segunda-feira, 18 de março de 2013

reflexões de Clarim Spoiler

Passados 9 meses de sua morte, agora que se reviram as obras e o inventário de documentos e cadernos antes desconhecidos do dramaturgo e astronauta Clarim Spoiler. O autodidata, que aos cinco anos aprendeu a ler e, aos doze, abdicou de qualquer cidadania, vindo a se refugiar, apátrida, num satélite que voltava à Terra somente no verão (independente do hemisfério de aporte), confiou seus últimos escritos ao amigo Dínamo Helenânimo, com a indicação de que ele os lançasse ao fogo. "Era o que eu ia fazer" diz Dínamo "mas, sem querer, notei meu nome escrito nas páginas de um diário de capa vermelha e, não resistindo, li. Nunca acreditaria se não tivesse lido por mim mesmo. Pois ele não só disse que detestava toda a humanidade, como à mim, mas que todos! Canalha! Hipócrita. Li outros trechos e percebi que seu desprezo não era exclusivo a mim, mas a tantas outras pessoas que lhe eram próximas, apesar dos meses em que ele passava sozinho no espaço. Decidi publicar o material como vingança, para que todos possam ver o homem horrível que ele era."
Vingança ou não, o fato é que os cadernos de Clarim Spoiler revelaram enorme talento artístico. Suas poucas peças publicadas, duas sob o pseudônimo de Rif Waffles, foram de grande importância pro cenário teatral contemporâneo. Os diários parecem revelar, ao contrário do que reclama Dínamo Helenâmico, um lado apaixonado de Clarim, até pouco, desconhecido. Selecionamos alguns trechos mais marcantes dos seus documentos:

"ah sinto que escorre pela nuca
a massa mole da minha cuca;
mais que nunca o meu cuco-
peito batia forte: tudo feito.
E minhas ideias vazavam pelo corte.

"Escrevi esse poemeto como uma metáfora - queria falar de como um apaixonado abdica de seus valores pelo amor. Mas me parecia piegas esse tema. (...) Não evito admitir-me um homem apaixonado, incoerente, podendo desistir de tudo por um sim. Mas escrever poesia sobre isso é pedir pra que te abram a cara com um machado literalmente. Por que falar de quem você ama e do que deseja é tão chato para os outros, e tão desorientadamente interessante para si mesmo?

"Deixei no planeta uma corja de desinteressantes más pessoas. A choldra que me seguia era incuravelmente burra - e burrice invencível é algo que me tira do mundo. Literalmente. Viver aqui é muitas vezes melhor que na superfície: a gravidade não me afeta - não há política ou compromissos sociais; leio, releio, assisto filmes e revejo tudo o que quero, quando quero; posso tocar violão.

"O mais bacana, no entanto, é o telescópio. Posso apontá-lo em qualquer direção, seja para o espaço infinito, para Deus, ou para a Terra azul, com tal precisão e aumento, que posso observar uma pessoa caminhar pela rua em Moscou, a princesa trocar de roupa em Comodo e a pesca ilegal de baleias nas Filipinas; assisto, através das nuvens, com visores infra-vermelhos, ultra-violetas e intra-verdes os caminhos e trilhos das pessoas, escuto suas preces como um anjo e navego por seus olhares não-vistos por quem deveria tê-los visto, por todas as entrelinhas e sub-textos das relações humanas. Daqui, entendo tudo, mesmo que não possa falar com ninguém.

"Desço ao mundo somente nos verões. Algumas vezes, nem queria; outras, conto os dias que faltam. No verão, as pessoas parecem conversar melhor. Espero que um dia Dínamo descubra que eu o detesto, porque ele roubou de mim o meu lar, a minha cama e tudo mais que tinha dentro...

"Se eu te olho de canto
Tu canta pro meu olho
O conto do nosso encontro
Uma troca de contas
O faz-de-conta do seu corpo

Mas se eu te olho reto
O preto do seu olho avança
O joelho da coluna trança
O traço que sua mão balança.
Como o olho faz o feto"

Citônio parou de ler a reportagem como quem acha uma aliança dentro de um peixe que se desfiava pro almoço. Alguns chamam essa sensação de dejavi, outros, de lembrança de vidas passadas, uns últimos de "buraco-de-minhoca", supostas quebras no espaço-tempo. De qualquer forma, aquilo lhe atingiu de tal maneira, que decidiu nunca mais escrever poesia com aquelas roupas.
Um protesto silencioso contra a vida, talvez.

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