segunda-feira, 29 de julho de 2013

Hoje 3

Todas as minhas forças se esgotam como que descesse de um tobogã, como um índio numa metrópole.
Eu sinto o meu naufrágio do seu lado, a minha impotência aguda diante da sua impassível vontade de me dar um soco, de gritar na minha cara: seu broxa.
Dançar só não serve, ela disse, e tudo caminhou para onde estamos agora. Que adianta o resto, me perguntou, me perguntava. Sou um bandido numa periferia. Desprezível, merecia ser pisado por saltos de putas até sangrar, as mãos e os pés, como um cristo, sangrando pelas ruas sujas das beiradas; essa imundice de quem não sabe dizer um por favor um obrigado sem ser irônico, não consegue dar um beijo já pensando em trepar, tem que arranhar a canela quando joga futebol: por quê?

Onda de ácido queimando a cabeça é como um choro aberto – você não pode fingir que não está fingindo. Não dá pra escapar, não dá pra fugir. O corpo morto levanta-se rápido, como que impelido por algum maquinismo, como se uma mão poderosa lhe segurasse os cabelos e dissesse gritasse no seu ouvido:


Não escutei! Não! Fala mais alto, a música está quebrando os meus tímpanos, tão alta que parece que saí de mim mesmo, nem tenho certeza se a música está ligada ou não, só eu pareço escutá-la e ela reverbera nas minhas costelas, infla os meus músculos e eu me transformo na própria música, cada nota é uma articulação, cada osso responde a um acorde, cada gesto meu vira um harmônico e cada dor, cada calor ou frio é uma dissonância bonita naquele arranjo desajeitado. As drogas batem forte, meus olhos marejados, perolados, avermelhados, arroxeados, bronzeados – aceitei, violei as leis da natureza com uma gozada prematura: sou inútil como um óculos escuro. Uma fotografia de um fantasma.

Chega de diários? Não sei fazer se não isso: todo dia a mesma rotina, todos os dias, aqueles dias felizes, dias felizes que virão.

domingo, 28 de julho de 2013

Hoje 2

Respirar quando se tenta não dormir – um talento do álcool, todos sabem. Mas por que tanto sono? Por que não dormir? O oposto da insônia é a bebedeira? Embriagar-se tanto e não querer descansar, bater a cabeça no ar como um árabe, como um roqueiro disléxico, entortando as pálpebras.
Quando se mistura café com vinho (não necessariamente no mesmo copo, não deve ser bom) chega-se num estado interessante de lucidez bêbada, uma vibrante vontade schopenhaueriana de revelar-se, entornar os olhos com o mundo exterior. Não é nenhuma droga ilícita, nada novo, inclusive, apenas um esforço de festinha, uma alegria tão permitida que pode soar até um pouco infantil. Você não vai pirar o cabeção, não vai destruir seu apartamento, se afogar na banheiro com uma torradeira ligada, vai só dançar alegremente a noite inteira, sem o sono, sem o detestável sono que estraga as noitadas.

Foi muito difícil chegar aqui. Muito trabalhoso, penoso. Não sei bem onde é aqui, mas sei que foi muito difícil chegar, por isso tenho que aproveitar e dizer pra mim mesmo, parabéns, você merece. Acordei hoje com a sensação de que meus pais tinham sido assassinados durante a madrugada. Pensei em tudo que eu acabaria tendo que fazer, as pessoas que eu teria que avisar, ligar, dizer.. como – como se liga pra alguém e diz que alguém outro morreu? pensei também no enterro, no discurso que eu faria no enterro deles, em como teria que herdar a casa, o dinheiro, as coisas, como meu irmão teria que voltar de londres para o enterro e como eles teriam morrido logo antes de fazer uma viagem que sonhavam há tanto tempo.

Eu sonhei que chorava, que babava, um ser jurássico e epilético sob a luz das estrelas. Eram uns pontinhos brancos naquele negrume de sítio na serra como um exército. No sonho eu não morria.

Passei todo esse dia quase acreditando que meus pais morreram. Eu não tive de coragem de conferir de manhã, antes de sair de casa – em parte pelo medo de encontrá-los num mar de sangue, com as peles brancas, as articulações enrijecidas, as pupilas petrificadas, ainda na cama, como manequins velhos de roupas sujas; em parte porque era curioso me imaginar naquela situação terrível e não queria que a sensação absurda terminasse. Inventei o meu martírio, o meu drama, queria vivê-lo com sua intensidade – chorei pela calçada e decidi à noite encher a cara, dobrar as mágoas na cachaça.

Estou excitado com a ideia de escrever. Olho para as pessoas em volta de mim, naturalmente. Quem são – o que sonharam nessa noite, eu me pergunto; imaginar o que um desconhecido sonhou naquela noite, tentar seriamente levantar isso nos coloca, de alguma forma, muito mais próximos daquele cara, daquela menina maquiada e dos outros. A menina deve ter treze anos: a gente percebe as suas curvas de mulher e seu olhar de criança, seu corte adolescente e sua tristeza de velha, seu vago sorriso de mãe e a ansiedade de menina, as mãos nos bolsos do casaco, a meia de lã por debaixo da saia, os mamilos atentos, a claridade da sua mudez. Deve ter doze anos.


Me lembrei do meu sonho nos seus lábios – e ela não disse nada do início ao fim. Ela tinha sonhado... não sei, não conseguia imaginar e subitamente me perdi numas lágrimas que se formaram no canto dos meus olhos: o vento frio me impedia de recuperar meus pais mortos. Essa ideia, ela sentada no meu colo, meus olhos se fechavam e lá estava eu. Acho que sou feliz, não tenho do que reclamar; feliz e imóvel.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

fragmento de "Dias Felizes"

WINNIE
"(...) A dúvida (Coloca o indicador e o médio junto à área do coração, procura o ponto certo, encontra.) Aqui. (Move-os ligeiramente.) Ou por perto. (Afasta a mão.) Ah, sem dúvida virá o tempo em que não poderei murmurar qualquer palavra sem a certeza de que você tenha ouvido a anterior e então um novo tempo virá, sem dúvida, um novo tempo em que terei de aprender a falar totalmente sozinha, coisa que jamais suportei tamanho deserto."

In: BECKETT, Samuel. Dias Felizes. Trad. Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2010. p41

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Alaura

olhos molhados
eu estou molhado de você

vou me afogar no seu corpo louro
afogado
me fala de lado

eu falho te ver no escuro
silhueta
seu rosto calado

se eu dançasse o seu trançado
ou se traçasse o seu compasso
esse sussurro só seria nosso

cio na voz:
à revelia desse laço
outra relação revelada
qual foto lavada

a pose de lado
molhada
me olha intercalado
ora me mata de amor
outra me acha chato

achei assim você naquele lindo dia
sem força, sem compasso e sem trança
nossa frança virava hungria
sua mão me chamou de carinho
seu abraço foi feito de linho

não me escapa da lembrança