adaptado do curta homônimo de Fernando Coimbra
O mundo é mesmo muito estranho – costuma-se ouvir esse tipo de
afirmativa das pessoas. Pessoas de todos os tipos passam, atravessam
e nunca temos tanta certeza do que foram, do que eram, ou do que são.
Conheço muitas pessoas por esses caminhos. Escuto muito isso pelas
estradas. Afinal, sou casado com as estradas. Acho que todo mundo é
– sou mais honesto do que os outros todos e admito. Estrada não é
como uma pessoa. As pessoas vêm e vão; as estradas só vão.
Não sou ninguém inteligente, só sou mais inteligente do que os
outros.
Um amigo de um amigo meu lhe contou certa vez uma coisa muito
estranha que lhe acontecera por esses caminhos. Nonada, como disse
alguém. Monteiro Lobato, não sei. A história começa no meio, numa
estrada. Era um desses botecos de gente feia, com muita abelha,
cachorro e abelha-cachorro. Era praticamente ele e mais ninguém.
Nunca dá pra confiar direito nele, mas acho que essa história é
das verdadeiras. Mentira não é. Mas quem conta um conto, aumenta um
ponto, também disseram. Salomão, se não me engano. Nessa noite,
quente como todas as noites quentes, ele estava praticamente sozinho
– praticamente se desconsiderarmos os dois donos do bar. Ele não
queria ser incomodado – caminhoneiro não gosta muito de quem
trabalha na estrada. Casa de ferreiro, espeto de pau, escuta-se por
aí. Bom, nessa noite quente quase vazia, ele comia um frango à
passarinho e tomava uma cerveja, lógico.
Então aconteceu o fato estranho. Nunca sabemos quando os fatos
estranhos vão acontecer, eles simplesmente estão atrás das
esquinas, ou no alto dos postes, vigiando a gente e, quando a roleta
gira na nossa direção, eles entram com uma deixa não ensaiada.
Acho que são os fenícios que acreditavam que todos os homens tem um
fio da vida que é fiado por três velhas que só têm um olho e que,
quando chega sua hora, elas o cortam. O fio, não o olho. Mas isso
não vem ao caso. O que aconteceu foi um casal: uma mulher e um
homem, que apareceram no bar como se sempre estivessem estado ali e
não tivessem sido percebidos ainda. Talvez já estivessem mesmo. Ele
não reparou muito no homem, que sentou-se de costas, mas na moça,
que, não apenas se sentou de frente, mas também era gostosa “como
uma rabanada fora do natal” foram as palavras que ele usou (ele não
é nenhum Ferreiro Gullar). Ele descreveu por muito tempo essa
mulher: cabelos pretos, magrinha, bunda grande e cara de rica das
galáxias e outros exageros desse tipo. Ele é exagerado, mas outro
dia, conversava com meu amigo num bar e ela entrou. Ele espirrou pra
mim “é a gostosa que meu amigo comeu” e eu olhei bem pra mulher.
Era mesmo uma rabanada fora de época.
Quando o amigo do meu amigo a viu naquele dia, deu um jeito de
roubá-la de seu homem. Ele pareceu não querê-la mesmo. Quando o
cara se levantou para fumar, ou ir no banheiro, ou fumar no banheiro,
ele se levantou e se sentou com a moça largada. Sua xavecada não é
das mais sofisticadas, mas ela devia querer trepar com qualquer um,
afinal, ali também era um motel. O cara que estava com ela, chegou a
vê-los juntos e sentou-se separado, na mesa onde o amigo do meu
amigo estivera à pouco. Foi a menina quem o levou pro quarto dos
dois e quem se despiu primeiro (segundo a versão que eu escutei...).
“Vi, vim, venci” foi o que ele disse pro meu amigo depois,
parafraseando Kublai Khan.
Achava eu que a história acabava aí – o estranho caso do corno
que não se importa que comam a mulher dele na sua frente. Birutice
leve, na minha opinião. De perto ninguém é normal, dizia Galileo
Galilei, o inventor do telescópio. Mas não.
O amigo do meu amigo continuou contando que, alguns meses depois,
passando perto da capital, ele escutou melhor a história desses dois
da boca de uma prostituta boliviana. Eles vinham desde o litoral,
como Borba Gato, viajando num Chevete tentando recuperar o
relacionamento. No começo não conseguiram. Ela transava com muitos
e ele tirava fotos dela nua depois dos orgasmos com uma velha câmera
analógica, daquelas que você tem que girar o filme. Então, numa
noite tão quente quanto a primeira, ela fugiu. O amigo do meu amigo
indagou à prostituta como ela sabia disso. “Elementar”, ela
disse, não sei se copiando aquele personagem de Edgar Allan Poe, “eu
a vi sozina neste posto faz dos semanas tentando conseguir um
caroneiro, ora pois”. (Não sei imitar muito bem sotaque boliviano).
Se isso já não é estranho o suficiente, ouvi recentemente que os
dois se reencontraram. Ela pedia carona na beira da estranha e ele
parou para ela. Os dois conversaram como se não se conhecessem. Ela
entrou no carro e o carro seguiu na estrada. Os dois até hoje fingem
que se conheceram naquela hora. Talvez tenham mesmo se esquecido de
antes, e nunca se reconhecerão. Talvez um deles não seja si mesmo.
Não sabemos.
Sei, como uma vez falou James Joyce, que navegar é preciso, viver
não é preciso.
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