Respirar quando se
tenta não dormir – um talento do álcool, todos sabem. Mas por que
tanto sono? Por que não dormir? O oposto da insônia é a bebedeira?
Embriagar-se tanto e não querer descansar, bater a cabeça no ar
como um árabe, como um roqueiro disléxico, entortando as pálpebras.
Quando se mistura café
com vinho (não necessariamente no mesmo copo, não deve ser bom)
chega-se num estado interessante de lucidez bêbada, uma vibrante
vontade schopenhaueriana de revelar-se, entornar os olhos com o mundo
exterior. Não é nenhuma droga ilícita, nada novo, inclusive,
apenas um esforço de festinha, uma alegria tão permitida que pode
soar até um pouco infantil. Você não vai pirar o cabeção, não
vai destruir seu apartamento, se afogar na banheiro com uma
torradeira ligada, vai só dançar alegremente a noite inteira, sem o
sono, sem o detestável sono que estraga as noitadas.
Foi muito difícil
chegar aqui. Muito trabalhoso, penoso. Não sei bem onde é aqui, mas
sei que foi muito difícil chegar, por isso tenho que aproveitar e
dizer pra mim mesmo, parabéns, você merece. Acordei hoje com a
sensação de que meus pais tinham sido assassinados durante a
madrugada. Pensei em tudo que eu acabaria tendo que fazer, as pessoas
que eu teria que avisar, ligar, dizer.. como – como se liga pra
alguém e diz que alguém outro morreu? pensei também no enterro, no
discurso que eu faria no enterro deles, em como teria que herdar a
casa, o dinheiro, as coisas, como meu irmão teria que voltar de
londres para o enterro e como eles teriam morrido logo antes de fazer
uma viagem que sonhavam há tanto tempo.
Eu sonhei que chorava,
que babava, um ser jurássico e epilético sob a luz das estrelas.
Eram uns pontinhos brancos naquele negrume de sítio na serra como um
exército. No sonho eu não morria.
Passei todo
esse dia quase acreditando que meus pais morreram. Eu não tive de
coragem de conferir de manhã, antes de sair de casa – em parte
pelo medo de encontrá-los num mar de sangue, com as peles brancas,
as articulações enrijecidas, as pupilas petrificadas, ainda na
cama, como manequins velhos de roupas sujas; em parte porque era
curioso me imaginar naquela situação terrível e não queria que a
sensação absurda terminasse. Inventei o meu martírio, o meu drama,
queria vivê-lo com sua intensidade – chorei pela calçada e decidi
à noite encher a cara, dobrar as mágoas na cachaça.
Estou
excitado com a ideia de escrever. Olho para as pessoas em volta de
mim, naturalmente. Quem são – o que sonharam nessa noite, eu me
pergunto; imaginar o que um desconhecido sonhou naquela noite, tentar
seriamente levantar isso nos coloca, de alguma forma, muito mais
próximos daquele cara, daquela menina maquiada e dos outros. A
menina deve ter treze anos: a gente percebe as suas curvas de mulher
e seu olhar de criança, seu corte adolescente e sua tristeza de
velha, seu vago sorriso de mãe e a ansiedade de menina, as mãos nos
bolsos do casaco, a meia de lã por debaixo da saia, os mamilos
atentos, a claridade da sua mudez. Deve ter doze anos.
Me lembrei
do meu sonho nos seus lábios – e ela não disse nada do início ao
fim. Ela tinha sonhado... não sei, não conseguia imaginar e
subitamente me perdi numas lágrimas que se formaram no canto dos
meus olhos: o vento frio me impedia de recuperar meus pais mortos.
Essa ideia, ela sentada no meu colo, meus olhos se fechavam e lá
estava eu. Acho que sou feliz, não tenho do que reclamar; feliz e
imóvel.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Faça da interrupção, um caminho novo.