domingo, 13 de junho de 2010

Dia dos namorados (ou Plongée)

Era a madrugada mais fria, gelada do ano. Os sinais piscavam em amarelo, as poças refletiam o amarelo, o asfalto sustentava as poças com seus reflexos - mas o seu reflexo era mais opaco. Raros carros passavam, pouca gente passava. Só Citônio.
Ele caminhava lentamente lembrando liricamente daqueles lindos dias de devassidão. Costumava sair muito com seus amigos de madrugada, catando mendigos por aí, contracenando com os marginais da meia-noite, recolhendo os colegas nas casas de cada um, bebendo cachaça e terminando no lixão afastado, ou na praia, ou no porto, ou perto da prisão, ou em cima de um viaduto. Agora, no entanto, caminhava sozinhamente. Começou a cair uma garoazinha finazinha.
Citônio contornava um muro altíssimo, todo cinza, todo reto, encimado por coroas enroladas de arame farpado e cacos de vidro rosa espetados. Citônio caminhava, sozinhamente. Ali, preso entre os labirintos do arame, havia alguns gastos sacos plásticos de outros tempos, que o tempo frio trouxe e ali eles ficaram presos, dançando, leves, com o vento. Eram como bandeiras de impérios caídos, rasgados, com seus restos tristes balançando - sozinhamente. Citônio pulou um bueiro encharcado de baratas. Olhou novamente para o alto do muro. Além dos panos plásticos percebeu que haviam pássaros - pombos - presos na rede farpada. Alguns pareciam já estar mortos, mas outros ainda tinham espasmos débeis e piscavam os olhos, sem compreender que findavam com as penas presas no arame. Citônio não se impressionou, mas franziu o cenho. De repente veio, muito lento, um carro, com faróis acesos muito fortes. Citônio continuou caminhando, mas meio cego pela luz forte. O carro passou. Citônio, então, viu algo mais bizarro. Ali, em cima, preso no arame farpado e nos cacos de vidro cor-de-rosa como os sacos plásticos, havia um poeta morimbundo, com espasmos tão débeis como o dos pombos, com olhos tão sujos quanto o bueiro embaratado. Estava roto, tolo, tosco; morria como um rato, roído pelo arame, rasgado pelo vidro. Ele deu um risinho triste, Citônio olhava-o, sério. Então, depois de alguns segundos, o poeta virou-se e viu Citônio, e, com a boca presa pelas garras do arame, disse, sem falar uma palavra: "Envalsei-me no veludo!"

Citônio nunca mais pensou noutra coisa.

4 comentários:

  1. caraca!!! sensacionalis!!!!!
    !!!
    !!
    !



    (!!)

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  2. um mergulho noite adentro

    obs: gostei do novo layot

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  3. pássaros, plongées..
    tem alguém pensando muito nas coisas da faculdade.. ahaha
    lindo texto, ian!

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  4. inspirações da morte e a morte de Quincas!
    e parece que no hoje é dia de maria, mas vc num tinha visto quando escreveu, então, acho que minha hipótese é falha.


    Achei lindo, adoro as descrições que vc faz.

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Faça da interrupção, um caminho novo.