domingo, 28 de julho de 2013

Hoje 2

Respirar quando se tenta não dormir – um talento do álcool, todos sabem. Mas por que tanto sono? Por que não dormir? O oposto da insônia é a bebedeira? Embriagar-se tanto e não querer descansar, bater a cabeça no ar como um árabe, como um roqueiro disléxico, entortando as pálpebras.
Quando se mistura café com vinho (não necessariamente no mesmo copo, não deve ser bom) chega-se num estado interessante de lucidez bêbada, uma vibrante vontade schopenhaueriana de revelar-se, entornar os olhos com o mundo exterior. Não é nenhuma droga ilícita, nada novo, inclusive, apenas um esforço de festinha, uma alegria tão permitida que pode soar até um pouco infantil. Você não vai pirar o cabeção, não vai destruir seu apartamento, se afogar na banheiro com uma torradeira ligada, vai só dançar alegremente a noite inteira, sem o sono, sem o detestável sono que estraga as noitadas.

Foi muito difícil chegar aqui. Muito trabalhoso, penoso. Não sei bem onde é aqui, mas sei que foi muito difícil chegar, por isso tenho que aproveitar e dizer pra mim mesmo, parabéns, você merece. Acordei hoje com a sensação de que meus pais tinham sido assassinados durante a madrugada. Pensei em tudo que eu acabaria tendo que fazer, as pessoas que eu teria que avisar, ligar, dizer.. como – como se liga pra alguém e diz que alguém outro morreu? pensei também no enterro, no discurso que eu faria no enterro deles, em como teria que herdar a casa, o dinheiro, as coisas, como meu irmão teria que voltar de londres para o enterro e como eles teriam morrido logo antes de fazer uma viagem que sonhavam há tanto tempo.

Eu sonhei que chorava, que babava, um ser jurássico e epilético sob a luz das estrelas. Eram uns pontinhos brancos naquele negrume de sítio na serra como um exército. No sonho eu não morria.

Passei todo esse dia quase acreditando que meus pais morreram. Eu não tive de coragem de conferir de manhã, antes de sair de casa – em parte pelo medo de encontrá-los num mar de sangue, com as peles brancas, as articulações enrijecidas, as pupilas petrificadas, ainda na cama, como manequins velhos de roupas sujas; em parte porque era curioso me imaginar naquela situação terrível e não queria que a sensação absurda terminasse. Inventei o meu martírio, o meu drama, queria vivê-lo com sua intensidade – chorei pela calçada e decidi à noite encher a cara, dobrar as mágoas na cachaça.

Estou excitado com a ideia de escrever. Olho para as pessoas em volta de mim, naturalmente. Quem são – o que sonharam nessa noite, eu me pergunto; imaginar o que um desconhecido sonhou naquela noite, tentar seriamente levantar isso nos coloca, de alguma forma, muito mais próximos daquele cara, daquela menina maquiada e dos outros. A menina deve ter treze anos: a gente percebe as suas curvas de mulher e seu olhar de criança, seu corte adolescente e sua tristeza de velha, seu vago sorriso de mãe e a ansiedade de menina, as mãos nos bolsos do casaco, a meia de lã por debaixo da saia, os mamilos atentos, a claridade da sua mudez. Deve ter doze anos.


Me lembrei do meu sonho nos seus lábios – e ela não disse nada do início ao fim. Ela tinha sonhado... não sei, não conseguia imaginar e subitamente me perdi numas lágrimas que se formaram no canto dos meus olhos: o vento frio me impedia de recuperar meus pais mortos. Essa ideia, ela sentada no meu colo, meus olhos se fechavam e lá estava eu. Acho que sou feliz, não tenho do que reclamar; feliz e imóvel.

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