quinta-feira, 7 de julho de 2011

Nostalgia

"O cheiro mudou totalmente... agora é só cheiro de jaca", disse empinando as narinas para o alto. Os comentários são diferentes e sempre os mesmos quando passamos muito tempo fora de casa (no meu caso, sete anos de coma), ou voltamos pra algum lugar da infância - isso mudou, aquilo era diferente etc e tal. Mas fazer o que, de fato o cheiro de jacas inundava a casa e aliviava o fedorzinho carinhoso da nossa cadela.
"A Filomena morreu..." respondeu-me Edvar quando notou meu gesto esperando senti-la alegre abanando o rabo até os recém-chegados na casa. Ele me guiou pelo braço até o sofá (este ainda era o mesmo) e apoiei minha bengala histérica nos joelhos.
Edvar me contou "morreu de velhinha mesmo, nenhuma doença séria. Ela sempre foi forte, né?" Concordei com a cabeça. Perguntei novamente sobre o cheiro, como que indicando que minha dúvida não era exatamente o cheiro, mas o que fora mudado para que ele mudasse junto. "Aterraram o mangue, claro - melhorou, na minha opinião. Antes cheirava a caranguejo" "Eles até invadiam a casa, quando você era criança!" "Me lembro". Edvar já devia estar barbudo.

As primeiras semanas são para se adaptar. Bengala batucando de um lado pro outro e muita pouca coisa pra fazer. Os afazeres do tato, embora quase sempre mais sensuais do que os do olho, são pequenos em quantidade. Chato era perceber que, embora estivesse com 44 anos pulsando nos músculos, minha pele me oferecia ao mundo como setenta.
A música, era de se esperar, tornou-se-me muito importante. Fazia minha aura elevar-se, cândida, acima do vulgar, como um homem de algodão, logo após o banho das seis e meia e das meias dobradas em cima da cama. No entanto, queria me arriscar.

Desejava a rua muito intensamente, e, mesmo que temesse seus poemas cacofônicos, o medo era um misto de recôndido desejo. Acho que todo medo é um pouco desejo. As profundezas das cavernas, escuras que não vemos o fundo, mas sentimos o cheiro da água calada em seus túneis, são tão misteriosas e assustadoras que é quase impossível resistir ao seu chamado, às suas brisas frias. Mesmo que de olhos fechados - como os meus - a mão busca os labirintos rochosos da mesma maneira que, presa em nossos cinismos, a mente termina por almejar nossos territórios mentais obscuros. A intensidade da luz presa numa caverna é sempre mais esplêndida que aquela do sol. Portanto, preso em minha caverna até o fim da vida, restava-me esse facho de luz proibido aos não iniciados - restava iniciar-me.
Antes que tocasse a bengala para tatear meu caminho até a rua, pensei melhor. Qual seria a impressão de não utilizá-la, pelo menos aquela primeira vez? Sair sem tê-la nas mãos como auxílio afigurava-me como uma aventura ainda mais desejável. Sair sem bengalas, ou suportes - sair, simplesmente.
O zumbido da rua começou a me sussurrar desde longe no condomínio comprido em que meu filho morava. Caminhar ali dentro ainda era fácil.
Cruzei o umbral da entrada do prédio e senti no rosto o bafo dos automóveis e o calor firme do sol da tarde - não pude segurar o sorriso que me escapou e o tremelicar dos dedos da mão. Para onde iria? Até a praça ao final da rua, que, lembrava, atravessava-se poucos sinais.
Os primeiros passos eram tímidos, quase arrastando os pés no chão, mas fui aprendendo com rapidez como caminhar naquela situação. O corpo foi tomado pelo universo, pois sentia, entrando-me pelas cutículas o pavor, o caos que rege o mundo. No entanto, este pavor me afigurou ruim, doía minhas têmporas tamanha minha concentração. Avançava como um equilibrista, suspenso nas lágrimas que se juntavam, charmosas, nos olhos. Passei a mão pelos cabelos e lembrei-me de Praga e seus violinos, assassinos de sonhos.
Então senti uma mão de menina pegar na minha.

Um comentário:

Faça da interrupção, um caminho novo.