quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

restante amor

resta eu te escrever, meu amor
resta eu te dizer o quanto eu te amei
e amo
aquele amor
que quer socar sua cara
e te tirar da foto

resta te afogar
no jardim do MAM
e dizer que a alegria do palhaço
é ver o circo pegar fogo
aquele amor
de subir em poste
que quer tomar porrada da polícia se for preciso

resta eu te escrever qualquer porra
amor
qualquer porra minha
que escorra pelo céu escuro
que rasgue seu rosto
que seja beijo e pau duro
e que você finalmente morra

resta dizer que a felicidade é tanta
que o amor transborda tanto
resta transbordar todos os buracos
todas as lajes e espaços
todos os cantos de toda a cidade
todo o carnaval das carnes e dos bares
e das purpurinas douradas

resta te matar
e me matar
e acordar
pra nunca mais
resta

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

presságios na zona sul

E sem decidir como escrever minha história
está muito difícil escrever
olho amigos tampouco eles estão melhores também como folhas novas secas pisadas craquelando
Sinto presságios

Nos desejos recalcados seculares telúricos reboando nos subsolos da cidade e prontos para ejacular lava dos orifícios encanamentos proibidos
Nos talheres de prata quebrados familiares tradicionais tilintando pelos corredores do castelo nas escadarias das universidades nos fortes históricos nas masmorras dos olhos dos pais
Nos socos violentos voadores que velejam os ventos de inveja e luxúria pelas bordas das asas das borboletas - como já disseram
Nos fundos das festas sufocados de gemidos agudos agulhas genitálias babando fundo nos corpos dançantes
Na saudade & tortura & gozo das fotografias analógicas; pra que serve minha carteira de motorista, meus óculos novos, os prêmios universitários, o número da previdência social, os cálculos das tarifas bancárias, as copas de escritórios com coleta seletiva e campanha de agasalho e adoção de animais fofinhos...?
Nas prateleiras mesas computadores almoxarifados terabytes ambulantes desesperados repletos cobertos de foster wallace, miguel gomes, marcio abreu, ginsberg, burroughs, borges, godard
Nos prédios de manhanttan, seus mapas de metrô esgoto linhas de ônibus ataques terroristas como cartografias móveis avançando pelas sinapses da mente gerando trovoadas que decepam os nomes de personagens de fotos de turma, excrementos em forma de novos endereços, cartas de amor talvez
Nas batalhas virtuais perdidas são sempre perdidas e o sôfrego sofrer repetitivo sobre a enorme vontade de ser dos seres
No religioso risco dos esportes radicais, no sagrado voar das aves e das nuvens (especialmente sobre os morros verdes da zona sul), nas trágicas ceias de natal repletas de peru e vinho e família, na bíblica inflação dos aluguéis, nos proféticos livros de deleuze & guattari e críticas aos livros de deleuze & guattari, no helênico ciclo-ativismo, no lindo traço dos lápis 2B S2, na heróica editora cobogó, queria listar mais
Nos olhos cinza-sinceros semi-sorrindo dos amigos perdidos morando mal, sentem sede na boca e no rabo, fugidos, imigrantes tristes empilhando empilhados passos de jabuti na europa dos corações sangrantes e nas trocas de namorados, me sinto trocado, eu sei os segredos, quem me dera não errar dessa vez
Nos distúrbios mentais dos seus olhos cinzas & cabelos lindos em praças do rio som de coco & maracatu prédios prédios prédios adeus soçobrados sobrados adeus ninguém aguenta olhar pra cima tanto tempo tudo sobe, os preços e os prédios
Nas lentes lindas da minha câmera analógica vejo meu avô e meus amigos nus como índios, greve dos garis e chorume concentrado de um milhão de reveillons pentecostes copacabana
Nas selvas dos miolos dos pentelhos dos estudos dos cabelos dos sistemas de pensamento do apichatpong das músicas do frusciante dos desejos complicados complicadíssimos
Na música eletrônica ~~~~~~~~~~
No seu beijo e baba e bunda e fundo e tudo que não cabe no seu quarto armário apertados bichos de pelúcia patrulhando a seborréia que escorre interminável do seu orgasmo galático derretendo nossa cama de cacos de vidro sobre os azulejos hidráulicos históricos do piso que seus pais escolheram, somos putaria jurássica

sábado, 14 de novembro de 2015

vou morrer de tanto chorar

hoje descobri como vou morrer
me veio entre sonho e outro
em limbo de lucidez austral talvez
que vou morrer de tanto chorar

não acidente assassinato doença
nada disso que mata todos os dias
não tortura assédio enchente seca
nada disso que mata todos os dias
não descaso do governo fome tragédia ambiental
nada disso que mata todos os dias
não chacina fascismo facada assalto
nada disso que mata todos os dias
não incêndio tiroteio bomba fogo nos olhos do menor
nada disso que mata todos os dias
não ataque terrorista catástrofe tsunami tóxica
nada disso que mata todos os dias
não degola polícia câmera de gás
nada disso que mata todos os dias
não saudade crepúsculo ataque cardíaco
nada disso que mata todos os dias
não câncer corte ânsia sede
nada disso

suicídio olhar ouvir e ir e devir
ser todas suas causas mortis somentes
sozinhos em suicídio se apagando
morrendo de tanto tanto chorar

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

apnéia

Eu teria muito pra te contar do cativeiro - cheiro de urina e verniz e gasolina, texturas de paredes toscas, ásperas, trepidar e ricochete de geladeira de algum cômodo acima, cozinha provavelmente, torturas com choques elétricos e arrancar de unhas, cegueira, ridículo de chorar ou gritar ou espernear ou se inconformar, visitas frequentes de fantasmas, ânus, toca dos escritos, simples dor, talvez terra talvez não, acima o inferno, aqui a caverna, jogos de palavras, palavrões, bizarra disciplina perdedora de corpo e de mente, benção da água, língua, lágrimas, burburinho catatônico incessante da própria voz e de dentes seus, deformidade do corpo, imobilidade, jesus cristo, paladar de merda, cheiro dos órgãos, menos unhas que dedos, perda do medo e medo incessante... - entretanto talvez a terra na minha boca desfaça a aspereza dos fonemas, ou o trepidar dos lábios confunda as palavras, e de forma alguma eu quero transformar a complexa vida vívida vivida num ávido reflexo, num cuspe, num flashmob grotesco de insatisfação: talvez, portanto, eu precise desesperadamente dessa câmera, pra que ela seja a minha melhor arma, pra que ela mostre ao outro como eu o vejo, e principalmente, pra que toda lembrança do cativeiro - que revisito sempre nos pesadelos e nas filas do banco - seja revelada e mantida presa na minha jaula, como um frame na noite.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

desconfio

desconfio das festas que bombam demais ou por tempo demais ou que todo mundo ama nesse espaço estriado pouco claro que são as redes sociais e que tem mais confirmações do que caberia uma vez que parece que todos os eventos de sexta tem todo mundo confirmado em todos;
desconfio de quando me cumprimentam com muito carinho quando não me conhecem mas como se me conhecessem;
desconfio de pessoas que gritam ou falam muito alto ou não param de falar ou tem muita opinião assertiva sobre tudo numa noite em que só saí pra beber;
desconfio quando passam a mão na minha perna debaixo da mesa pode ter sido um esbarrão quem sabe;
desconfio de garçons que já chegam com a cerveja aberta na mesa ou já abriram antes de perguntar ou que não respondem perguntas direito;
desconfio de mesas muito grandes em que não está claro quem consumiu o quê especialmente quando eu não conheço nem metade das pessoas que estão ali sempre peço por fora ou arredondo pra baixo malandro malandro mané mané;
desconfio de bares point sem qualquer motivo aparente ou que o motivo é aparentemente estúpido;
desconfio da autoria das coisas que as pessoas postam não que eu me importe com autor mas quero saber quem fez mesmo;
desconfio mesmo de qualquer um que fale qualquer coisa sobre qualquer coisa pra mim é difícil falar alguma coisa então desconfio;
desconfio de (certas) risadas também;
desconfio de comerciantes que tem cara de que inventam um preço pra cada pessoa mas acho que isso é geral;
desconfio de caipirinhas de rua mas confesso que sempre tomo e não me arrependo;
desconfio de pessoas que usam "na verdade";
desconfio de gatos mesmo os fofos talvez principalmente os fofos visto que geralmente gatos são fofos;
desconfio (muito) de mauricinhos que estão na mesma roda/mesa/etc que eu;
desconfio de moradores de rua e depois me sinto um merda preconceituoso não vou levar isso adiante e depois desconfio da minha atitude auto-consciente vitimizante passiva olho pra frente ponho a mão no bolso se ele levantar eu corro mas tentar sacar se é realmente um lance violento ou não antes de correr etc eu sou tão menor que essas questões e simultaneamente tão biologicamente envolvido;
desconfio de boa parte dos políticos, empresários, CEOs, presidentes de multinacionais, basicamente todo mundo que aparece vestido de terno em jornais;
desconfio mesmo de quem usa terno;
desconfio de quem acorda muito cedo pro trabalho;
desconfio de trabalho;
desconfio de quem acha que arte é pra se expressar ou pra comunicar;
desconfio mais que tudo de mim mesmo diante de situações em que eu pareço estar respondendo automaticamente a novas perguntas (as perguntas são sempre novas quando refeitas é preciso re-respondê-las) usando de conceitos fixados em grupos de semelhantes incapaz de generosidade para os outros e extremamente desconfiado e arrogante.


segunda-feira, 17 de agosto de 2015

A difícil tentativa de dar uma opinião polêmica

Escorrendo sobre as margens de lodo da lagoa, o restaurante chique estilo modernoso-rústico meio pra gringo e pra moradores muito ricos - aquele tipo de morador rico que, ou gosta de passar por gringo, ou assume um estilo de em-viagem, um certo padrão visual internacionalmente tido como elegante, quer dizer, algo que, assume-se, qualquer pessoa, pelo menos qualquer ocidental, vai achar agradável, modernoso, rústico, elegante etc. Na mesa mais afastada do bar, com pouca iluminação, digamos algo que poderiam chamar de romântico-modernoso-rústico, dois homens desse padrão, não sabemos se gringos ou se passando por gringo ou isso tudo aí, conversam entre doses de drinques que não sabemos o nome - são drinques delicados, refrescantes sempre, com cores não tão vivas e hortelã, em taças miúdas, bem miúdas, com tanto gelo que deve ter pouco a se beber efetivamente. Mas não sabemos - não frequentamos muito esse tipo de restaurante.
Um dos homens veste camisa social preta com um botão aberto por cima de um blaser verde musgo bem escuro de veludo revestido internamente por um tecido listrado verde clarinho e branco muito delicado, não sabemos dizer qual tecido, pensamos em seda, mas depois pensamos que talvez seda seja um pouco demais, nem mesmo sabemos se se fabricam blasers assim, veludo com seda, um pouco surreal, mas talvez não, não sabemos mesmo, é um blaser bem elegante e de corte impecável, o que nos faz pensar que é feito sob medida (mas não sabemos). Esse homem é careca assumido - raspa o pouco de cabelo que por ventura ainda cresça - e usa óculos quadrados de aros de plástico vermelho. Não vemos suas pernas, mas sua posição sugere que estejam cruzadas em pose elegante, enquanto casualmente beberica de leve seu drinque azul.
O outro homem veste camisa social azul com mangas dobradas até a altura dos cotovelos, dois botões abertos no peito, ainda possível ver os vincos da dobradura da camisa nas laterais dos braços e no ombro e duas linhas ao longo do peito em paralelas que coincidem com as longitudes de seus mamilos (invisíveis claro, estamos assumindo aqui uma aproximação, uma possibilidade bastante provável que, pra efeitos de humor, queremos levar à cabo - supor precisa simetria entre dobradura de camisa e mamilos nos soa divertido). Seu blaser, menos elegante, mais ordinário (íamos dizer "mais dia-a-dia" com a acepção de que parece ser uma peça de trabalho do segundo homem, mas depois "mais dia-a-dia" nos pareceu impreciso - vamos prosseguir e refletir sobre a possibilidade de "mais dia-a-dia"), e apóia sua bolsa-maleta ao seu lado - tudo sugerindo que este homem veio para o restaurante imediatamente após o trabalho diário. Tem cabelos cheios e despenteados, olhos grandes, mãos grandes, pele notadamente mais branca que a de seu colega, e também jeitos menos sofisticados, menos elegantes, o que nos parece indicar que a sugestão desse restaurante veio do primeiro homem, do mais elegante, de fato, "faz mais a cara" daquele (expressão aqui empregada não apenas pra indicar essa semelhança de gosto, mas também num gesto irônico de que o primeiro homem quase se camufla como peça de decoração: suas roupas combinam-se perfeitamente com as almofadas dos bancos, tanto em textura quanto em tonalidade).
Não comem. Bebericam drinques. Conversam.

É difícil de engolir.... difícil mesmo. Eu não sei o que te dizer agora, mas também não vou dizer que concordo. Apenas... entendo.
É porque estou certo - por isso você não tem resposta.
Me soa terrivelmente misógino, acho...
Não, justamente o contrário - todo esse mundo de ideologias, de sistemas, de, se me permite colocar nesses termos, uma vontade de razão, tudo isso, é fruto dessa forma-pensamento que utilizamos, é fruto da nossa sociedade macho branco heterossexual ocidental capitalista, entende?
Mas é um sofisma grosseiro incluir o feminismo nessa conta, ou seja, o que surge como oposição à esse sistema...
Claro que é possível incluí-lo: o feminismo atua de forma a incluir certas práticas dentro dessa sociedade, atua pela inclusão, seja de direitos, ou de leis.
Ou seja, de maneira a transformar essa sociedade pra melhor, pra curá-la de pelo menos um de seus preconceitos...
Talvez, mas foi você mesmo que colocou a questão - de como mesmo em ambientes, digamos, 100% feministas, totalmente pró a inclusão das mulheres nos mercados de trabalho, nos ambientes que lhes foram cerceados por tantos séculos, mesmo ali, resta uma impressão de que elas não executam tão bem quanto um homem...
Não foi isso que eu disse.
Foi o que você falou, você falou do seu departamento, das mulheres no seu departamento...
Falei justamente pra enfatizar o quanto ainda temos que avançar, que mesmo num ambiente aparentemente aberto a mulheres, ainda restam...
Não, não, não estou questionando isso - isso é claro: a nossa inclusão parcial está bem longe de ser ideal, mas você mencionou - pelo menos assim entendi - que você não achava que as mulheres do seu departamento eram tão brilhantes, que você tinha a impressão de que elas estavam no lugar errado, porque aquilo seria de certo modo uma função de um homem - você mesmo comparou: seria como se criassem uma cota para mulheres em um campeonato de esporrada à distância...
Fala baixo. Você está eufórico. Calma.
Perdão... bom, você colocou dessa maneira.
Sim, eu disse - disse que certas funções não foram pensadas pra serem executadas por mulheres, são espaços totalmente masculinos, mas isso não quer dizer imediatamente que sejam machistas. - ao contrário, digamos que existe mesmo uma espécie de homoafetividade intensa nesses espaços. Nas Forças Armadas, por exemplo.
Sim! Exatamente. O meu ponto, se me permite uma metáfora, é que é como se nós estivéssemos jogando esse enorme jogo, cujas regras foram escritas por homens, e que era exclusivo aos homens - brancos heterossexuais ocidentais etc - jogá-lo. E agora, vemos todas essas minorias reclamando seu direito de jogá-lo. Justo, claro - mas elas se esquecem de que as regras foram feitas por homens para homens, eles serão sempre os melhores jogadores, esse é o jogo deles, eles vão ganhar sempre...
Mas eles querem mudar as regras também! Para que elas os contemplem também! Estão subindo ao Congresso, estão aprovando novas leis, estão mudando o jogo por dentro...
Não, você não está acompanhando. A própria ideia do Congresso etc, de como o Estado atua, de qual seu papel na sociedade, enquanto sujeito, entende?
Não, acho que você está propondo uma espécie de revolução, mas sendo extremamente preconceituoso com todas essas minorias que você diz estar levando em consideração. Não existe política nisso que você diz, apenas palavras fortes. Apenas ser do contra.

Os dois homens tornam a beber seus drinques elegantes sentindo a brisa leve e agradável de onde estão. Os drinques estão balanceadamente refrescantes, os gelos titilam alegremente (íamos dizer "como sinos de natal", mas depois nos pareceu uma expressão por demais jocosa, como se estivéssemos emitindo algum tipo de julgamento moral desse tipo de bebida e, por extensão, dos dois homens - não estamos), mas eles não chegaram a um entendimento.
Pedem a conta com um sinal e um gesto de mão-que-escreve-no-ar. Foi caro.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Entrada

Nossa, eu conseguia sentir forte seu cheiro, como se você fosse a própria brisa do mar. Essas situações pedem depoimentos dramáticos, né? Realmente tem essas coisas que você só compreende essencialmente quando elas acontecem contigo - talvez a maioria das coisas - um conhecimento "corporal", "visceral", como costumam dizer, né? Como eu posso te explicar?
Começa pelo começo... (riso cheio de dentes brancos)
Poxa... bom, eu não queria usar a palavra "se apaixonar" porque ela é muito forte e muito usada vulgarmente como uma situação muito explosiva, romântica, né? Tem a ver com o que eu quero dizer... Bom, se você me permite uma digressão etimológica, acho que páthos é a parada que estou tentando achar, que é o radical de "apaixonar-se", né? É dessa "paixão" que eu queria falar, mas não queria que esbarrasse em "apaixonado", "apaixonada", pelo menos não por enquanto, me incomoda um pouco isso agora.
Tudo bem... vamos deixar de lado. (sorriso simpático)
Tá (sorriso sem jeito). É simples, é só que a gente praticamente não se conhece, nos conhecemos super randomicamente, bem aleatório, e eu estou curtindo pra caralho esse papo que estamos tendo, acho impressionante que tenhamos chegado tão fundo logo num primeiro encontro, né?
(sorriso com dentes, olhos fixos nos olhos)
Então, e comecei a sentir essa "paixão" difícil de descrever, uma coisa realmente corporal, vou até dizer fisiológica, entende?
(pausa) Tipo uma dor de barriga? (risos)
(risos) Não sei, talvez! (risos)
(risos)
(risos - pausa, olhar perdido, pensamento por trás dos olhos) Bom, não sei o que é, mas percebi que estava diretamente relacionado contigo, entende? Notei que é esse nosso papo tão fluido, né? tão fácil, tão difícil de se ter normalmente com uma pessoa estranha, e que isso me fazia muito bem e tive essa "compreensão corporal", tipo, meio que soube dentro de mim essa coisa que estou tentando te explicar, mas o mais importante é que é uma certeza, uma descoberta, feita pelo corpo.
(olhar interessado, talvez felino, talvez jeito sensual, talvez um botão da camisa se abriu sozinho, talvez dois)
(sorriso pálido de canto de boca, olhar apreensivo, talvez volátil, talvez tropeçando eventualmente em peito recém descoberto, ligeiro gaguejar, tentativa de disfarçar) E o mais estranho é justamente o que eu estava te dizendo que não gosto muito da ideia de "se apaixonar", acho uma coisa criada, "amor romântico", entende? Acho que projetam esse tipo de coisa na vida, mas a vida não é assim, né? E a coisa é levada a um nível absurdo, de "amor à primeira vista", entende?
Eu já me apaixonei a primeira vista. Eu não esperava muito que rolasse, mas rolou, e foi incrível, uma sensação de proximidade difícil de descrever...
Tipo coisa de filme, assim?
Tipo mais que isso. Tipo, em filme é apenas o momento de se conhecer, eles sempre terminam o filme quando o casal meio que se firmou e pronto - "felizes para sempre", ou alguma coisa parecida com isso que tem esse efeito. Mas isso o que eu estou falando é do próprio relacionamento explosivo que a gente teve. Foi curto e intenso. Foi muito importante pra mim. (rearruma-se, talvez note botões demais abertos, talvez feche apenas um)
É, acho que você entende, então, o que eu estou tentando descrever. Essa sensação corporal, esse páthos intenso de um encontro significativo com alguém, ou que te confere significado de algum modo, quer dizer, não significa nada, mas não é esse o ponto, o ponto é o encontro intenso, a conexão, né?
Sim... (sorriso)
Pois foi isso que eu senti, que estou sentindo ainda... e começo a desconfiar que talvez seja apaixonar-se, talvez seja amor a primeira vista, talvez seja isso tudo que eu sempre recusei, combati até... (proximidade, momento crítico, inclina-se para beijo)
(não se inclina, mantém olhar, não se reclina tampouco)
(apreensão, certa dúvida, agora não tem mais volta, inclina-se para beijo pra valer)
(aceita todo novo toque, recusa beijo olhando pro lado quando lábios quase colam)
(pensamentos por trás dos olhos, inclinar-se se torna abraço, respira fundo)
(recebe abraço, pausa, desfaz abraço, sorriso miúdo sem dentes, talvez mais dois botões se abriram, talvez note e feche apenas um)
(talvez note peito redescoberto, talvez certo grau de desejo sexual primário)
(pausa) Olha, é que eu não senti tudo isso que você falou...
Não, claro, não era esse meu ponto também... Aliás, acho que foi bastante exagerado o que eu falei.
Sobre a gente estar se dando tão bem num primeiro encontro?
Não, sobre apaixonar-se, entende? Tipo, não acredito muito nisso, é o que eu estava te dizendo, é uma coisa inventada, vendida, muito naturalizada, mas tem data de nascimento, poetas do século XIII ou XII, não sei bem... (olhar pro chão, ou pra longe, ou pra qualquer lugar exceto o outro olhar)
Sim, na Ocitânia.