Manoela sabe que quando o samba gagueja não quer dizer final mas breque, ou seja, Manoela entende que todo toque toda ginga ou bamba fraqueja pra poder trocar olhar mais tempo, pra fazer durar o tempo, pro tempo real ser tempestade, temporal, enchente e tal, e do fundo desse tempo todo poder voltar como esgoto em maré cheia. Ela anda descalça na rua atenta mas desleixada nas poças amarelas de varíola e cólera e raiva, catarros descartados pela chuva, carros assassinados pela enchente, servos do sistema, quer dizer, tudo que ela despreza mas não teme. Manoela é esguia, é linda, é peixe, enguia, é fruto podre na varanda ao vento ao ataque do tempo e do vírus; Manoela é calma, é como a lama abaixo.
O que Manoela não sabe é que naquele lado daquele dia, no laudo dos sobreviventes, não havia a poesia das águas, mas a prosa dos jornais, os ataques dos abutres, a sujeira dos asfaltos, e os altos e baixos das depressões apaixonadas, portanto, o nado desesperado dos ratos nos navios que singram, os patos que migram, o cheiro que antecede os terremotos, e que cruzar a rua descalça seria um zarpar sem volta, e que entrar naquela roda, naquela praça, excelsa a chuva do céu, lenta a nave dos olhos, forte o perfume do fumo, morria a criança abraçada no fiapo de sentido que é sentir-se vivo infelizmente.
Assim, Manoela descansa os olhos na roda à frente na praça sobre as poças podres sob a garoa boa da tarde de outono morno e desesperadamente triste sentindo que toda a sua vontade de estar ali se fora assim que sujou seus cabelos negros naquela água, quer dizer, que simplesmente sair de casa era sujo. Manoela olha pra si, pras suas roupas coladas ao corpo, pros seus colares e pulseiras, pro seu ventre livre à mostra, pra sua saia rasgada e recosturada, pras suas cores tristes, pras suas unhas, pros seus pés submersos no mangue...
Manoela sabe que tem uma pergunta mas não sabe formulá-la e então melhor calar-se pra quando puder dizê-la, fazê-la agora soa prematuro.
Manoela não sabe que ela é a pergunta prematura e linda e enguia e livre e descalça e chuva e rescosturada e fumo e praça e terremoto e tempestade e de volta o samba se encaixa nela como só depressões apaixonadas encaixam.
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