Acabei de retornar de uma sessão cinematográfica dupla no cinema que há pouco se chamava Arteplex e que agora mudou o nome pra alguma coisa com o Itaú Cultural. De qualquer forma, assisti "Mr. Sganzerla", de Joel Pizzini, no Festival É Tudo Verdade, e, logo em seguida, "Pina", de Win Wenders, em 3D. As impressões foram tantas, que decidi arriscar esse pequeno ensaio, à título de reflexões sobre arte que eu sempre aspiro fazer. No entanto, me acho incapaz de proceder de maneira muito organizada com o pensamento: o que resta são frases a serem interligadas, numa coerência, no mínimo, questionável. Não há metodologia para esta análise, somente a paixão do momento experimentado, o que, pra mim, não invalida nem um pouco sua importância ou autoridade.
A primeira coisa que me saltou aos olhos, foi a grande quantidade de artistas sobre os quais os filmes versavam em suas temáticas. Não só é evidente os dois diretores citados, mas também seus objetos, Rogério Sganzerla, nosso xerife prodígio do cinema, e Pina Baush, que é, pra mim, a criadora da dança contemporânea. E depois, Helena Ignez - a musa do cinema brasileiro! - e os bailarinos transculturais da companhia de Pina; e, ainda mais tarde, a grande quantidade de outros personagens do filme de Joel (Orson Welles, Grande Otelo, Guará, Jimi Hendrix, Paulo Villaça etc) e seus técnicos e também a equipe técnica de Win Wenders, que só vem confirmar a percepção de qualquer realizador de cinema de que esta é uma arte grupal, essencialmente. É uma profusão de personalidades mais ou menos conhecidas, onde depositamos mais ou menos prazer na visão delas. E o que fiquei pensando longamente era de onde viria esse prazer especial em assistir à essas pessoas? - qual a magia destas projeções que nos refrescam com um caldo imagético de vida tão potente que nos faz esquecer completamente da realidade para entrar em seu mundo de sonho?
Sobre este assunto já se debruçaram incontáveis pesquisadores com muito mais estudo e respeitabilidade do que eu, mas isso não me importa muito e, longe de querer, inicialmente, oferecer uma resposta positiva ou elucidativa sobre esta questão, prefiro somente esboçar algumas linhas que possam dialogar com essas reflexões anteriores - sem, claro, ignorá-las.
Inicialmente, podemos pensar no prazer incrível que o cinema evoca em sua belíssima projeção de imagens, as suas cores e luzes que tocam algum lugar da mente. Como eu comentei, sua semelhança com os estados de sonho é evidente: um espaço escuro, uma criação sem limites (como enuncia Sganzerla no filme): uma liberdade infinita; um espaço interminável de concretizar nossos desejos profundos. Esta é, sem dúvida, uma percepção importante, e válida para todos os filmes, de uma forma geral, afinal, boa parte deles se destina à nobre sala de projeção (que recentemente não é assim mais tão nobre...). No entanto, essa explicação não parece abarcar algumas outras questões que se formam: e os filmes que não adentram esse "espaço nobre"? e por que alguns filmes, mesmo dentro deste espaço nobre, não preenchem tão completamente essa satisfação? nesse sentido: o que tem feito a produção contemporânea de cinema - e, ainda mais longe, a produção contemporânea de ARTE?
(Quem sou eu para responder essas coisas todas?)
Me parece cada vez mais que a contemporaniedade se debruça enormemente com a questão da memória - e com isso pretendo dar alguma explicação a essas perguntas. A memória se assemelha ao sonho, em algum nível; a memória nos agrupa como "humanidade"; a memória é tudo o que nos resta depois da morte de Deus e depois da completa destruição da linguagem clássica que nos preencheu durante séculos seguidos os impulsos criativos.
Sobre sua semelhança com o sonho, pouco tenho a dizer. Deixo essa questão aos meus colegas psicólogos para me desenvolverem depois. No entanto, pra mim é fato perceptível que os sonhos assumem cada vez mais espaço nas nossas produções artísticas - isto porque é uma resposta impressionantemente forte ao absurdo existencial que nossa humanidade vive, com certeza, desde a Primeira Grande Guerra (tendo como seu gigantesco profeta a figura terrível de Nietzsche). Neste lastro incluo a produção de pessoas como Franz Kafka, Samuel Becket ou Arthur Adamov que, longe de aforismas insípidos sobre a validade da vida estrangeira que levamos (a única que existe, claro) - como colocados por Sartre ou Camus - descobriram na risada irônica a maior das respostas, talvez a única possível. Não estou me colocando acima destes personagens monstruosos: a colocação de Camus sobre o suicídio permanece, mas enunciada de maneira diferente - aqui, o absurdo de viver é digno de piada, não uma monstruosa barreira às ações (como o é à Hamlet).
Além disso, a memória é um fator necessário para a existência do grande grupo que chamamos Humanidade e que, insistentemente tentamos nos incluir (ou nos excluir, em alguns casos). Que ligação mítica é essa, também não sei dizer: esse tipo de questionamento é melhor respondido por aqueles que estudam esses processos (de novo meus colegas psicólogos) ou outros excêntricos, como Jodorowsky ou Joseph Campbell. Ainda assim, para Hannah Arendt, a História é determinante para esse sentimento unificador traduzido na palavra Humanidade, e é evidente que qualquer busca pela memória popular é uma forma de se inserir historicamente. O filme de Joel é exemplar nesse sentido - sua busca por arquivos (que preenchem quase a totalidade do filme) e por materiais de outros filmes caminha nesta descoberta da Humanidade.
E talvez tentando unificar os dois parágrafos anteriores, percebo também uma ausência de norte para qualquer criador. A destruição da linguagem que chegamos em meados do século passado tornou difícil qualquer aproximação inocente neste complicado terreno que chamamos arte. Os processos, agora, não são colocados de forma coerente por nenhum manifesto - as produções são dispersas. Sobre o que e - pior! - como devo criar? Nesse cenário, qualquer agrupamento teórico politizado me parece infantil, uma percepção pequena (e, porque não, alienada) da nossa condição como seres humanos absurdos. Assim, não estamos mais na época das soluções totalizantes, das vanguardas e das políticas. Preferimos, ao contrário, nos inserir historicamente, ou melhor, percebemos, finalmente, que essa é a única colocação ainda com vitalidade: a exibição desenfreada de memória. Só assim, me parece, podemos explicar a simultaniedade de filmes sobre personalidades, mostras sobre Péter Forgacs ou David Perlov e aberturas de novelas das 6 em fotos e filmes antigos.
E, finalmente, por quê? Por que a memória?
Porque, mesmo que apoiados nestes destroços de linguagem que nos restaram, a questão primordial - o TEMPO - permanece e sobre ele é que versou todo o lastro de arte contemporânea e, arrisco colocar, de arte de sempre e sempre. Diante do tempo inexorável reagimos como podemos, criando a humanidade, a linguagem e suas novas e novas apresentações - a arte - e tudo o mais. Quando todo o resto que sempre nos reuniu (fosse o belo, o bom, o certo ou qualquer outra coisa) fracassou, somente a memória restou e sobre ela (nossa própria vida vivida) nos debruçamos lancinantes, aproximando-nos cada vez mais de algum grande apocalipse, a única coisa que existe no final deste comprido túnel.