Tudo recomeçou no Despetar da Primavera. Como todo mundo sabe, essa é uma peça super transgressorazinha, cheia dos lances sexuais e castrações de pais autoritários, suicídio etc e tal. E a maioria das pessoas fica sinceramente tocada depois que assiste, muda a vida, troca de nome, ou de sexo até. Já vi um que passou a usar uma venda transparente pro resto da vida. Cada macaco no seu galho. Quando Citônio e Arquimedes, seu professor de acordeon, saíram do espetáculo, no entanto, tiveram uma disenteria braba e juraram nunca mais voltar ao teatro em anos bissextos.
A semana teria transcorrido normalmente, não fosse a prova de carpintaria marcada pra quarta-feira, que Citônio não estudara patavina, afinal, os dias de sol eram raros naquela época do ano, e ele estava esperando as chuvas voltarem a alagar a cidade para, preso dentro de casa, não ter outra opção que não meter a cabeça nos serrotes - não literalmente, claro.
Portanto, não era de se espantar que, depois de dias de sol alegre e fofolete no céu, Citônio fosse um dos únicos na sala depois de quase doze horas e meia de prova. A quarta-feira foi, coincidentemente, o primeiro dia de chuva depois de muito tempo. Faltando apenas dez minutos para o fim do exame, Citônio passou os olhos pela sala e reparou que estava sozinho com Loirelinda - que podia ser linda e loira, mas era burra como uma tábua - aliás, como A tábua que tentava serrar com o lado sem corte do serrote. Como até a professora, Sra. Bicho, já havia deixado a escola por conta do risco de inundação iminente, dizendo aos alunos restantes que não colassem e que deixassem suas cadeiras envernizadas em cima de sua mesa que ela recolheria no dia seguinte, Citônio se sentiu livre para desrespeitar parte das ordens e orientar Loirelinda na sua ridicula tentativa de criar uma tábua menor (a cadeira envernizada estava longe de ser atingida).
Aquele era, com certeza, o momento de maior proximidade que os dois já tinham passado - antes havia sido uma vez que ela sentara sem querer ao seu lado no ônibus e dormira caindo em seu ombro e babando em seu casaco. Ela agradeceu gentilmente a ajuda oferecida por Citônio, ele se aproximou, sentindo seu aroma de camomila, pegou o serrote e, másculo como um bombeiro, serrou a tábua ao meio. O sinal indicando o fim da prova tocou e os dois arrumaram suas coisas em silêncio, sentindo, ambos, um friozinho na barriga, como aqueles que prenunciam o momento em que a agulha vai entrar na sua veia num exame de sangue.
Qual foi a surpresa cheia de contradições que tiveram quando perceberam que estavam presos no colégio devida à chuva, que fizera o rio elevar doze metros de seu leito até os muros da escola e os ratos nadarem em formações migratórias em busca de terra firme. O temporal estava forte e pequenas pedrinhas de gelo começaram a tamborilar sobre o telhado de zinco e sobre as telhas de amianco da portaria. O frio espalhou-se como cheiro de gás, o granizo acumulava-se pelo pátio e os dois voltaram para a sala em busca de lenha para uma fogueira. Como ainda queriam passar na prova, pegaram as cadeiras dos outros colegas para alimentar as chamas. Loirelinda tremelicava como um gago e encolheu-se entre os braços de Citônio para aquecer-se, que, como todo bobo apaixonado, manteve-se na mesma posição por mais que seus ísquios doessem terrivelmente.
E foi assim que eles deram o primeiro beijo: Citônio foi lentamente abaixando a cabeça e Loirelinda foi lentamente fingindo que não percebia nada, até que seus rostos lentamente se aproximaram e ela sussurrou lentamente: "me beija, melchior". Ele lentamente fingiu que não ouviu, e suas línguas lentamente se enrolaram.
Citônio aprendeu a nunca descrer no teatro.
AI, CARAMBA, SEÑOR!
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