Da janela do ônibus eu vi o Rio passando
Escorria como ressaca
até as poças do Aterro.
Eu te liguei e você atendeu
E a sua calma era um berro
já que não tem mais você e eu
Da janela do ônibus eu vi o Rio chorando
Escorria como samba
e molhava Botafogo.
Eu liguei pruma amiga querida
e ela me ouviu e veio logo
porque é vindo e vendo que é a vida
Da janela do ônibus eu te vi se molhando
Escorria como criança
de blusa branca e short rosa.
Eu te vi e fiquei te vendo
sabendo que você está toda prosa
pois minha poesia aguou no relento
quinta-feira, 13 de setembro de 2012
segunda-feira, 10 de setembro de 2012
Acontece
Sem amigos, irmãos, namorada
Sem eira, nem beira,
Sem nada.
Nem um piscar de adeus
Nem eu e você,
Nem você, nem eu.
O nada aconteceu
Sem final romântico
Sem estrelas, só o Atlântico.
O verão inverneceu.
O que me aconteceu?
Seu seio virou palma.
Nem tripas, nem alma,
Sem você, sem eu.
Sem eira, nem beira,
Sem nada.
Nem um piscar de adeus
Nem eu e você,
Nem você, nem eu.
O nada aconteceu
Sem final romântico
Sem estrelas, só o Atlântico.
O verão inverneceu.
O que me aconteceu?
Seu seio virou palma.
Nem tripas, nem alma,
Sem você, sem eu.
segunda-feira, 3 de setembro de 2012
O que é o seu armário?
Meu universo de vestidos.
Não guardo rancores ou malícia.
Achados e perdidos.
Cobertores de amores,
Afagos, e carícias:
Só o que sobrou.
Debaixo dos caracóis,
das meias, saias, lençóis,
Uma visita torta.
Como algum poeta.
Como uma invasão.
Porta transposta e concreta,
Caminho sem volta e sem visão.
Entre o fecho e o trinco
Entre e feche o trinco
Entro e fecho o trinco
A poesia dos que passarão,
De quem é fingidor,
Que mesmo em face do maior encanto,
Ainda prefere morrer de amor.
Não sei o que é o meu armário.
Se é de pano o seu recheio,
Se é de pássaro sua cor.
Mas, se acessível for,
Depois do momento imóvel
Visto vestes de vento,
Me lavo e me passo à vapor.
Não sei o que é o meu armário,
Mas ele está aberto,
E quem rompeu-me o lacre
Não me olha mais de perto.
Não guardo rancores ou malícia.
Achados e perdidos.
Cobertores de amores,
Afagos, e carícias:
Só o que sobrou.
Debaixo dos caracóis,
das meias, saias, lençóis,
Uma visita torta.
Como algum poeta.
Como uma invasão.
Porta transposta e concreta,
Caminho sem volta e sem visão.
Entre o fecho e o trinco
Entre e feche o trinco
Entro e fecho o trinco
A poesia dos que passarão,
De quem é fingidor,
Que mesmo em face do maior encanto,
Ainda prefere morrer de amor.
Não sei o que é o meu armário.
Se é de pano o seu recheio,
Se é de pássaro sua cor.
Mas, se acessível for,
Depois do momento imóvel
Visto vestes de vento,
Me lavo e me passo à vapor.
Não sei o que é o meu armário,
Mas ele está aberto,
E quem rompeu-me o lacre
Não me olha mais de perto.
segunda-feira, 26 de março de 2012
À Luz da Memória
Acabei de retornar de uma sessão cinematográfica dupla no cinema que há pouco se chamava Arteplex e que agora mudou o nome pra alguma coisa com o Itaú Cultural. De qualquer forma, assisti "Mr. Sganzerla", de Joel Pizzini, no Festival É Tudo Verdade, e, logo em seguida, "Pina", de Win Wenders, em 3D. As impressões foram tantas, que decidi arriscar esse pequeno ensaio, à título de reflexões sobre arte que eu sempre aspiro fazer. No entanto, me acho incapaz de proceder de maneira muito organizada com o pensamento: o que resta são frases a serem interligadas, numa coerência, no mínimo, questionável. Não há metodologia para esta análise, somente a paixão do momento experimentado, o que, pra mim, não invalida nem um pouco sua importância ou autoridade.
A primeira coisa que me saltou aos olhos, foi a grande quantidade de artistas sobre os quais os filmes versavam em suas temáticas. Não só é evidente os dois diretores citados, mas também seus objetos, Rogério Sganzerla, nosso xerife prodígio do cinema, e Pina Baush, que é, pra mim, a criadora da dança contemporânea. E depois, Helena Ignez - a musa do cinema brasileiro! - e os bailarinos transculturais da companhia de Pina; e, ainda mais tarde, a grande quantidade de outros personagens do filme de Joel (Orson Welles, Grande Otelo, Guará, Jimi Hendrix, Paulo Villaça etc) e seus técnicos e também a equipe técnica de Win Wenders, que só vem confirmar a percepção de qualquer realizador de cinema de que esta é uma arte grupal, essencialmente. É uma profusão de personalidades mais ou menos conhecidas, onde depositamos mais ou menos prazer na visão delas. E o que fiquei pensando longamente era de onde viria esse prazer especial em assistir à essas pessoas? - qual a magia destas projeções que nos refrescam com um caldo imagético de vida tão potente que nos faz esquecer completamente da realidade para entrar em seu mundo de sonho?
Sobre este assunto já se debruçaram incontáveis pesquisadores com muito mais estudo e respeitabilidade do que eu, mas isso não me importa muito e, longe de querer, inicialmente, oferecer uma resposta positiva ou elucidativa sobre esta questão, prefiro somente esboçar algumas linhas que possam dialogar com essas reflexões anteriores - sem, claro, ignorá-las.
Inicialmente, podemos pensar no prazer incrível que o cinema evoca em sua belíssima projeção de imagens, as suas cores e luzes que tocam algum lugar da mente. Como eu comentei, sua semelhança com os estados de sonho é evidente: um espaço escuro, uma criação sem limites (como enuncia Sganzerla no filme): uma liberdade infinita; um espaço interminável de concretizar nossos desejos profundos. Esta é, sem dúvida, uma percepção importante, e válida para todos os filmes, de uma forma geral, afinal, boa parte deles se destina à nobre sala de projeção (que recentemente não é assim mais tão nobre...). No entanto, essa explicação não parece abarcar algumas outras questões que se formam: e os filmes que não adentram esse "espaço nobre"? e por que alguns filmes, mesmo dentro deste espaço nobre, não preenchem tão completamente essa satisfação? nesse sentido: o que tem feito a produção contemporânea de cinema - e, ainda mais longe, a produção contemporânea de ARTE?
(Quem sou eu para responder essas coisas todas?)
Me parece cada vez mais que a contemporaniedade se debruça enormemente com a questão da memória - e com isso pretendo dar alguma explicação a essas perguntas. A memória se assemelha ao sonho, em algum nível; a memória nos agrupa como "humanidade"; a memória é tudo o que nos resta depois da morte de Deus e depois da completa destruição da linguagem clássica que nos preencheu durante séculos seguidos os impulsos criativos.
Sobre sua semelhança com o sonho, pouco tenho a dizer. Deixo essa questão aos meus colegas psicólogos para me desenvolverem depois. No entanto, pra mim é fato perceptível que os sonhos assumem cada vez mais espaço nas nossas produções artísticas - isto porque é uma resposta impressionantemente forte ao absurdo existencial que nossa humanidade vive, com certeza, desde a Primeira Grande Guerra (tendo como seu gigantesco profeta a figura terrível de Nietzsche). Neste lastro incluo a produção de pessoas como Franz Kafka, Samuel Becket ou Arthur Adamov que, longe de aforismas insípidos sobre a validade da vida estrangeira que levamos (a única que existe, claro) - como colocados por Sartre ou Camus - descobriram na risada irônica a maior das respostas, talvez a única possível. Não estou me colocando acima destes personagens monstruosos: a colocação de Camus sobre o suicídio permanece, mas enunciada de maneira diferente - aqui, o absurdo de viver é digno de piada, não uma monstruosa barreira às ações (como o é à Hamlet).
Além disso, a memória é um fator necessário para a existência do grande grupo que chamamos Humanidade e que, insistentemente tentamos nos incluir (ou nos excluir, em alguns casos). Que ligação mítica é essa, também não sei dizer: esse tipo de questionamento é melhor respondido por aqueles que estudam esses processos (de novo meus colegas psicólogos) ou outros excêntricos, como Jodorowsky ou Joseph Campbell. Ainda assim, para Hannah Arendt, a História é determinante para esse sentimento unificador traduzido na palavra Humanidade, e é evidente que qualquer busca pela memória popular é uma forma de se inserir historicamente. O filme de Joel é exemplar nesse sentido - sua busca por arquivos (que preenchem quase a totalidade do filme) e por materiais de outros filmes caminha nesta descoberta da Humanidade.
E talvez tentando unificar os dois parágrafos anteriores, percebo também uma ausência de norte para qualquer criador. A destruição da linguagem que chegamos em meados do século passado tornou difícil qualquer aproximação inocente neste complicado terreno que chamamos arte. Os processos, agora, não são colocados de forma coerente por nenhum manifesto - as produções são dispersas. Sobre o que e - pior! - como devo criar? Nesse cenário, qualquer agrupamento teórico politizado me parece infantil, uma percepção pequena (e, porque não, alienada) da nossa condição como seres humanos absurdos. Assim, não estamos mais na época das soluções totalizantes, das vanguardas e das políticas. Preferimos, ao contrário, nos inserir historicamente, ou melhor, percebemos, finalmente, que essa é a única colocação ainda com vitalidade: a exibição desenfreada de memória. Só assim, me parece, podemos explicar a simultaniedade de filmes sobre personalidades, mostras sobre Péter Forgacs ou David Perlov e aberturas de novelas das 6 em fotos e filmes antigos.
E, finalmente, por quê? Por que a memória?
Porque, mesmo que apoiados nestes destroços de linguagem que nos restaram, a questão primordial - o TEMPO - permanece e sobre ele é que versou todo o lastro de arte contemporânea e, arrisco colocar, de arte de sempre e sempre. Diante do tempo inexorável reagimos como podemos, criando a humanidade, a linguagem e suas novas e novas apresentações - a arte - e tudo o mais. Quando todo o resto que sempre nos reuniu (fosse o belo, o bom, o certo ou qualquer outra coisa) fracassou, somente a memória restou e sobre ela (nossa própria vida vivida) nos debruçamos lancinantes, aproximando-nos cada vez mais de algum grande apocalipse, a única coisa que existe no final deste comprido túnel.
quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012
Flagrante
Quando vi que era distante
apontando com uma lente
- captura de instante
que assalta de repente
Mas quando vi que era corrente
a água que refletia aqueles olhos
acertei em cheio o transplante
de sorver seu olhar flagrante
sábado, 16 de julho de 2011
O Centro do Mundo
Pérgola, tadinha, era muito feia. Daquelas meninas que todos concordam que é bem feia. Até seus pais sabem que ela é feia. Nem vou descrevê-la pra ninguém acabar se identificando com ela e ficar ofendido. Basta compreender que ela é feia. E este sempre fora seu trauma.
Tudo mudou na festinha de quinze anos de Paracelso, um colega redondinho do colégio. Como sempre, sentia-se sozinha ali no meio de todos. Todos começaram a fazer pequenas apresentações - Colônico levitava a si mesmo e pequenos objetos; Paracelso exibia suas habilidades com malabarismo, que incluía facas, tochas e seus três rãmisters; Loirelinda dançava Na Boquinha da Garrafa. Pérgola a odiava. E não só ela. Odiava Trivela, a menina que jogava futebol; odiava Ruivadia, que usava um vestido repleto de brócolis; odiava até mesmo Taturana, que tinha bigodes felinos. Mas era Loirelinda quem era alvo de seu ódio mais mortal. Veja ela agora, dançando como uma calopsita com um vestido que mal lhe cobre as nádegas somente para que todos aqueles garotos fiquem sorrindo embestalhados! Até mesmo Citônio...
Pérgola se afastou, triste como um hipopótamo, sem saber que rumo tomar. Saiu do apartamento, olhando apenas o chão, passou pelo corredor, onde encontrou Trivela e Zepelin se beijando, e começou a seguir uma enormíssima fila de formigas, tão comprida que se bifurcava diversas vezes, entrava por banheiros e escadas de incêndio, labiríntica. Quando Pérgola deu por si, estava de frente para um espelho, dentro de um banheiro comprido.
Olhou-se, horrorizada com sua aparência. Como podia ser tão feia? Por quê? Sua vida era comprimida, como a camada de ozônio, por aquela feiúra imanente. Era como se todas as folhas de outono nunca caíssem e permanecessem secas em seu caule. Pérgola começou a chorar, sentindo-se dilacerada pelo próprio olhar, e as enormes lágrimas rolavam por sua face, escorriam pelo rosto até a ponta do queixo, pingavam no decote dos peitos, desciam pelo corpo e deslizavam pelas pernas até os dedos dos pés; ou pingavam do rosto nos ombros, e caíam-lhe pelas costas, escorregando pelas curvas do corpo e das pernas; algumas poucas saíam dos olhos para cima e molhavam suas sobrancelhas e seus cabelos, lavando-a completamente. O choro saía-lhe como tinta, lembrando aqueles pequenos cachorrinhos acuados, ganindo como um cisne. Em alguns minutos estava totalmente molhada, encharcada de choro. Aquelas lágrimas exprimiam toda a sua feiúra e, aos poucos e diante de seus olhos, Pérgola percebeu que, junto com as lágrimas, saíam seus ares de ogro e ela tornava-se uma moça linda, de olhos limpos, de faces brancas e cabelos ondulados; o corpo encurvava-se como vidro quente e ela sentiu-se a mais bela de todas as meninas da festa.
Não podia acreditar naquilo. Diante de si, no espelho, não havia mais aquela garota detestável, feia como catarata, mas uma moça muitíssimo atraente que piscava, incrédula, com um olhar mais sedutor do que vidro embaçado.
Voltou a festa e era nítido como, de repente, diversos meninos a olharam, interessados. Talvez fossem seus cabelos molhados, pingando em desalinho, ou o vestido que colara em seu corpo, mas a verdade é que olhavam para ela de maneira totalmente diferente do que ela estava acostumada. Ela não sabia agora, mas nunca mais conseguiria se secar, ficaria pra sempre molhada, pingando onde ia, deixando um rastro perfumado de poças atrás de si, como um caramujo. Linda e pegajosa.
Citônio entendeu o que é um OB. E um BO também.
Tudo mudou na festinha de quinze anos de Paracelso, um colega redondinho do colégio. Como sempre, sentia-se sozinha ali no meio de todos. Todos começaram a fazer pequenas apresentações - Colônico levitava a si mesmo e pequenos objetos; Paracelso exibia suas habilidades com malabarismo, que incluía facas, tochas e seus três rãmisters; Loirelinda dançava Na Boquinha da Garrafa. Pérgola a odiava. E não só ela. Odiava Trivela, a menina que jogava futebol; odiava Ruivadia, que usava um vestido repleto de brócolis; odiava até mesmo Taturana, que tinha bigodes felinos. Mas era Loirelinda quem era alvo de seu ódio mais mortal. Veja ela agora, dançando como uma calopsita com um vestido que mal lhe cobre as nádegas somente para que todos aqueles garotos fiquem sorrindo embestalhados! Até mesmo Citônio...
Pérgola se afastou, triste como um hipopótamo, sem saber que rumo tomar. Saiu do apartamento, olhando apenas o chão, passou pelo corredor, onde encontrou Trivela e Zepelin se beijando, e começou a seguir uma enormíssima fila de formigas, tão comprida que se bifurcava diversas vezes, entrava por banheiros e escadas de incêndio, labiríntica. Quando Pérgola deu por si, estava de frente para um espelho, dentro de um banheiro comprido.
Olhou-se, horrorizada com sua aparência. Como podia ser tão feia? Por quê? Sua vida era comprimida, como a camada de ozônio, por aquela feiúra imanente. Era como se todas as folhas de outono nunca caíssem e permanecessem secas em seu caule. Pérgola começou a chorar, sentindo-se dilacerada pelo próprio olhar, e as enormes lágrimas rolavam por sua face, escorriam pelo rosto até a ponta do queixo, pingavam no decote dos peitos, desciam pelo corpo e deslizavam pelas pernas até os dedos dos pés; ou pingavam do rosto nos ombros, e caíam-lhe pelas costas, escorregando pelas curvas do corpo e das pernas; algumas poucas saíam dos olhos para cima e molhavam suas sobrancelhas e seus cabelos, lavando-a completamente. O choro saía-lhe como tinta, lembrando aqueles pequenos cachorrinhos acuados, ganindo como um cisne. Em alguns minutos estava totalmente molhada, encharcada de choro. Aquelas lágrimas exprimiam toda a sua feiúra e, aos poucos e diante de seus olhos, Pérgola percebeu que, junto com as lágrimas, saíam seus ares de ogro e ela tornava-se uma moça linda, de olhos limpos, de faces brancas e cabelos ondulados; o corpo encurvava-se como vidro quente e ela sentiu-se a mais bela de todas as meninas da festa.
Não podia acreditar naquilo. Diante de si, no espelho, não havia mais aquela garota detestável, feia como catarata, mas uma moça muitíssimo atraente que piscava, incrédula, com um olhar mais sedutor do que vidro embaçado.
Voltou a festa e era nítido como, de repente, diversos meninos a olharam, interessados. Talvez fossem seus cabelos molhados, pingando em desalinho, ou o vestido que colara em seu corpo, mas a verdade é que olhavam para ela de maneira totalmente diferente do que ela estava acostumada. Ela não sabia agora, mas nunca mais conseguiria se secar, ficaria pra sempre molhada, pingando onde ia, deixando um rastro perfumado de poças atrás de si, como um caramujo. Linda e pegajosa.
Citônio entendeu o que é um OB. E um BO também.
quinta-feira, 7 de julho de 2011
Nostalgia
"O cheiro mudou totalmente... agora é só cheiro de jaca", disse empinando as narinas para o alto. Os comentários são diferentes e sempre os mesmos quando passamos muito tempo fora de casa (no meu caso, sete anos de coma), ou voltamos pra algum lugar da infância - isso mudou, aquilo era diferente etc e tal. Mas fazer o que, de fato o cheiro de jacas inundava a casa e aliviava o fedorzinho carinhoso da nossa cadela.
"A Filomena morreu..." respondeu-me Edvar quando notou meu gesto esperando senti-la alegre abanando o rabo até os recém-chegados na casa. Ele me guiou pelo braço até o sofá (este ainda era o mesmo) e apoiei minha bengala histérica nos joelhos.
Edvar me contou "morreu de velhinha mesmo, nenhuma doença séria. Ela sempre foi forte, né?" Concordei com a cabeça. Perguntei novamente sobre o cheiro, como que indicando que minha dúvida não era exatamente o cheiro, mas o que fora mudado para que ele mudasse junto. "Aterraram o mangue, claro - melhorou, na minha opinião. Antes cheirava a caranguejo" "Eles até invadiam a casa, quando você era criança!" "Me lembro". Edvar já devia estar barbudo.
As primeiras semanas são para se adaptar. Bengala batucando de um lado pro outro e muita pouca coisa pra fazer. Os afazeres do tato, embora quase sempre mais sensuais do que os do olho, são pequenos em quantidade. Chato era perceber que, embora estivesse com 44 anos pulsando nos músculos, minha pele me oferecia ao mundo como setenta.
A música, era de se esperar, tornou-se-me muito importante. Fazia minha aura elevar-se, cândida, acima do vulgar, como um homem de algodão, logo após o banho das seis e meia e das meias dobradas em cima da cama. No entanto, queria me arriscar.
Desejava a rua muito intensamente, e, mesmo que temesse seus poemas cacofônicos, o medo era um misto de recôndido desejo. Acho que todo medo é um pouco desejo. As profundezas das cavernas, escuras que não vemos o fundo, mas sentimos o cheiro da água calada em seus túneis, são tão misteriosas e assustadoras que é quase impossível resistir ao seu chamado, às suas brisas frias. Mesmo que de olhos fechados - como os meus - a mão busca os labirintos rochosos da mesma maneira que, presa em nossos cinismos, a mente termina por almejar nossos territórios mentais obscuros. A intensidade da luz presa numa caverna é sempre mais esplêndida que aquela do sol. Portanto, preso em minha caverna até o fim da vida, restava-me esse facho de luz proibido aos não iniciados - restava iniciar-me.
Antes que tocasse a bengala para tatear meu caminho até a rua, pensei melhor. Qual seria a impressão de não utilizá-la, pelo menos aquela primeira vez? Sair sem tê-la nas mãos como auxílio afigurava-me como uma aventura ainda mais desejável. Sair sem bengalas, ou suportes - sair, simplesmente.
O zumbido da rua começou a me sussurrar desde longe no condomínio comprido em que meu filho morava. Caminhar ali dentro ainda era fácil.
Cruzei o umbral da entrada do prédio e senti no rosto o bafo dos automóveis e o calor firme do sol da tarde - não pude segurar o sorriso que me escapou e o tremelicar dos dedos da mão. Para onde iria? Até a praça ao final da rua, que, lembrava, atravessava-se poucos sinais.
Os primeiros passos eram tímidos, quase arrastando os pés no chão, mas fui aprendendo com rapidez como caminhar naquela situação. O corpo foi tomado pelo universo, pois sentia, entrando-me pelas cutículas o pavor, o caos que rege o mundo. No entanto, este pavor me afigurou ruim, doía minhas têmporas tamanha minha concentração. Avançava como um equilibrista, suspenso nas lágrimas que se juntavam, charmosas, nos olhos. Passei a mão pelos cabelos e lembrei-me de Praga e seus violinos, assassinos de sonhos.
Então senti uma mão de menina pegar na minha.
"A Filomena morreu..." respondeu-me Edvar quando notou meu gesto esperando senti-la alegre abanando o rabo até os recém-chegados na casa. Ele me guiou pelo braço até o sofá (este ainda era o mesmo) e apoiei minha bengala histérica nos joelhos.
Edvar me contou "morreu de velhinha mesmo, nenhuma doença séria. Ela sempre foi forte, né?" Concordei com a cabeça. Perguntei novamente sobre o cheiro, como que indicando que minha dúvida não era exatamente o cheiro, mas o que fora mudado para que ele mudasse junto. "Aterraram o mangue, claro - melhorou, na minha opinião. Antes cheirava a caranguejo" "Eles até invadiam a casa, quando você era criança!" "Me lembro". Edvar já devia estar barbudo.
As primeiras semanas são para se adaptar. Bengala batucando de um lado pro outro e muita pouca coisa pra fazer. Os afazeres do tato, embora quase sempre mais sensuais do que os do olho, são pequenos em quantidade. Chato era perceber que, embora estivesse com 44 anos pulsando nos músculos, minha pele me oferecia ao mundo como setenta.
A música, era de se esperar, tornou-se-me muito importante. Fazia minha aura elevar-se, cândida, acima do vulgar, como um homem de algodão, logo após o banho das seis e meia e das meias dobradas em cima da cama. No entanto, queria me arriscar.
Desejava a rua muito intensamente, e, mesmo que temesse seus poemas cacofônicos, o medo era um misto de recôndido desejo. Acho que todo medo é um pouco desejo. As profundezas das cavernas, escuras que não vemos o fundo, mas sentimos o cheiro da água calada em seus túneis, são tão misteriosas e assustadoras que é quase impossível resistir ao seu chamado, às suas brisas frias. Mesmo que de olhos fechados - como os meus - a mão busca os labirintos rochosos da mesma maneira que, presa em nossos cinismos, a mente termina por almejar nossos territórios mentais obscuros. A intensidade da luz presa numa caverna é sempre mais esplêndida que aquela do sol. Portanto, preso em minha caverna até o fim da vida, restava-me esse facho de luz proibido aos não iniciados - restava iniciar-me.
Antes que tocasse a bengala para tatear meu caminho até a rua, pensei melhor. Qual seria a impressão de não utilizá-la, pelo menos aquela primeira vez? Sair sem tê-la nas mãos como auxílio afigurava-me como uma aventura ainda mais desejável. Sair sem bengalas, ou suportes - sair, simplesmente.
O zumbido da rua começou a me sussurrar desde longe no condomínio comprido em que meu filho morava. Caminhar ali dentro ainda era fácil.
Cruzei o umbral da entrada do prédio e senti no rosto o bafo dos automóveis e o calor firme do sol da tarde - não pude segurar o sorriso que me escapou e o tremelicar dos dedos da mão. Para onde iria? Até a praça ao final da rua, que, lembrava, atravessava-se poucos sinais.
Os primeiros passos eram tímidos, quase arrastando os pés no chão, mas fui aprendendo com rapidez como caminhar naquela situação. O corpo foi tomado pelo universo, pois sentia, entrando-me pelas cutículas o pavor, o caos que rege o mundo. No entanto, este pavor me afigurou ruim, doía minhas têmporas tamanha minha concentração. Avançava como um equilibrista, suspenso nas lágrimas que se juntavam, charmosas, nos olhos. Passei a mão pelos cabelos e lembrei-me de Praga e seus violinos, assassinos de sonhos.
Então senti uma mão de menina pegar na minha.
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