segunda-feira, 5 de agosto de 2013

o lado da tarde

Toda tarde toda tarde aquilo. Vinha caminhando até ali, repetia isso com a perseverança da brisa do final da tarde toda tarde. Era imaginação ou memória. A casa era pequena, numa cidade pequena onde se caminha para ir aos lugares ou vai de bicicleta, aquelas bicicletas velhas, sem marcha, aquelas cidades sem ruas asfaltadas e parca iluminação pública. O menino da casa adorava aquelas tardes e aquela repetição de todas as tardes. Não havia surpresas, mas havia expectativas, como num aniversário que vem todo ano no mesmo dia, mas sempre ansioso. Era aniversário todos os dias, cada dia um novo aniversário e cada aniversário mais e mais frequentes os olhares, os não-dizeres, os abraços, os olhares novamente, mais coisas não-ditas, mais abraços, de novo novos olhares, outros mesmos não-dizeres, mais abraços longos de olhos fechados. Estar junto era como escutar um álbum inteiro junto com alguém: poucas falas, muita troca e um espírito jovial de férias, como voltar numa viagem de ônibus longa de noite com alguém do seu lado apoiando a cabeça no seu ombro ou ouvindo a mesma música que você, como um cafuné. Vinha a chuva, molhava as casas, as ruas faziam poças de lama e sempre vinha a hora de se encontrar, apesar da chuva.

E então, houve aquele dia, aquela tarde, que eles foram no parque, compraram pipoca e foram na roda-gigante. Em tempos em que existiam rodas-gigantes. Fazia muito tempo desde que tinham ido numa roda-gigante, os dois não lembravam bem quando, muito tempo. Compraram a pipoca e foram, os únicos a irem na roda-gigante. As lembranças desse dia são turvas, porque não é fácil distingui-las das invenções. Com certeza subiram sozinhos, o medo, agarrando ao braço do outro, a parte mais alta da viagem, a viagem de um lugar para o mesmo ponto, uma volta, uma roda. Lá, na parte mais alta, subitamente parou e alguém gritou lá de baixo, quando as luzes da parca iluminação pública do fim de tarde apagaram, que a roda-gigante tinha parado e a luz caído. A brisa do fim de tarde vindo como em todas as tardes, ali no alto era mais fria, o abraço de todas as tardes, mais apertado, mais assustado, e a chuva, que começou um grandes gotas geladas, mais supina. Esperaram.

Devem ter comido a pipoca toda, ou jogaram o milho molhado lá do alto em tom de brincadeira ou de medo ou de protesto, reclamação. Jogaram. A chuva molhava os seus cabelos que escorriam como se chorassem, com o dia se apagando. Falaram, mais do que o normal, porque ali em cima não havia mais o que fazer senão conversar, e falaram de muitas coisas, falaram da chuva, de coisas pequenas e insignificantes e que se amavam. Um disse pro outro ou o outro pro um, ou os dois. Não soou grandioso, porque sabiam o que viria depois, mesmo que ficassem juntos, sabiam o que viria depois de ficar juntos, assim como sabiam que, uma hora ou outra, a roda gigante, ainda que agora parada e parcamente iluminada pela vermelha luz do sol se pondo, iria voltar a rodar e descer daquele topo ao chão.

Então, assim que tocaram o solo, pensando em se secar, perceberam o quão absurdo aquilo soava, porque estavam encharcados, os cabelos escorrendo, como se derretessem, molhados molhados e mais um olhar longo lânguido lívido de uma vida inteira de uma tarde.




A partir de Do Outro Lado da Tarde, de Caio Fernando Abreu

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