O dia estava com um quê de misterioso nublado. Era um céu marítimo, meio prateado, de enormes nuvens escamosas, de cor meio indefinível: cinza-peixe. Às três da tarde cairia um granizo leve, e Citônio encontrava-se na praia, com Trivela, sua melhor amiga. Os dois calçavam tênis ol-istar, e vestiam calças diins, mas ele usava uma jaqueta de veludo verde, com uma camisa cor-de-preto por baixo, enquanto ela optou pelo mole-tom, nem lá nem cá, e desprendera os cabelos caindo num ombro. A água parecia muito fria - de fato, a areia coalhava-se de águas-vivas congeladas, que atraíam muitíssimas gaivotas, preenchendo a brisa do mar de uma gritaria desoladora. Os dois comentavam uma notícia de jornal:
Um cientista descobria que todos são trinta e três por cento mais baixos do que imaginava-se até então, porque a medida do metro estava errada. Pesquisando os sistemas de medidas, encontrou erros no cálculo da curvatura da Terra, e que o que pensávamos ser um metro era, na verdade, um metro e meio. Portanto, deveria-se diminuir a altura de todos em um terço, e refazer todos os aparatos de medição, réguas, fitas etc. Somente os países com outros sistemas métricos escaparam da triste fatalidade de encurtamento global.
Sentindo-se rebaixados, amargavam essa questão antropológica e um tanto quanto filosófica. Será que a medida das roupas mudaria também? O gê passaria a ser eme, o eme a ser pê, o pê a ser pepê, e o pepê a ser beibiluque? ......... Péra, seria o contrário, não? Porque nesse sentido as medidas estariam aumentando mais ainda! Puxa, muito complicado. Crucial seria, portanto, um programa governamental para a redução geral e gradual dessas medições.
Citônio olhava para o mar celeste, só que estava meio triste, porque comprara uma camisa de presente para Trivela que agora poderia ficar grande... ele aprendeu a não tirar a etiqueta dos presentes.
segunda-feira, 17 de maio de 2010
sexta-feira, 14 de maio de 2010
Abdução
Citônio tinha uma colega, uma vizinha, mais ou menos da sua idade, no desfolhe dos treze anos. Ela, curiosamente, chamava-se Maria, e nada mais. A mãe era biruta e ela também não batia muito bem: alegavam que foram abduzidas. Credo. Citônio não acreditava muito, mas que era estranho era. Deixemos que ela, Maria, nos narre:
"Foi tudo muito embrulhoso. Estava catando feijão no chão da varanda, numa tarde abafada e desventante, com Caquí, nosso mico, no ombro. Lembro que estava usando o meu vestido mais fulera, com a bacia de feijão bem a minha frente. Foi tudo muito embrulhoso... Ouvi minha mãe miar: 'Mingau!' e a vi andando, suspirona, olhando esmeticamente os horizontes. Chamei-a, mas ela me afastou com os olhos vidrados. Debruçou-se na beirada e não fiz nada; caiu, e não fiz nada; e quando olhei ela não estava nem no céu, nem no chão. Então, senti os capêlos da nuca empreriçarem, e uma liscívica excitação percorreu-me o corpo. Meu vestido parecia flutuar, mas podia ser o vento; e meus cabelos também flutuaram, e meus pés também. Aí tudo ficou da cor de mingau! Ouvi catarolarem um frevinho, mas a música era outra. Acordei numa mesa de operações, e estava frio, e nua. Percorri o lugar com os olhos, mas não vi nada. Então vi um ser de corpo enfinado, usando óculos enormes e espelhados; dedos compridíssimos. Ele disse: 'No hay banda' e depois vi que vestia uma coisa tipo camisa escrito NÃO TENHO CERTEZA, em neon. Dormi e sonhei num carro conversível que fazia cocô enquanto avançava um sinal...
Acordei, ainda nua, deitada na varanda, com a bacia de feijões ainda embraçada pelas minhas pernas, porém com todos os feijões já catados e com os cabelos roxos - como ficariam para sempre. Esqueci meu nome - que era Cassandrina - e também minha mãe, por isso nos rebatizamos. Foi tudo muito embrulhoso..."
Citônio não acreditava muito, mas que era estranho era. Até porque os cabelos de Maria Cassandrina eram realmente roxos.
Citônio aprendeu a sempre desconfiar de pessoas com nomes suspeitos.
"Foi tudo muito embrulhoso. Estava catando feijão no chão da varanda, numa tarde abafada e desventante, com Caquí, nosso mico, no ombro. Lembro que estava usando o meu vestido mais fulera, com a bacia de feijão bem a minha frente. Foi tudo muito embrulhoso... Ouvi minha mãe miar: 'Mingau!' e a vi andando, suspirona, olhando esmeticamente os horizontes. Chamei-a, mas ela me afastou com os olhos vidrados. Debruçou-se na beirada e não fiz nada; caiu, e não fiz nada; e quando olhei ela não estava nem no céu, nem no chão. Então, senti os capêlos da nuca empreriçarem, e uma liscívica excitação percorreu-me o corpo. Meu vestido parecia flutuar, mas podia ser o vento; e meus cabelos também flutuaram, e meus pés também. Aí tudo ficou da cor de mingau! Ouvi catarolarem um frevinho, mas a música era outra. Acordei numa mesa de operações, e estava frio, e nua. Percorri o lugar com os olhos, mas não vi nada. Então vi um ser de corpo enfinado, usando óculos enormes e espelhados; dedos compridíssimos. Ele disse: 'No hay banda' e depois vi que vestia uma coisa tipo camisa escrito NÃO TENHO CERTEZA, em neon. Dormi e sonhei num carro conversível que fazia cocô enquanto avançava um sinal...
Acordei, ainda nua, deitada na varanda, com a bacia de feijões ainda embraçada pelas minhas pernas, porém com todos os feijões já catados e com os cabelos roxos - como ficariam para sempre. Esqueci meu nome - que era Cassandrina - e também minha mãe, por isso nos rebatizamos. Foi tudo muito embrulhoso..."
Citônio não acreditava muito, mas que era estranho era. Até porque os cabelos de Maria Cassandrina eram realmente roxos.
Citônio aprendeu a sempre desconfiar de pessoas com nomes suspeitos.
sexta-feira, 7 de maio de 2010
Sol e Dão
Dá quase pra ver a sua janela
que passa debaixo no morro vazio
de verde.
Um prédio de fachada amarela
não tem porque esconder-se, esguio.
Queria ver-te.
Brisa de vapor de vento
voando no teu sopro
no susto suprimido
Sentado, te imagino de pé, lendo
tatibitateando com seus poros
a fumaça de um sustenido
Cirurgicamente contornado
pelo por-do-sol reluzente
o seu rosto se desabotoa
Estou a te ver de lado
com essa nota de sol poente
que a distância não perdoa
que passa debaixo no morro vazio
de verde.
Um prédio de fachada amarela
não tem porque esconder-se, esguio.
Queria ver-te.
Brisa de vapor de vento
voando no teu sopro
no susto suprimido
Sentado, te imagino de pé, lendo
tatibitateando com seus poros
a fumaça de um sustenido
Cirurgicamente contornado
pelo por-do-sol reluzente
o seu rosto se desabotoa
Estou a te ver de lado
com essa nota de sol poente
que a distância não perdoa
segunda-feira, 3 de maio de 2010
Sustos
Os melhores amigos de Citônio chamavam-se Trivela e Zepelin. Ela, colecionadora de latinhas de refrigerante e jogadora de futebol; ele, líder do cineclube no colégio e comunista brechtiniano. Os dois viviam um caso secreto que Citônio desconhecia e se encontravam dizendo que iam na biblioteca ou no bebedouro, enquanto, na verdade, se escondiam no subsolo para namoros de treze e catorze anos, respectivamente.
Citônio só começou a perceber alguma coisa estranha na festa de quinze anos do Paracelso, um colega redondinho que fazia malabares com facas, tochas e seus três rãmisters, ao mesmo tempo. A casa dele não era tão grande e, mesmo tendo chegado juntos, Citônio não encontrava com Trivela desde que ela fora no banheiro retocar a maquiagem e não esbarrava com Zepelin desde que ele saira pra amarrar os sapatos ao ar livre. Rodando da sala para a varanda, da varanda para o quarto e do quarto para a cozinha, Citônio passou quase meia hora na pista dos dois. Encontrou-os entrando novamente na casa, Trivela com menos maquiagem do que antes, embora Zepelin parecesse mais rosado. Quando lhes perguntou o que fora, ela disse que foi checar o que Zepelin estava fazendo... Citônio, que estava de olho em Loirelinda - que dançava Na Boquinha da Garrafa - deixou pra lá o incidente.
Não voltou a pensar no assunto até o dia em que foi fazer um dever na casa de Trivela. Por conta dessas causalidades inexplicáveis, Citônio acabou vendo-a nua em pêlos quando abriu o armário, a procura de folhas de rascunho e giz de cera, e, por mais que tenha desviado rapidamente o olhar no primeiro susto dos dois, não teve como não reparar nela naqueles instantes de segundo. Foi então que percebeu que ela estava namorando com alguém, porque, desde que fizera aquele curso de desenho de modelos vivos (em que só comparecia nos dias de modelos femininos), aprendera a reconhecer as mulheres solteiras das casadas ou envolvidas em relacionamentos. Ela se justificou, dizendo que no seu quarto do apartamento em que morava antes, ela tinha um closet, o que permitia que ela se trocasse trancada, mas que, agora, ainda não conseguira se acostumar à ideia de armário apertado. Citônio, no entanto, não prestava muita atenção, mas lembrava-se da festa de Paracelso e das saídas estranhas e repentinas para a sala de artes na hora do recreio...
Citônio aprendeu a dançar funk.
Citônio só começou a perceber alguma coisa estranha na festa de quinze anos do Paracelso, um colega redondinho que fazia malabares com facas, tochas e seus três rãmisters, ao mesmo tempo. A casa dele não era tão grande e, mesmo tendo chegado juntos, Citônio não encontrava com Trivela desde que ela fora no banheiro retocar a maquiagem e não esbarrava com Zepelin desde que ele saira pra amarrar os sapatos ao ar livre. Rodando da sala para a varanda, da varanda para o quarto e do quarto para a cozinha, Citônio passou quase meia hora na pista dos dois. Encontrou-os entrando novamente na casa, Trivela com menos maquiagem do que antes, embora Zepelin parecesse mais rosado. Quando lhes perguntou o que fora, ela disse que foi checar o que Zepelin estava fazendo... Citônio, que estava de olho em Loirelinda - que dançava Na Boquinha da Garrafa - deixou pra lá o incidente.
Não voltou a pensar no assunto até o dia em que foi fazer um dever na casa de Trivela. Por conta dessas causalidades inexplicáveis, Citônio acabou vendo-a nua em pêlos quando abriu o armário, a procura de folhas de rascunho e giz de cera, e, por mais que tenha desviado rapidamente o olhar no primeiro susto dos dois, não teve como não reparar nela naqueles instantes de segundo. Foi então que percebeu que ela estava namorando com alguém, porque, desde que fizera aquele curso de desenho de modelos vivos (em que só comparecia nos dias de modelos femininos), aprendera a reconhecer as mulheres solteiras das casadas ou envolvidas em relacionamentos. Ela se justificou, dizendo que no seu quarto do apartamento em que morava antes, ela tinha um closet, o que permitia que ela se trocasse trancada, mas que, agora, ainda não conseguira se acostumar à ideia de armário apertado. Citônio, no entanto, não prestava muita atenção, mas lembrava-se da festa de Paracelso e das saídas estranhas e repentinas para a sala de artes na hora do recreio...
Citônio aprendeu a dançar funk.
quinta-feira, 29 de abril de 2010
Duas da tarde na Cinelândia
Sempre que Citônio dizia no colégio que escrevia poesia, chamavam ele de viado. "Poesia é coisa de viado." Demorou quase três meses pra Citônio perceber que é verdade. (Não é à toa que estou escrevendo um conto, forma bem mais máscula de redação). Mas demorou mais ainda pra ele perceber que poesia tem muito mais a ver com internar coisas do que com externar. Feito isso, foi à Biblioteca Nacional, tirar direitos autorais sobre certos poemas primorosos seus. Chegando nas escadarias pedrosas da fachada, avistou ninguém mais, ninguém menos do que a gatinha mais gostosa da escola: Loirelinda, filha de um diretor da Globo, casado com uma professora e chefe de departamento de alguma ciência aí na UFRJ.
Inspirado pelos deuses mais sacanas de todos os credos do mundo, mais todos os brasileiros, encantou-se com a ideia estapafúrdia de uma belíssima intervenção urbana: a leitura declamada e apaixonada - e apaixonante, quem sabe? - de um de seus poemas, para ela, a musa cor-de-rosa em chortinhos diins, de pernas delgadas e fosforecentes, que subia, rebolante e lentamente, os degraus. O "soneto dos caramujos" lhe pareceu conveniente, ao que se enjoelhou no esquerdo, pos a mão ao peito, e declamou-o com voz de ganso.
No segundo verso já se arrependera, mas achou melhor não parar no meio, talvez fosse ainda pior. O fato é que percebeu que todos pararam a sua volta, com risos escorrendo pelas caras, e puxavam celulares e máquinas para registrar o acontecimento tão logo ele se iniciara. Havia até mesmo um, chamado Duracel, que já estava filmando a coisa antes dela começar! Mas, de todos, somente Loirelinda não reparara, e continuara com seus passos bambos de calopsita até adentrar no saguão da biblioteca.
Citônio terminou a recitação sob uma ovação desconcertante de várias pessoas e lhe pediram mais um, e depois mais um, e depois mais outro, ao fim do qual anunciou que, para mais, procurassem o blog dele.
Atordoado, pegou o metrô e voltou para casa, sem registrar uma só poesia.
Ainda que não tivesse conquistado Loirelinda, Citônio passou a ser dono de um dos blogs mais badalados (diferente deste aqui) e os vídeos todos foram para internet - o de Duracel foi o com mais vistos, porque era o único completo.
Citônio aprendeu que ajoelhar-se não favorece a voz e que dói o joelho, além de sujar as calças.
Inspirado pelos deuses mais sacanas de todos os credos do mundo, mais todos os brasileiros, encantou-se com a ideia estapafúrdia de uma belíssima intervenção urbana: a leitura declamada e apaixonada - e apaixonante, quem sabe? - de um de seus poemas, para ela, a musa cor-de-rosa em chortinhos diins, de pernas delgadas e fosforecentes, que subia, rebolante e lentamente, os degraus. O "soneto dos caramujos" lhe pareceu conveniente, ao que se enjoelhou no esquerdo, pos a mão ao peito, e declamou-o com voz de ganso.
No segundo verso já se arrependera, mas achou melhor não parar no meio, talvez fosse ainda pior. O fato é que percebeu que todos pararam a sua volta, com risos escorrendo pelas caras, e puxavam celulares e máquinas para registrar o acontecimento tão logo ele se iniciara. Havia até mesmo um, chamado Duracel, que já estava filmando a coisa antes dela começar! Mas, de todos, somente Loirelinda não reparara, e continuara com seus passos bambos de calopsita até adentrar no saguão da biblioteca.
Citônio terminou a recitação sob uma ovação desconcertante de várias pessoas e lhe pediram mais um, e depois mais um, e depois mais outro, ao fim do qual anunciou que, para mais, procurassem o blog dele.
Atordoado, pegou o metrô e voltou para casa, sem registrar uma só poesia.
Ainda que não tivesse conquistado Loirelinda, Citônio passou a ser dono de um dos blogs mais badalados (diferente deste aqui) e os vídeos todos foram para internet - o de Duracel foi o com mais vistos, porque era o único completo.
Citônio aprendeu que ajoelhar-se não favorece a voz e que dói o joelho, além de sujar as calças.
quarta-feira, 21 de abril de 2010
Sou a favor de uma arte...
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Sou a favor de uma arte que seja místico-erótico-política, que vá além de sentar o seu traseiro num museu.
Sou a favor de uma arte que evolua sem saber que é arte, uma arte que tenha a chance de começar do zero.
Sou a favor de uma arte que se misture com a sujeira cotidiana e ainda saia por cima.
Sou a favor de uma arte que imite o humano, que seja cômica, se for necessário, ou violenta, ou o que for necessário.
Sou a favor de uma arte que tome suas formas das linhas da própria vida, que gire e se estenda e acumule e cuspa e goteje, e seja densa e tosca e franca e doce e estúpida como a própria vida.
Sou a favor de um artista que desapareça e ressurja de boné branco pintando anúncios ou corredores.
Sou a favor da arte que sai da chaminé como pêlos negros e esvoaça ao vento.
Sou a favor da arte que cai da carteira do velho quando ele é atingido por um páralama.
Sou a favor da arte que sai da boca do cãozinho, despencando cinco andares do telhado.
Sou a favor da arte que o garoto lambe, depois de rasgar a embalagem.
Sou a favor de uma arte que sacuda como o joelho de todo mundo quando o ônibus cai num buraco.
Sou a favor da arte tragável como os cigarros e fedorenta como os sapatos.
Sou a favor da arte que drapeja, como as bandeiras, ou assoa narizes, como os lenços.
Sou a favor que se veste e tira, como as calças, que se enche de furos, como as meias, que é comida, como um pedaço de torta, ou descartada, com total desdém, como merda.
Sou a favor da arte coberta de ataduras, sou a favor da arte que manca e rola e corre e pula. Sou a favor da arte enlatada, ou trazida pela maré.
Sou a favor da arte que se enrosca e grunhe como os lutadores. Sou a favor da arte que solta pêlo.
Sou a favor da arte que você senta em cima. Sou a favor da arte que você usa para cutucar o nariz, da arte em que você tropeça.
Sou a favor da arte vinda de um bolso, dos profundos canais do ouvido, do fio da navalha, dos cantos da boca, da arte enfiada nos olhos, ou usada nos pulsos.
Sou a favor da arte sob as saias e da arte de esmagar baratas.
Sou a favor da arte da conversa entre a calçada e a bengala de metal do cego.
Sou a favor da arte que cresce num vaso, que desce do céu à noite, como um raio, e se esconde nas nuvens e retumba. Sou a favor da arte que se liga e desliga com um botão.
Sou a favor da arte que se desdobra como um mapa; que se pode abraçar como namorado ou beijar como cachorrinho. Que expande e estridula, como um acordeão, que você pode sujar de comida, como uma toalha de mesa velha.
Sou a favor da arte que se usa para martelar, alinhavar, costurar, colar, arquivar.
Sou a favor da arte que diz as horas, ou onde fica essa ou aquela rua.
Sou a favor da arte que ajuda a velhinha a atravessar as ruas.
Sou a favor da arte da máquina de lavar. Sou a favor da arte de um cheque do governo. Sou a favor da arte das capas de chuva de guerras passadas.
Sou a favor da arte que sai como vapor dos bueiros no inverno. Sou a favor da arte que estilhaça quando se pisa numa poça congelada. Sou a favor da arte dos vermes dentro das maçãs. Sou a favor da arte do suor que surge entre pernas cruzadas.
Sou a favor da arte dos cabelinhos da nuca e dos chás tradicionais, da arte entre os dentes de garfos dos bares, da arte do cheiro de água fervendo.
Sou a favor da arte de velejar aos domingos e da arte das bombas de gasolina vermelhas e brancas.
Sou a favor da arte de colunas azuis brilhantes e anúncios luminosos de biscoito.
Sou a favor da arte de rebocos e esmaltes baratos. Sou a favor da arte do mármore gasto e da ardósia britada. Sou a favor da arte das pedrinhas espalhadas e da areia deslizante. Sou a favor da arte dos resíduos de hulha e do carvão negro. Sou a favor da arte das aves mortas.
Sou a favor da arte das marcas no asfalto e das manchas na parede. Sou a favor da arte dos vidros quebrados e dos metais batidos e curvados, da arte dos objetos derrubados propositalmente.
Sou a favor da arte de pancadas e joelhos arranhados e traquinagens. Sou a favor da arte dos murmúrios das mães.
Sou a favor da arte do burburinho dos bares, de palitar os dentes, tomar cerveja, salpicar ovos, de insultar. Sou a favor da arte de cair dos bancos de botecos.
Sou a favor da arte de roupas íntimas e táxis. Sou a favor da arte das casquinhas de sorvete derrubadas no asfalto. Sou a favor da arte majestosa dos dejetos caninos, elevando-se como catedrais.
Sou a favor da arte que pisca, iluminando a noite. Sou a favor da arte caindo, borrifando, pulando, sacudindo, acendendo e apagando.
Sou a favor da arte de pneus de caminhão imensos e olhos roxos.
Sou a favor da arte Kool, arte 7-up, arte Pepsi, arte Sunshine, arte plástico, arte mentol, arte L&M, arte laxante, arte grampo, arte Heaven Hill, arte farmácia, arte sana-med, arte Rx, arte 9,99, arte agora, arte nova, arte como, arte queima de estoque, arte última chance, apenas arte, arte diamante, arte do amanhã, arte Franks, arte Ducks, arte hamburgão.
Sou a favor da arte do pão molhado de chuva. Sou a favor da arte da dança dos ratos nos foros.
Sou a favor da arte de moscas andando em pêras brilhantes sob a luz elétrica. Sou a favor da arte de cebolas tenras e talos verdes firmes. Sou a favor da arte do estalido das nozes com o vai-e-vem das baratas. Sou a favor da arte triste e marrom das maçãs apodrecendo.
Sou a favor da arte dos miados e alaridos dos gatos e da arte de seus olhos luzentes e melancólicos.
Sou a favor da arte branca das geladeiras e do abrir e fechar vigoroso de suas portas.
Sou a favor da arte do mofo e da ferrugem. Sou a favor da arte dos corações, lúgubres ou apaixonados, cheios de nougat. Sou a favor da arte de ganchos para carne usados e barris rangentes de carne vermelha, branca, azul e amarela.
Sou a favor da arte dos objetos perdidos ou jogados fora na volta da escola. Sou a favor da arte de árvores lendárias e vacas voadoras e sons de retângulos e quadrados. Sou a favor da arte de lápis e grafites de ponta macia, de aquarelas e bastões de tinta a óleo, da arte dos limpadores de pára-brisa, da arte de um dedo na janela fria, no pó de aço ou nas bolhas das laterais da banheira.
Sou a favor da arte dos ursinhos de pelúcia e pistolas e coelhos decapitados, guarda-chuvas explodidos, camas violadas, cadeiras com as pernas quebradas, árvores em chamas, tocos de bombinhas, ossos de galinha, ossos de pombo e caixas com gente dormindo dentro.
Sou a favor da arte de flores fúnebres levemente murchas, coelhos ensangüentados pendurados e galinhas amarelas enrugadas, baixos e pandeiros, e vitrolas de vinil.
Sou a favor da arte das caixas abandonadas, enfaixadas como faraós. Sou a favor da arte de caixas-d'água e nuvens velozes e sombras tremulantes.
Sou a favor da arte inspecionada pelo Governo dos Estados Unidos, arte tipo A, arte preço regular, arte ponto de colheita, arte extraluxo, arte pronta para consumir, arte o melhor por menos, arte pronta para cozinhar, arte higienizada, arte gaste menos, arte coma melhor, arte presunto, arte porco, arte frango, arte tomate, arte banana, arte maçã, arte peru, arte bolo, arte biscoito.
acrescente:
Sou a favor de uma arte que seja penteada, que pende de cada orelha, seja posta nos lábios e sob os olhos, depilada das pernas, escovada dos dentes, que seja presa nas coxas, enfiada nos pés.
quadrado que se torna amorfo
Claes Oldenburg
domingo, 4 de abril de 2010
Desmentiras
os meus vômitos têm estrelas
cadentes de porcaria
me disseram que se fizesse
careta
e o vento passasse
eu ficaria assim pra sempre todo
morria de medo de vomitar ao ar livre
e morrer de vomitar pra sempre
mas pelo menos o mundo teria mais
luzinhas
mais que as lampadinhas acesas
das casas de cada pessoa
com medo do escuro
eu tinha medo de escuro
porque apareciam ètés e fantasmas
na sombraria da casa vazia
no vaga-lume do costume
de andar de luz acesa
a vó também me disse
que bolo quente faz mal
dá dor de barriga e queima o esôfago
fosse lá o que fosse isso.
imagina comer bolo
fazendo vesgo na noite escura...
ia ser o caos dos vaga-lumes-estrela
junto com bolo queimadura da dor de barriga
vomitados da minha cara desfocada eternamente
e com assombração de outros mundos!
cadentes de porcaria
me disseram que se fizesse
careta
e o vento passasse
eu ficaria assim pra sempre todo
morria de medo de vomitar ao ar livre
e morrer de vomitar pra sempre
mas pelo menos o mundo teria mais
luzinhas
mais que as lampadinhas acesas
das casas de cada pessoa
com medo do escuro
eu tinha medo de escuro
porque apareciam ètés e fantasmas
na sombraria da casa vazia
no vaga-lume do costume
de andar de luz acesa
a vó também me disse
que bolo quente faz mal
dá dor de barriga e queima o esôfago
fosse lá o que fosse isso.
imagina comer bolo
fazendo vesgo na noite escura...
ia ser o caos dos vaga-lumes-estrela
junto com bolo queimadura da dor de barriga
vomitados da minha cara desfocada eternamente
e com assombração de outros mundos!
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