sábado, 12 de janeiro de 2013

O armário de roupas

Existem coisas que claramente não deveriam estar separadas, como formigas. No entanto, o fato de estarem definitivamente separadas é muito mais forte do que o fato de que não deveriam estar.

Era dia de mudança. Não de cidade, ainda, só de bairro, nada que fosse transformar muito sua rotina, nada que interferisse verdadeiramente na sua vida, mas uma mudança considerável. Mudava de ruas, de passeios e, com certeza, de clima. O bairro pra onde ia era no alto de um altíssimo morro, coberto de floresta virgem,  habitado antes por macacos que por pessoas, onde os edifícios eram raros e as casas nas árvores imperavam cheias de luxo e com vistas belíssimas para o mar ou para o cemitério de elefantes atrás das rochas. Mas o mais perturbador de lá era, com certeza, a incessante chuva. Não havia um dia sequer do ano que não chovesse. Fizesse chuva ou fizesse sol, chovia. Assim, não à toa, os moradores eram reconhecidos pelo uso de botas muito sofisticadas, uma moda própria de capas e botinas, fechos de couro e chapéus e calças de veludo de dar inveja.

Citônio se preparava. Desmontara seus cabides, recolhera as roupas, doara alguns itens dispensáveis, descartara de vez os quebrados, encaixotara os livros, as revistas, os aparelhos eletrônicos, empacotara o acordeão, os cartões-postais, as caixas-de-música, plastificara os cadernos, as agendas, selara os pincéis e as borrachas, guardara sua câmera fotográfica, sua flauta doce, seus óculos, seus cremes dentários e seu computador de última geração. O quarto esvaziara-se. Ele checava tudo ainda mais uma vez, para confirmar que não deixava nada pra trás que lembraria assim que montasse seu próximo quarto pensando com raiva e tristeza que nunca mais reaveria aquele guarda-chuva importado ou que perdera pra sempre aquela fotografia tirada num celular velho. Olhou atrás do espelho, próximo ao rodapé, na fechadura da porta, entre a janela e a parede e no vão do armário embutido.
E foi quando decidiu bater de leve nas paredes, como o sol da manhãzinha, em busca de algum esconderijo que nunca tivesse percebido. Se essa ideia parecia absurda desde o começo, mas curioso foi reconhecer um estranho eco nos fundos do armário, como se um brilho brotasse daquele som. Atordoado e surpreso feito nuvens de granizo, Citônio analisou a parede, as madeiras, escorregou a tábua dos fundos e encontrou um vão entre os veios da madeira como quem descobre uma nova galáxia. Ali, espremido e apertado, havia um envelope pardo muito antigo, meio amarelado, meio molhado e depois seco, meio comido por traças e cupins, alguns ainda mortos presos no seu lacre, como espermatozoides derrotados, ou como bolhas de sabão congeladas. Com mãos trêmulas e desobedientes, Citônio puxou o envelope do vão e abriu-o com excitação.
Dentro: uma resma de papéis de cartas, recortes de revista e uma foto. Citônio folheou com pressa, eufórico com a descoberta, olhando rapidamente para cada recado. Deteve-se na foto: antiga, parcialmente mofada num dos cantos, daquelas coloridas como se fossem preto e branco. Nela, um casal num parque de diversões olhava para um dos cantos como que suspensos naquela expectativa do que nunca apareceria - um eterno mistério. O homem era alto, magro e forte, feito um pescador, mas de pele muito branca. Usava uma camiseta regata e calças largas, como um soldado em descanso, e, nos pés, bonitas botinas marrons. Num dos ombros uma bolsa de carteiro de onde saía uma flor de abóbora imperiosa. Os olhos pretos olhando perdidos praquele canto invisível da fotografia. A moça era muito menina, baixa, com cabelos ruivos, cacheados e curtos, nariz grande e boca pequena - um ar de gaivota pousada, à espera do próximo peixe. Vestia um vestidinho de verão, sem mangas e cheio de florzinhas estampadas, calçada com botinhas curtas marrons. Numa das mãos carregava muitos morangos e nas costas uma mochila. "Quem batera aquela foto?", pensou Citônio. Mistério. Repousou-a no chão e olhou as cartas. Eram, na verdade, apenas três. Entre elas, recortes de revistas de rostos de artistas, casas exóticas, privadas ecológicas, carros elétricos, placas de energia solar e um único anúncio de uma câmera fotográfica. Sobre a primeira carta, meio colada, como casca de cigarra, uma carta de Tarô. Citônio não sabia identificá-la - era O Carro, genioso e decidido. Colocou-a no chão com cuidado, como quem empilha alfinetes, e abriu a primeira carta com a delicadeza de uma água-viva. Citônio não respirou enquanto à lia:

"3 de dezembro

querida Ucrânia [Citônio lembrava-se que, no passado, era moda dar nomes de países para as meninas; ele mesmo tinha uma tia-avó chamada Coréia],
Queria eu saber escrever como algum monge, ou cantar como um pássaro de manhã, ou de alguma forma poder falar melhor o que quero te dizer hoje e todos os dias: amo-te!
Você enfeita as minhas retinas toda vez que vejo seus cabelos vermelhos, acalma minhas têmporas com seu cheiro de fruta no pé, silencia meus ouvidos com seu estranho assobio, anestesia minha língua com a sua quando me beija e abranda minha pele com o seu toque de carinho, com o seu corpo de ninfa da noite.
Nunca vou me esquecer de ontem, nem do seu terraço.
Nunca vou esquecer do nosso primeiro beijo.
E queria que você sempre lembrasse de que qualquer presente que eu já te dei, ou qualquer elogio que já te disse, não traduz o meu amor eterno por ti.
Esta carta é a nossa viagem juntos até a Lua!

eternamente seu,
Croma"

Citônio sorria como o sumo de uma montanha. Pousou a primeira carta no chão e leu a segunda:

"11 de janeiro

minha amada Ucrânia,
Você vive como uma poesia. Você é um girassol.
Nosso apartamento me lembra uma caverna perto da casa em que eu fui criado que só dava pra entrar com a maré baixa. Nela eu guardava diversas coisas minhas que não queria que os outros descobrissem. Depois transformei no meu primeiro laboratório de fotografia! Improvisado, claro, e as fotos saíam todas amareladas pela maresia, mas eu adorava e dizia para todos que aquela era a minha marca. Lá eu também dormia com um colchão no chão.
Quando você voltar, iremos morar juntos!

beijos e muitas saudades,
do seu Croma"

Sem pressa, Citônio leu a última carta:

"7 de fevereiro

esta é a última carta.
Que vai amarelar como as minhas fotos, como tudo que amarela quando envelhece, como as folhas das árvores e como a pele dos velhos, como o bronze dos sinos das igrejas.
Nosso amor é amarelo.
Que fazer da nossa última migalha ou do última vez que demos as mãos andando de bicicleta? Quando vamos nos olhar de novo?
O mundo todo é amarelo.
Um olhar novo vai surgir, vai superar todos os medos e incertezas e vai fazer a maré baixar tão baixa que os peixes aprenderão a voar. Quando você me olhar assim, aí, então, a gente vai voltar a morar junto e a dormir no mesmo colchão baixo. E a nossa horta helvética vai voltar a ganhar os prêmios do bairro e nosso guarda-chuva vai voltar a ficar colorido quando molhar.
Agora eu vou viajar.

nunca mais seu,
Croma"

A surpresa parou as lágrimas de Citônio, tamanho o espanto com a última carta. Atrás dela, colada, havia uma outra foto, que ele não reparara. Citônio a descolou como um caramujo e, então, chorou. Na foto, a menina ruiva, Ucrânia, estava sentada na beira de uma janela - a janela daquele quarto, que Citônio habitara por tantos anos e, agora, despia - e ela olhava para ele com a alegria de uma menina que recebe o primeiro sutiã. Os cachos ruivos caíam até os ombros, a franja escondia um dos olhos com todo o seu mistério.

Citônio se apaixonou.

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