerosamente escorrendo por suas têmporas e que sua roupa molhada ficara transparente obrigando-a a ficar com os braços cruzados. Não havia o que conversar.
Então, Tifo olhou para dentro da farmácia e viu. "Que irônico - tem guarda-chuvas ali dentro" comentou como quem não quer nada. Larica olhou, viu e balançou a cabeça afirmativamente, com um sorriso sem dentes de quem consola um vovô depois de uma piada sem um final claro. Tifo calou-se definitivamente. Demorou mais de uma hora para Larica dizer "Se ficarmos doentes com essa chuva, pelo menos não temos que ir muito longe" falou, virando os olhos para o colega de marquise. Ele reparou na lama que escorria de seus cabelos lisos e ondulados quase como sangue muito escuro e percebeu a pele branca por debaixo das roupas molhadas, dizendo "é bom que você também pode pegar outro frasco de tinta" sorrindo. Ela percebeu o seu cheiro de camisa de futebol guardada no fundo da mochila e seus sapatos escurecidos e acrescentou: "e desodorante pra você...".
Os dois achavam que, em algum momento, a chuva pararia e eles poderiam sair e esquecer-se um do outro, e que, o mais tarde que isso poderia acontecer, seria o nascer do dia seguinte, quando o sol secasse os caminhos com sua luz confortadora. Bom, lógico que, em algum momento, aquela aguaceira teria que parar, mas não foi ao nascer do sol. Um novo dia acordara e o temporal continuava assolando a cidade, sem perder o ritmo. Aquilo assustou os dois que, agora, começaram realmente a temer que os degraus da escada da farmácia da esquina seriam poucos para suportar o rio que subia de nível a cada minuto.
Os dois não falaram nada e nem se moveram até o dia começar a cair. "Perdão, meu comentário foi maldoso" "Tá." "Eu também estou fedendo..." "Tá mesmo...". Novo silêncio.
"Podemos tentar outra vez? Acho que começamos com o pé esquerdo." "Ótimo, começa você", ele disse, e Larica se levantou de onde estava e sentou-se mais próxima.
"Bom, eu gostei dos seus sapatos - não são os melhores para dias de chuva, mas lembram o de um artista de rua que eu gostava muito quando eu era criança. Ele tocava violino enquanto declamava versos." "Eu gostei da cor que você escolheu pro seu cabelo, ainda que não seja muito inteligente aplicar tinta numa época como essas." "Não deixei de notar que você corre bastante, mesmo que não faça muita diferença correr na chuva, porque você acaba se molhando ainda mais, mas achei bastante atlético." "Que engraçado, porque eu reparei que você não correu pra debaixo da marquise, o que não é muito inteligente, porque você acaba ficando mais tempo na chuva, mesmo que se molhe menos, mas achei muito elegante, sofisticado, lembrou-me uma bailarina de rua que vi adolescente que dançava em um teatro velho abandonado que fora bombardeado durante a guerra e não tem telhado e certo dia chovia muito, mas ela continuou dançando, enquanto as gotas lentamente pesavam seu cabelo no coque frouxo, lavavam seu suor contido, e molhavam sua roupa branca, fazendo com que ficasse transparente...."
A voz meio que foi morrendo. Larica ofereceu seu olhar para Tifo como quem serve uvas em um jantar. Ele a olhou como um menino virgem e suspirou com frio.
"O que aconteceu com ela?" "Parou no tempo - ela é adolescente até hoje, linda pra sempre." "Como?" "Eu nunca mais a vi". "Eu sou bailarina..." "Jura?" Larica abriu sua mochila e mostrou um par de sapatilhas surradas. "Puxa, e eu sou violinista..." "Sério?" Tifo abriu a sua e mostrou seu instrumento e o arco. "Toca pra gente" "Toco, se você dançar."
Então, pela primeira vez desde que sentou ali, Larica descruzou os braços e trocou seus sapatos; e quando Tifo afinou seu violino e começou a tocar e olhou para Larica, percebeu que ela o reconhecia tanto quanto ele a ela.
Os dois foram levados pelo rio no décimo terceiro dia.
Algumas semanas depois, Citônio passava por aquela esquina quando reparou num reflexo diferente da vitrine. Aproximou-se como se seguisse na direção que ia e percebeu uma frase escrita com dedo no embaçado de um bafo: "Aqui o tempo parou e depois seguiu.".
domingo, 27 de janeiro de 2013
sábado, 12 de janeiro de 2013
O armário de roupas
Existem coisas que claramente não deveriam estar separadas, como formigas. No entanto, o fato de estarem definitivamente separadas é muito mais forte do que o fato de que não deveriam estar.
Era dia de mudança. Não de cidade, ainda, só de bairro, nada que fosse transformar muito sua rotina, nada que interferisse verdadeiramente na sua vida, mas uma mudança considerável. Mudava de ruas, de passeios e, com certeza, de clima. O bairro pra onde ia era no alto de um altíssimo morro, coberto de floresta virgem, habitado antes por macacos que por pessoas, onde os edifícios eram raros e as casas nas árvores imperavam cheias de luxo e com vistas belíssimas para o mar ou para o cemitério de elefantes atrás das rochas. Mas o mais perturbador de lá era, com certeza, a incessante chuva. Não havia um dia sequer do ano que não chovesse. Fizesse chuva ou fizesse sol, chovia. Assim, não à toa, os moradores eram reconhecidos pelo uso de botas muito sofisticadas, uma moda própria de capas e botinas, fechos de couro e chapéus e calças de veludo de dar inveja.
Citônio se preparava. Desmontara seus cabides, recolhera as roupas, doara alguns itens dispensáveis, descartara de vez os quebrados, encaixotara os livros, as revistas, os aparelhos eletrônicos, empacotara o acordeão, os cartões-postais, as caixas-de-música, plastificara os cadernos, as agendas, selara os pincéis e as borrachas, guardara sua câmera fotográfica, sua flauta doce, seus óculos, seus cremes dentários e seu computador de última geração. O quarto esvaziara-se. Ele checava tudo ainda mais uma vez, para confirmar que não deixava nada pra trás que lembraria assim que montasse seu próximo quarto pensando com raiva e tristeza que nunca mais reaveria aquele guarda-chuva importado ou que perdera pra sempre aquela fotografia tirada num celular velho. Olhou atrás do espelho, próximo ao rodapé, na fechadura da porta, entre a janela e a parede e no vão do armário embutido.
E foi quando decidiu bater de leve nas paredes, como o sol da manhãzinha, em busca de algum esconderijo que nunca tivesse percebido. Se essa ideia parecia absurda desde o começo, mas curioso foi reconhecer um estranho eco nos fundos do armário, como se um brilho brotasse daquele som. Atordoado e surpreso feito nuvens de granizo, Citônio analisou a parede, as madeiras, escorregou a tábua dos fundos e encontrou um vão entre os veios da madeira como quem descobre uma nova galáxia. Ali, espremido e apertado, havia um envelope pardo muito antigo, meio amarelado, meio molhado e depois seco, meio comido por traças e cupins, alguns ainda mortos presos no seu lacre, como espermatozoides derrotados, ou como bolhas de sabão congeladas. Com mãos trêmulas e desobedientes, Citônio puxou o envelope do vão e abriu-o com excitação.
Dentro: uma resma de papéis de cartas, recortes de revista e uma foto. Citônio folheou com pressa, eufórico com a descoberta, olhando rapidamente para cada recado. Deteve-se na foto: antiga, parcialmente mofada num dos cantos, daquelas coloridas como se fossem preto e branco. Nela, um casal num parque de diversões olhava para um dos cantos como que suspensos naquela expectativa do que nunca apareceria - um eterno mistério. O homem era alto, magro e forte, feito um pescador, mas de pele muito branca. Usava uma camiseta regata e calças largas, como um soldado em descanso, e, nos pés, bonitas botinas marrons. Num dos ombros uma bolsa de carteiro de onde saía uma flor de abóbora imperiosa. Os olhos pretos olhando perdidos praquele canto invisível da fotografia. A moça era muito menina, baixa, com cabelos ruivos, cacheados e curtos, nariz grande e boca pequena - um ar de gaivota pousada, à espera do próximo peixe. Vestia um vestidinho de verão, sem mangas e cheio de florzinhas estampadas, calçada com botinhas curtas marrons. Numa das mãos carregava muitos morangos e nas costas uma mochila. "Quem batera aquela foto?", pensou Citônio. Mistério. Repousou-a no chão e olhou as cartas. Eram, na verdade, apenas três. Entre elas, recortes de revistas de rostos de artistas, casas exóticas, privadas ecológicas, carros elétricos, placas de energia solar e um único anúncio de uma câmera fotográfica. Sobre a primeira carta, meio colada, como casca de cigarra, uma carta de Tarô. Citônio não sabia identificá-la - era O Carro, genioso e decidido. Colocou-a no chão com cuidado, como quem empilha alfinetes, e abriu a primeira carta com a delicadeza de uma água-viva. Citônio não respirou enquanto à lia:
"3 de dezembro
querida Ucrânia [Citônio lembrava-se que, no passado, era moda dar nomes de países para as meninas; ele mesmo tinha uma tia-avó chamada Coréia],
Queria eu saber escrever como algum monge, ou cantar como um pássaro de manhã, ou de alguma forma poder falar melhor o que quero te dizer hoje e todos os dias: amo-te!
Você enfeita as minhas retinas toda vez que vejo seus cabelos vermelhos, acalma minhas têmporas com seu cheiro de fruta no pé, silencia meus ouvidos com seu estranho assobio, anestesia minha língua com a sua quando me beija e abranda minha pele com o seu toque de carinho, com o seu corpo de ninfa da noite.
Nunca vou me esquecer de ontem, nem do seu terraço.
Nunca vou esquecer do nosso primeiro beijo.
E queria que você sempre lembrasse de que qualquer presente que eu já te dei, ou qualquer elogio que já te disse, não traduz o meu amor eterno por ti.
Esta carta é a nossa viagem juntos até a Lua!
eternamente seu,
Croma"
Citônio sorria como o sumo de uma montanha. Pousou a primeira carta no chão e leu a segunda:
"11 de janeiro
minha amada Ucrânia,
Você vive como uma poesia. Você é um girassol.
Nosso apartamento me lembra uma caverna perto da casa em que eu fui criado que só dava pra entrar com a maré baixa. Nela eu guardava diversas coisas minhas que não queria que os outros descobrissem. Depois transformei no meu primeiro laboratório de fotografia! Improvisado, claro, e as fotos saíam todas amareladas pela maresia, mas eu adorava e dizia para todos que aquela era a minha marca. Lá eu também dormia com um colchão no chão.
Quando você voltar, iremos morar juntos!
beijos e muitas saudades,
do seu Croma"
Sem pressa, Citônio leu a última carta:
"7 de fevereiro
esta é a última carta.
Que vai amarelar como as minhas fotos, como tudo que amarela quando envelhece, como as folhas das árvores e como a pele dos velhos, como o bronze dos sinos das igrejas.
Nosso amor é amarelo.
Que fazer da nossa última migalha ou do última vez que demos as mãos andando de bicicleta? Quando vamos nos olhar de novo?
O mundo todo é amarelo.
Um olhar novo vai surgir, vai superar todos os medos e incertezas e vai fazer a maré baixar tão baixa que os peixes aprenderão a voar. Quando você me olhar assim, aí, então, a gente vai voltar a morar junto e a dormir no mesmo colchão baixo. E a nossa horta helvética vai voltar a ganhar os prêmios do bairro e nosso guarda-chuva vai voltar a ficar colorido quando molhar.
Agora eu vou viajar.
nunca mais seu,
Croma"
A surpresa parou as lágrimas de Citônio, tamanho o espanto com a última carta. Atrás dela, colada, havia uma outra foto, que ele não reparara. Citônio a descolou como um caramujo e, então, chorou. Na foto, a menina ruiva, Ucrânia, estava sentada na beira de uma janela - a janela daquele quarto, que Citônio habitara por tantos anos e, agora, despia - e ela olhava para ele com a alegria de uma menina que recebe o primeiro sutiã. Os cachos ruivos caíam até os ombros, a franja escondia um dos olhos com todo o seu mistério.
Citônio se apaixonou.
Era dia de mudança. Não de cidade, ainda, só de bairro, nada que fosse transformar muito sua rotina, nada que interferisse verdadeiramente na sua vida, mas uma mudança considerável. Mudava de ruas, de passeios e, com certeza, de clima. O bairro pra onde ia era no alto de um altíssimo morro, coberto de floresta virgem, habitado antes por macacos que por pessoas, onde os edifícios eram raros e as casas nas árvores imperavam cheias de luxo e com vistas belíssimas para o mar ou para o cemitério de elefantes atrás das rochas. Mas o mais perturbador de lá era, com certeza, a incessante chuva. Não havia um dia sequer do ano que não chovesse. Fizesse chuva ou fizesse sol, chovia. Assim, não à toa, os moradores eram reconhecidos pelo uso de botas muito sofisticadas, uma moda própria de capas e botinas, fechos de couro e chapéus e calças de veludo de dar inveja.
Citônio se preparava. Desmontara seus cabides, recolhera as roupas, doara alguns itens dispensáveis, descartara de vez os quebrados, encaixotara os livros, as revistas, os aparelhos eletrônicos, empacotara o acordeão, os cartões-postais, as caixas-de-música, plastificara os cadernos, as agendas, selara os pincéis e as borrachas, guardara sua câmera fotográfica, sua flauta doce, seus óculos, seus cremes dentários e seu computador de última geração. O quarto esvaziara-se. Ele checava tudo ainda mais uma vez, para confirmar que não deixava nada pra trás que lembraria assim que montasse seu próximo quarto pensando com raiva e tristeza que nunca mais reaveria aquele guarda-chuva importado ou que perdera pra sempre aquela fotografia tirada num celular velho. Olhou atrás do espelho, próximo ao rodapé, na fechadura da porta, entre a janela e a parede e no vão do armário embutido.
E foi quando decidiu bater de leve nas paredes, como o sol da manhãzinha, em busca de algum esconderijo que nunca tivesse percebido. Se essa ideia parecia absurda desde o começo, mas curioso foi reconhecer um estranho eco nos fundos do armário, como se um brilho brotasse daquele som. Atordoado e surpreso feito nuvens de granizo, Citônio analisou a parede, as madeiras, escorregou a tábua dos fundos e encontrou um vão entre os veios da madeira como quem descobre uma nova galáxia. Ali, espremido e apertado, havia um envelope pardo muito antigo, meio amarelado, meio molhado e depois seco, meio comido por traças e cupins, alguns ainda mortos presos no seu lacre, como espermatozoides derrotados, ou como bolhas de sabão congeladas. Com mãos trêmulas e desobedientes, Citônio puxou o envelope do vão e abriu-o com excitação.
Dentro: uma resma de papéis de cartas, recortes de revista e uma foto. Citônio folheou com pressa, eufórico com a descoberta, olhando rapidamente para cada recado. Deteve-se na foto: antiga, parcialmente mofada num dos cantos, daquelas coloridas como se fossem preto e branco. Nela, um casal num parque de diversões olhava para um dos cantos como que suspensos naquela expectativa do que nunca apareceria - um eterno mistério. O homem era alto, magro e forte, feito um pescador, mas de pele muito branca. Usava uma camiseta regata e calças largas, como um soldado em descanso, e, nos pés, bonitas botinas marrons. Num dos ombros uma bolsa de carteiro de onde saía uma flor de abóbora imperiosa. Os olhos pretos olhando perdidos praquele canto invisível da fotografia. A moça era muito menina, baixa, com cabelos ruivos, cacheados e curtos, nariz grande e boca pequena - um ar de gaivota pousada, à espera do próximo peixe. Vestia um vestidinho de verão, sem mangas e cheio de florzinhas estampadas, calçada com botinhas curtas marrons. Numa das mãos carregava muitos morangos e nas costas uma mochila. "Quem batera aquela foto?", pensou Citônio. Mistério. Repousou-a no chão e olhou as cartas. Eram, na verdade, apenas três. Entre elas, recortes de revistas de rostos de artistas, casas exóticas, privadas ecológicas, carros elétricos, placas de energia solar e um único anúncio de uma câmera fotográfica. Sobre a primeira carta, meio colada, como casca de cigarra, uma carta de Tarô. Citônio não sabia identificá-la - era O Carro, genioso e decidido. Colocou-a no chão com cuidado, como quem empilha alfinetes, e abriu a primeira carta com a delicadeza de uma água-viva. Citônio não respirou enquanto à lia:
"3 de dezembro
querida Ucrânia [Citônio lembrava-se que, no passado, era moda dar nomes de países para as meninas; ele mesmo tinha uma tia-avó chamada Coréia],
Queria eu saber escrever como algum monge, ou cantar como um pássaro de manhã, ou de alguma forma poder falar melhor o que quero te dizer hoje e todos os dias: amo-te!
Você enfeita as minhas retinas toda vez que vejo seus cabelos vermelhos, acalma minhas têmporas com seu cheiro de fruta no pé, silencia meus ouvidos com seu estranho assobio, anestesia minha língua com a sua quando me beija e abranda minha pele com o seu toque de carinho, com o seu corpo de ninfa da noite.
Nunca vou me esquecer de ontem, nem do seu terraço.
Nunca vou esquecer do nosso primeiro beijo.
E queria que você sempre lembrasse de que qualquer presente que eu já te dei, ou qualquer elogio que já te disse, não traduz o meu amor eterno por ti.
Esta carta é a nossa viagem juntos até a Lua!
eternamente seu,
Croma"
Citônio sorria como o sumo de uma montanha. Pousou a primeira carta no chão e leu a segunda:
"11 de janeiro
minha amada Ucrânia,
Você vive como uma poesia. Você é um girassol.
Nosso apartamento me lembra uma caverna perto da casa em que eu fui criado que só dava pra entrar com a maré baixa. Nela eu guardava diversas coisas minhas que não queria que os outros descobrissem. Depois transformei no meu primeiro laboratório de fotografia! Improvisado, claro, e as fotos saíam todas amareladas pela maresia, mas eu adorava e dizia para todos que aquela era a minha marca. Lá eu também dormia com um colchão no chão.
Quando você voltar, iremos morar juntos!
beijos e muitas saudades,
do seu Croma"
Sem pressa, Citônio leu a última carta:
"7 de fevereiro
esta é a última carta.
Que vai amarelar como as minhas fotos, como tudo que amarela quando envelhece, como as folhas das árvores e como a pele dos velhos, como o bronze dos sinos das igrejas.
Nosso amor é amarelo.
Que fazer da nossa última migalha ou do última vez que demos as mãos andando de bicicleta? Quando vamos nos olhar de novo?
O mundo todo é amarelo.
Um olhar novo vai surgir, vai superar todos os medos e incertezas e vai fazer a maré baixar tão baixa que os peixes aprenderão a voar. Quando você me olhar assim, aí, então, a gente vai voltar a morar junto e a dormir no mesmo colchão baixo. E a nossa horta helvética vai voltar a ganhar os prêmios do bairro e nosso guarda-chuva vai voltar a ficar colorido quando molhar.
Agora eu vou viajar.
nunca mais seu,
Croma"
A surpresa parou as lágrimas de Citônio, tamanho o espanto com a última carta. Atrás dela, colada, havia uma outra foto, que ele não reparara. Citônio a descolou como um caramujo e, então, chorou. Na foto, a menina ruiva, Ucrânia, estava sentada na beira de uma janela - a janela daquele quarto, que Citônio habitara por tantos anos e, agora, despia - e ela olhava para ele com a alegria de uma menina que recebe o primeiro sutiã. Os cachos ruivos caíam até os ombros, a franja escondia um dos olhos com todo o seu mistério.
Citônio se apaixonou.
sábado, 5 de janeiro de 2013
Quando eu fui o Bob Dylan
Eu sou o Bob Dylan dos Trópicos
Do violão utópico
o inverso de um toque
um ringtone desafinado
o finado rock'n roll
Eu sou o Bob Dylan de óculos
(sem ser os escuros)
E as meninas do Leblon
Olham pras estrelas cadentes
crentes de que arrasam no reveillon
Eu era o Bob Dylan no recreio
Creio que passou o dia
Mas ficou o cheiro
Do seu beijo de tiete
Do outro lado dessa gaita
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