sexta-feira, 29 de março de 2013

obituário de Clarim Spoiler

OBITURÁRIO de CLARIM SPOILER
pelo poeta e cientista social Dínamo Helenânimo

É com muita honra e tristeza que levanto essas pobres palavras para homenagear aquele que foi o meu maior amigo, e um dos homens mais brilhantes que já pisaram nesse planeta - embora ele, de fato, relutasse em pisar por aqui. Obcecado por outros planetas desde que o conheci, Clarim Spoiler (as vezes chamado de Rif Waffles, nas suas primeiras peças, ou ainda de Ficto Profiterólis, quando assinava seus poemas ainda adolescente) recusou ser chamado de terráqueo, quanto mais, pertencer a qualquer grupo ou nação terrena. Sua ascensão aos céus, aos 24 anos, foi mais do que anunciada a todos seus amigos e parentes e parecia a melhor solução para o tímido e relutante niilista que ele se tornara. No bom sentido - extremamente desde muito cedo, criativo e inseguro, era-lhe muito difícil adaptar-se à vida cotidiana de todas as pessoas.

Incentivei-o a escrever assim que ficamos mais amigos; percebia nele a sede de ser escutado e, muito mais importante, a capacidade de dizer novas coisas ou de repetir melhor coisas velhas. Alguns tentaram empurrá-lo para o teatro, mas era óbvia a sua preferência pela escrita; assim, como dramaturgo, pareceu estabelecer-se no meio termo, em um lugar que lhe era confortável e no qual conseguia trabalhar criativamente e sem esforço. Então, aos 19 anos, um ano depois de nos conhecermos nos corredores de 15 metros de altura da faculdade de letras e línguas (curso que nenhum de nós fazíamos, mas gostávamos de frequentar algumas cadeiras) ele publicou, escondido dos outros por um pseudônimo, sua primeira peça, "Werther nas Estrelas", muito influenciado por suas classes de germanística e romantismo, teatro épico e a literatura alemã da república de weimar e cálculo 3. Embora na época tenha circulado apenas num ambiente universitário intelectual, costumava agradar todos que ficavam até o final, que era mesmo o arremate que fechava seu sentido. Muitos foram os críticos que, tendo saído nos primeiros quarenta minutos, fizeram resenhas totalmente afastadas do que a peça, de fato, trazia como reflexão. Sua segunda obra, "You don't Get Away", uma visão irônica da história como disciplina, centrada em dois personagens que podem mover-se no tempo e solucionar todos os problemas da humanidade, causou escândalo com uma cena na qual Maomé convertia-se ao judaísmo depois de ser derrotado por Salomão em uma partida de ping-pong. Por ela, Clarim teve que se esconder por meses na casa de amigos, pois foi jurado de morte por grupos extremistas tanto muçulmanos, quanto judeus.

Clarim parou de escrever e de estudar depois que namorou e morou com a atriz Nana Senóide, a qual conhecera acompanhando os ensaios da montagem daquela segunda peça, onde ela fazia o papel de Lâmbida, uma méson-mi existencialista e sensual. Nós três viramos um grupo de amigos e morávamos praticamente juntos, porque eu não saía da casa dos dois - não é à toa que, depois que Clarim foi morar no espaço, eu e Nana tenhamos nos casado. Clarim, foi, portanto, o responsável pela melhor coisa que já me aconteceu, a qual eu lhe sou eternamente grato. Ele nos apresentou.

O tempo passou e Clarim Spoiler teve crises de depressão fortíssimas, nas quais ele só podia comer chocolate e tocar violão. Lembro-me dele, de cuecas, em cima do telhado de sua casa, olhando pras estrelas e tocando uma canção muito triste. Era claro que ele apaixonara-se pelo inalcançável, pelo infinito, pelas estrelas. Depois dessa noite, foram dois anos até ele anunciar, sem maiores explicações - nenhuma era necessária - que passara no concurso para astronauta e que habilitara-se para habitar um satélite por meses e que pretendia manter-se lá por toda a vida.

Lá ele se manteve, de fato, fazendo-nos visitas anuais, quando, então, demonstrava sua enorme inteligência e nos apresentava o que escrevera nos seus meses de afastamento. Dessa forma que publicamos suas outras peças, as quais apresentavam uma progressiva aproximação de problemas mais cotidianos, o que, no início parecia extremamente contraditório com a sua condição.

Finalizo estas homenagens falando mais como seu amigo, arrisco dizer o maior amigo que ele tinha - pelo menos entre os terráqueos. Clarim Spoiler é forte candidato ao homem mais importante do século, por tudo o que produziu e pela mente incrível que possuía; pela história singular que levou e pelo enorme amor que sentia por toda a humanidade, ainda que afastado totalmente de seu cotidiano. Ele nos protegia lá do céu e com frequência senti que dirigia minhas preces mais a ele que aos anjos.
Clarim Spoiler não morreu - é uma estrela, como sempre foi e quis ser.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Qual Desistência

Como quem um dia te viu
Não dá pra ignorar
Que existe alguma verdade
Que existe alguma certeza
Que existe mais que amizade
Num barco cor de assobio no mar

Como que um dia de frio
Numa maior distração
Não ameaça o sonhar
Não ameaça a canção
Não é maior que oceano
Que afogou qualquer outra coisa mais

Como que uma reencarnação
Não é um recomeçar
Quero dizer a verdade
Quero cantar a canção
Quero o maior oceano
E por ser mais que amizade
Eu quero o seu coração

quarta-feira, 20 de março de 2013

À luz das velas

Ontem quem junta os pedaços,
Os maltrapilhos encaixes sobre a mesa?
Quem arruma os retalhos,
Aperta os espaços com leveza?

O redondinho ninho, se existisse...
(a tiny blowy kiss, a minor abyss)
Essa língua se cala. Faz friozinho
No fundo da cozinha.

(a really small kiss, like a blink)
Um caco de palavra, um cuco gago
Do lado errado dos abraços.
Quem junta os pedaços?

Quem calça trocado esse quarto
Essa sala, esse canto?
Quanto sofá tem no seu encalço?
(less than a touch kiss)

Recolhe-se, afasta-se
(a nothing kiss)



segunda-feira, 18 de março de 2013

reflexões de Clarim Spoiler

Passados 9 meses de sua morte, agora que se reviram as obras e o inventário de documentos e cadernos antes desconhecidos do dramaturgo e astronauta Clarim Spoiler. O autodidata, que aos cinco anos aprendeu a ler e, aos doze, abdicou de qualquer cidadania, vindo a se refugiar, apátrida, num satélite que voltava à Terra somente no verão (independente do hemisfério de aporte), confiou seus últimos escritos ao amigo Dínamo Helenânimo, com a indicação de que ele os lançasse ao fogo. "Era o que eu ia fazer" diz Dínamo "mas, sem querer, notei meu nome escrito nas páginas de um diário de capa vermelha e, não resistindo, li. Nunca acreditaria se não tivesse lido por mim mesmo. Pois ele não só disse que detestava toda a humanidade, como à mim, mas que todos! Canalha! Hipócrita. Li outros trechos e percebi que seu desprezo não era exclusivo a mim, mas a tantas outras pessoas que lhe eram próximas, apesar dos meses em que ele passava sozinho no espaço. Decidi publicar o material como vingança, para que todos possam ver o homem horrível que ele era."
Vingança ou não, o fato é que os cadernos de Clarim Spoiler revelaram enorme talento artístico. Suas poucas peças publicadas, duas sob o pseudônimo de Rif Waffles, foram de grande importância pro cenário teatral contemporâneo. Os diários parecem revelar, ao contrário do que reclama Dínamo Helenâmico, um lado apaixonado de Clarim, até pouco, desconhecido. Selecionamos alguns trechos mais marcantes dos seus documentos:

"ah sinto que escorre pela nuca
a massa mole da minha cuca;
mais que nunca o meu cuco-
peito batia forte: tudo feito.
E minhas ideias vazavam pelo corte.

"Escrevi esse poemeto como uma metáfora - queria falar de como um apaixonado abdica de seus valores pelo amor. Mas me parecia piegas esse tema. (...) Não evito admitir-me um homem apaixonado, incoerente, podendo desistir de tudo por um sim. Mas escrever poesia sobre isso é pedir pra que te abram a cara com um machado literalmente. Por que falar de quem você ama e do que deseja é tão chato para os outros, e tão desorientadamente interessante para si mesmo?

"Deixei no planeta uma corja de desinteressantes más pessoas. A choldra que me seguia era incuravelmente burra - e burrice invencível é algo que me tira do mundo. Literalmente. Viver aqui é muitas vezes melhor que na superfície: a gravidade não me afeta - não há política ou compromissos sociais; leio, releio, assisto filmes e revejo tudo o que quero, quando quero; posso tocar violão.

"O mais bacana, no entanto, é o telescópio. Posso apontá-lo em qualquer direção, seja para o espaço infinito, para Deus, ou para a Terra azul, com tal precisão e aumento, que posso observar uma pessoa caminhar pela rua em Moscou, a princesa trocar de roupa em Comodo e a pesca ilegal de baleias nas Filipinas; assisto, através das nuvens, com visores infra-vermelhos, ultra-violetas e intra-verdes os caminhos e trilhos das pessoas, escuto suas preces como um anjo e navego por seus olhares não-vistos por quem deveria tê-los visto, por todas as entrelinhas e sub-textos das relações humanas. Daqui, entendo tudo, mesmo que não possa falar com ninguém.

"Desço ao mundo somente nos verões. Algumas vezes, nem queria; outras, conto os dias que faltam. No verão, as pessoas parecem conversar melhor. Espero que um dia Dínamo descubra que eu o detesto, porque ele roubou de mim o meu lar, a minha cama e tudo mais que tinha dentro...

"Se eu te olho de canto
Tu canta pro meu olho
O conto do nosso encontro
Uma troca de contas
O faz-de-conta do seu corpo

Mas se eu te olho reto
O preto do seu olho avança
O joelho da coluna trança
O traço que sua mão balança.
Como o olho faz o feto"

Citônio parou de ler a reportagem como quem acha uma aliança dentro de um peixe que se desfiava pro almoço. Alguns chamam essa sensação de dejavi, outros, de lembrança de vidas passadas, uns últimos de "buraco-de-minhoca", supostas quebras no espaço-tempo. De qualquer forma, aquilo lhe atingiu de tal maneira, que decidiu nunca mais escrever poesia com aquelas roupas.
Um protesto silencioso contra a vida, talvez.

segunda-feira, 11 de março de 2013

debaixo do fio


Onde couber o maior amor
amarelo ou vermelho
qualquer cor
seja forte no frio
ou mole no calor
seja interno como um rio
e, como um rio, sem rumo que não o mar
(rumo comum a qualquer rio)
ou eterno, como o navegar
mas impreciso

Onde se pode encontrar
vermelho ou amarelo
qualquer matiz
seja inteiro no farelo
ou metades de um triz
seja profundo como um mar
e, como um mar, sem antes que não o rio
(passado comum a qualquer mar)
ou infinito, como um fio
precisamente um fio