Toda tarde
toda tarde aquilo. Vinha caminhando até ali, repetia isso com a
perseverança da brisa do final da tarde toda tarde. Era imaginação
ou memória. A casa era pequena, numa cidade pequena onde se caminha
para ir aos lugares ou vai de bicicleta, aquelas bicicletas velhas,
sem marcha, aquelas cidades sem ruas asfaltadas e parca iluminação
pública. O menino da casa adorava aquelas tardes e aquela repetição
de todas as tardes. Não havia surpresas, mas havia expectativas,
como num aniversário que vem todo ano no mesmo dia, mas sempre
ansioso. Era aniversário todos os dias, cada dia um novo aniversário
e cada aniversário mais e mais frequentes os olhares, os
não-dizeres, os abraços, os olhares novamente, mais coisas
não-ditas, mais abraços, de novo novos olhares, outros mesmos
não-dizeres, mais abraços longos de olhos fechados. Estar junto era
como escutar um álbum inteiro junto com alguém: poucas falas, muita
troca e um espírito jovial de férias, como voltar numa viagem de
ônibus longa de noite com alguém do seu lado apoiando a cabeça no
seu ombro ou ouvindo a mesma música que você, como um cafuné.
Vinha a chuva, molhava as casas, as ruas faziam poças de lama e
sempre vinha a hora de se encontrar, apesar da chuva.
E então,
houve aquele dia, aquela tarde, que eles foram no parque, compraram
pipoca e foram na roda-gigante. Em tempos em que existiam
rodas-gigantes. Fazia muito tempo desde que tinham ido numa
roda-gigante, os dois não lembravam bem quando, muito tempo.
Compraram a pipoca e foram, os únicos a irem na roda-gigante. As
lembranças desse dia são turvas, porque não é fácil
distingui-las das invenções. Com certeza subiram sozinhos, o medo,
agarrando ao braço do outro, a parte mais alta da viagem, a viagem
de um lugar para o mesmo ponto, uma volta, uma roda. Lá, na parte
mais alta, subitamente parou e alguém gritou lá de baixo, quando as
luzes da parca iluminação pública do fim de tarde apagaram, que a
roda-gigante tinha parado e a luz caído. A brisa do fim de tarde
vindo como em todas as tardes, ali no alto era mais fria, o abraço
de todas as tardes, mais apertado, mais assustado, e a chuva, que
começou um grandes gotas geladas, mais supina. Esperaram.
Devem ter
comido a pipoca toda, ou jogaram o milho molhado lá do alto em tom
de brincadeira ou de medo ou de protesto, reclamação. Jogaram. A
chuva molhava os seus cabelos que escorriam como se chorassem, com o
dia se apagando. Falaram, mais do que o normal, porque ali em cima
não havia mais o que fazer senão conversar, e falaram de muitas
coisas, falaram da chuva, de coisas pequenas e insignificantes e que
se amavam. Um disse pro outro ou o outro pro um, ou os dois. Não
soou grandioso, porque sabiam o que viria depois, mesmo que ficassem
juntos, sabiam o que viria depois de ficar juntos, assim como sabiam
que, uma hora ou outra, a roda gigante, ainda que agora parada e
parcamente iluminada pela vermelha luz do sol se pondo, iria voltar a
rodar e descer daquele topo ao chão.
Então,
assim que tocaram o solo, pensando em se secar, perceberam o quão
absurdo aquilo soava, porque estavam encharcados, os cabelos
escorrendo, como se derretessem, molhados molhados e mais um olhar
longo lânguido lívido de uma vida inteira de uma tarde.
A partir
de Do Outro Lado da Tarde,
de Caio Fernando Abreu
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