quando um
mundo está pequeno
LONDRES -
Morreram ontem nove milhões de combatentes, ingleses franceses
alemães italianos húngaros austríacos turcos sérvios muitos nós.
Todos eles perdidos em um enorme labirinto de túneis e fossas que
rasgaram toda a europa.
As fotos
falam mais que mil palavras. As trincheiras permanecem, enchem-se de
pessoas, de soldados, de corpos, de água. As novas metralhadoras
automáticas agilizam as nossas mortes, apressam a nossa guerra, dão
ritmo ao monótono soar das criaturas lancinantes. A marcha dos
Aliados sobrepuja os Impérios, um mundo e um ciclo se fecham e o
século dezenove parece, finalmente, terminar. Aqui. As fotos falam
mais que mil palavras.
final
dos tempos?
BERLIM – Depois que somos exterminados alguma coisa acontece com a
gente. Foram descobertos pelas tropas aliadas campos de extermínio
de prisioneiros, a maioria judeus, poloneses, homossexuais e ciganos.
Lançadas, mergulhando sobre o Japão, little boy e fat man
incineraram 220 mil vítimas, a maioria civis. A partir desse dia, a
guerra tornou-se um estado perene ao estar no mundo: estamos em
guerra contínua, com maiores ou menores conflitos, armados com o que
alcançamos com os dedos.
a
morte de um deus
TOQUIO – Todos presenciamos os violentos bombardeios das vilas, a
fome, a falta de recursos, a destruição de Hiroshima e de Nagasaki,
a invasão da Manchúria e a tomada da Coreia pelos soviéticos e
americanos – a pose de Stalin, Roosevelt e Churchill na foto em
Ialta – assistimos o singrar da esquadra real nos nossos próprios
mares, mas havia ainda algo por presenciar. Chorei ao escutar nesse
15 de agosto de 1945 a voz divina do nosso imperador pela primeira
vez na vida. O sagrado vinha pelo rádio. O maior símbolo da nossa
derrota eterna é quando morre a eternidade.
stop waring
WASHINGTON
– Uma cortina de fumaça laranja encobre o horizonte e as matas
densas, sentimos o corpo coçar como uma alergia e os pêlos arderem
como num suspiro; nesse tempo, no tempo de um suspiro, o fogo nos
consome os olhos as roupas os cabelos as unhas as vias e sentimos o
perfume da nossa pele se evaporando, esfumaçando e descolando
lentamente dos tecidos, como um pano velho, como uma geleca amorfa e
fedida conforme percebemos que não estamos morrendo nem queimados
nem alvejados nem asfixiados, conforme percebemos que nem mesmo
estamos morrendo.
Graças no Deserto
SÃO PAULO - Hoje o presidente Bush foi visitar as tropas no Kuwait
para o Dia de Ação de Graças. Foi o segundo dia seguido da
operação chamada de “Tempestade no Deserto”, os jatos
americanos fizeram chover fogo nos esconderijos subterrâneos dos
iraquianos resultando em imagens incríveis.
a liberdade do medo
SARAJEVO – Em estados de sítio, de guerra, de calamidade pública,
de catástrofe, nota-se o aumento significativo do medo da população,
o seu confinamento deliberado em seus apartamentos. Nessas horas
negras de instabilidade social, em que o Estado quase não existe, em
que o genocídio é permitido, em que as etnias se dividem, surge
aquela figura do pai, do irmão, do tio ou primo que ousa sair de
casa, cruzar a rua e correr até um supermercado, até uma farmácia
conseguir suprimentos com os ridículos centavos que restam das
economias. No mínimo conseguir água. Esse trajeto é talvez o
momento mais sublime da sua vida: consumido pelo medo, você avança,
rápida e atentamente pelos atalhos conhecidos, você se depara com
os corpos de outros como você e abaixa velozmente a cabeça – uma
liberdade te invade, a liberdade do caos, a ternura da brutal luta
pela sobrevivência, nada mais: o medo te liberta qual força
primitiva que acende no fundo da medula e te guia de olhos abertos,
ouvidos atentos e quase um sorriso no rosto, como um maluco por entre
os destroços.
guerra ao
terror
NOVA IORQUE – Quando treinamos por meses e viemos para cá, me
imaginava, como os combatentes de outras guerras, entrincheirado,
atirando contra o inimigo, invadindo instalações militares,
perseguindo terroristas malignos, revoltados ignorantes que ousaram
atacar meu país. Aqui, eu tenho que cuidar do trânsito em um
cruzamento movimentado, uma senhora se aproxima, me abraça, me
comovo, a abraço de volta, ela aperta um botão e nos explode e eu
morro; devo checar os carros que passam pela estrada, faço sinal
para ele parar, ele avança até nossa guarita e nos explode e nós
morremos; temos que ocupar um bairro da capital, nós bombardeamos os
prédios por três dias seguidos com mísseis tomahawk, eles se
rendem, entramos pela manhã, todos correm, como kamikazes, como
zumbis e nos explodem e nós morremos.
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