eu não estou sóbrio
quando a escada se desfaz em telhado, vazio, inteiro, sacada para um vale cheio de neblina, onde os monstros do crepúsculo despertam como anjos da noite, sagrados músicos iluminados por postes cheirando à maconha e perfume, alisando-se com olhares e cerveja, prevendo prevendo prevendo
eu não estou sóbrio
quando a escola é feita só de repetições, verbetes, conceitos, fórmulas, cifras, símbolos, certezas, decorebas, amebas, átomos, quando a flor não desabrocha sem sentido, sem só sentir-se flor, quando eu tenho que explicar porque eu te olho mais que o mais e te desejo ardentemente sem nunca nunca nunca demostrar um pentelho disso
eu não estou ébrio
quando o meu cabelo se desfaz em cores, cortes, texturas, desvios, meu rosto se desfigura em sorrisos, barbas, espinhas, navalhas erradas rasgões buracos, sebos, sobrancelhas, cravos, gorduras, pelos, peles e mais peles, quando sou só pele e superfície e não danço só com as pernas, que se transformam como uma pajelança, atiradas do alto de saltos, travestis comendo fezes nos cantos
eu não estou ébrio
quando eros me dá seu arco, sua flecha, seu estalo e diz lambendo meu ouvido num sussurro quase inaudível não fosse a minha ejaculação precoce - semelhante ao ribombar do motor de um ar-condicionado quando reata no tranco (a geladeira também faz isso) no meio do sono - que eu estou um fruto apodrecendo a cada dentada
eu não estou lúcido
quando eu não me lembro de quase nada que me marcou ou me marca, quando eu te vejo, desejo, mas sou incapaz de fazer qualquer ato a respeito, desrespeito a mim mesmo, me atrevo a não me atrever a nada, fico imóvel, impassível, impotente, inimportante, tão drástica e dramaticamente inútil que é redondamente impossível - seria clínico, inclusive, se não fosse impossível - que alguém, você, note qualquer perturbação no ar, qualquer leve suspiro afetivo - é um zumbi que caminha, escutei, um zumbi que caminha inteligente
eu não estou lúcido
quando me perco na sua casa, me entrevo num caos de ladrilhos na parede, de tacos no chão, de cozinha sala quarto banheiro, de desenhos rabiscados, de luz fraca, cômodo cheio, cheiro enjoativo, bebida à rodo, fumaça de cigarro, reflexos na tevê, garotada falando alto, falando de cinema, olhar 43, gente desenhando retratos de gente que posam sem estar posando, são todos sempre poses, lindos anjos de juventude frágil espalhados como pétalas mortas sobre um chão de madeira
eu não estou bêbado
quando me correspondo em silêncio com a sua respiração pra cima e pra baixo, quando o mínimo toque levanta arrepios na espinha, erguem o corpo e é como se tivesse a sua vagina na minha mão e tremo, tenho calafrios enormes, clínicos, talvez, e me reergo herege ereto eriçado errado fraco aliviando minha comunhão secreta em versos, ou em sonhos, ou em tétricas tentativas vãs de ser mais alguma coisa a mais, como um possível poeta, um poetinha, um poeta menor, quando me imagino um rock star, admirado, e as gengivas se torcem na lascívia noite dos olhos fechados, de todos os olhos seus fechados
eu não estou bêbado
quando você dorme do meu lado e eu te ataco calado com o martírio sacrificial dos brochas e todos se imaginam em outro lugar, chamam isso de sonho, e nele só queremos, somos feitos de desejos primevos, de névoa e dança, de vermelho amargo, de réstia fagulha de jazz, de moderna atração pela cidade, de labirintos de palavras e livros, de viagens de verdade e viagens de mentira, de imaginados amigos, de virtuais coleções aleatórias espetaculares, de descaminhos, de desvios pelo fio da navalha clara do sexo jovem, de torrentes e mais torrentes de recalques mútuos comuns gerais (imagino) santificados pela matéria esgarçada do olhar mais puro de um eu para um outro você
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