terça-feira, 30 de novembro de 2010

O Bandeirante e a Caipora - Canto II: Sina do Mundo

Era o dia da partida:
não tem volta, a vida é ida.
No aceno não tinha adeus,
só o desejo dos pés seus.

Tinha a estrada nos olhos
E, estradando, tinha estrada
até no cu dos fundilhos.
Era no meio do nada.

Parda paisagem poeira:
O império passo apressado
pesava no paraíso

pois do porte da sujeira
era o primeiro passado
que empurrava o caraíba

Portanto, se por si pensa
Repense o próprio pensar:
Pior com pior, condensa
melhor não ver e marchar.

Dito e feito fez o homem
bicho gingando apressado
lugar que vai não tem nome
melhor que Predestinado

Solitário como olhar,
tão triste como um trinado
de um pássaro sem voar

bicho de olho furado,
tem mundo, mas não o mar;
livre, mas engaiolado.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Despedida

Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão,
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:
quero solidão.

Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces? - me perguntarão.
- Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.

Que procuras? - Tudo. Que desejas? - Nada.
Viajo sozinha com meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.

A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!
Estandarte triste de uma estranha guerra...)

Quero solidão.
Cecília Meireles

domingo, 14 de novembro de 2010

O Bandeirante e a Caipora - Canto I: Saudação

Quais mistérios guarda
nossa pátria gorda,
virgem como freira,
freira como fada?

Bandeirante cego
entra nessa mata
guia-lhe o vento,
cantos, cheiros, nadas

Andarilho roto,
nordestino pobre
traz um punhal torto
e um cantil de cobre

Faces definidas
pelo sol ardente
olhar de valente
branco igual caatinga

Herói de cordel
nem deus nem diabo
- tem fogo no rabo
e lugar no céu.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Suavíssima

Os galos cantam, no crepúsculo dormente...
No céu de outono, anda um langor final de pluma
Que se desfaz por entre os dedos, vagamente...

Os galos cantam, no crepúsculo dormente...
Tudo se apaga, e se evapora, e perde, e esfuma...

Fica-se longe, quase morta, como ausente...
Sem ter certeza de ninguém... de coisa alguma...
Tem-se a impressão de estar doente, muito doente,

De um mal sem dor, que se não saiba nem resuma...
E os galos cantam, no crepúsculo dormente...

Os galos cantam, no crepúsculo dormente...
A alma das flores, suave e tácita, perfuma
A solitude nebulosa e irreal do ambiente...

Os galos cantam, no crepúsculo dormente...
Tão para lá!... No fim da tarde... Além da bruma...

E silenciosos, como alguém que se acostuma
A caminhar sobre penumbras, mansamente,
Meus sonhos surgem, frágeis, leves como espuma...

Põem-se a tecer frases de amor, uma por uma...
E os galos cantam, no crepúsculo dormente...

Cecília Meireles

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

poema de palanque ou altar

jamais ficareis sem água encanada e esgoto!

haverão falsos cristos e falsos profetas!

não sofrereis violência de nenhuma forma, pelo qual as punições serão severas

a ajuda virá dos céus - através de nosso sagrado partido

bendito o voto que vos ajuda me ajudando - votai nos outros como gostaríeis que eles vos votassem

prometo a salvação eterna, com dízimos mais baixos!

pelo meio-dízimo dos estudantes!

implantaremos as carpideiras e as macumbeiras populares!

pela sacralização do dia do servidor público e do dia da bandeira

obrigatoriedade de cultura sacra na educação pública!

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

soneto sem sonho

O almirante olhava a onda do mar
batendo no casco do seu navio
como suspiros em um rodopio
talhando com sal o seu navegar

E chorou com um suspiro assobio
serenando as saudades do seu solo
-descobridor, gaúcho, marco polo
atravessando o mar como quem navega um rio

Toda a prata, pau-brasil ou mesmo ouro
lhe eram avessos do maior tesouro
que, enterrado, nunca reaveria

Em cima, a cruz marcava feito um xis
lembrando que ali foi feliz
uma amada que, sem sonhar, dormia

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A idade do mar

me veio na cabeça a imagem de uma praia
com a galera batendo papo
vivendo como um tatuí hippie

bicho grilo bicho do mato
aquelas fotos sentado na pedra olhando o horizonte mar
a galera tocando violão em volta da fogueira

me veio na cabeça agora
o medo que tenho de lembrar dessas coisas
dessas imagens, praias, fotos, bichos e fogos

o laço força que não me deixa andar
que dá close-ups nos meus olhos
quando pisco pra disfarçar o cisco falso

e nas falácias flácidas desses filamentos pensados
filados de pensamentos daquele horizonte mar que falei
fico olhando as fotos dos outros
que ainda como eu já fui e nunca sou
bicham grilo e bicham do mato
bichas hippies ma(i)s alegres

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

fósforo aceso

quase acordei
vermelho de contralto

no tempo dilatado no olho do furacão

dentro de mim, trago o sertão
amarelinho
como as atlântidas dos seus corpos

o primeiro, aquela sua voz
do assobio de cotovia
que me olha lentamente por detrás das
cachoeiras
dos seus olhos

o outro, eu nunca vi
me é perdido, mas tem cheiro de folha
sinusite cervical
como os orgasmo prenhes daqueles
felinos
dos seus olhos

domingo, 19 de setembro de 2010

poemazinho de um bocó

eu sou um idiota
que resolveu escrever só pra virar poeta
tipinho alternativo
com olhar de quem saca das coisas
onde posso sacar o que for?
se virei poeta pra fazer estilo
quero terminar com o estilo
e não virar poeta nunca.
Agora, se descobrir alguma coisa na poesia
prefiro morrer sem estilo
e não ser poeta nunca.

Fazia poemas que o breno não aprecia:
pra namorada olhar e dizer que bonitinho.
Tentei ficar mais cabeça
mais poético (eu achava)
e me descobrir um fracassado estiloso
mas era bom tirar onda

enveredar é, além de um lindo verbo, um ótimo caminho.

balançando nessas ondas e viagens
(em todos os sentidos dessas palavretas)
percebi
que só sei fazer poemazinho ruim pra namorada olhar e dizer que bonitinho
"onde o vento que balança a sua saia?"
- eu e minhas aliterações...
achava foda.

é momento de revisão
re-ver. outro bom verbo.

a gente faremos poema de casebre
- ou nunca mais a gente faremos poema

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

eu

ai, que saudade daquele cheiro de pó!
de maquiagem e de quinto andar!
que saudade de viver cada dia
de ser sido mais do que ser
sendo sem ser

ai, que dias vividos, adiados
o cheiro do figurino e do suor da gente!
do gel de cabelo! e das brincadeiras!
que vontade de fazer tudo de novo e mais de novo vezes
assim, somando tudo num mesmo saco
sentindo sentindo sendo e indo

ai, que vontade de dançar ciranda
de rodar, sorrindo mais que sendo
num círculo mais que infinito, além do mais
e vendo todo mundo lindo
ligados de mãos dadas e doando-se e se dando

ai, que saudade de se apaixonar todos os dias
amando todo mundo e seus mais cintilantes sorrisos
que dias vividos! e ver os rostos maquiados e lindos
que saudade de ser ator mais que tudo
que ser ator mais que eu
que saudade de teatro.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Luzes de natal

revirada
se navega pelas ruas do rio
nas santanas, nas ravinas
transviada

pela surdina danoitecimento
acontece a noite escurinha
- fast and freezing, female night
fetichando with your lights

luzinhas piscantes natalinas
pirilipando pequeninas nas passarelas
cinzas e (antes) sem-graça
das ruas altas tortuosas!

são as minhas estrelas
que me ensinam a remar sempre
sempre navegando
as ruas tortas do rio

piscadelas me chamando pra sua ruína!
como são lindas!
Armadilha ardilosa, agarra rindo
entre os braços do rio

Uma vez fiz da lagoa musa minha
achava que ali te tinha
meu templo escuro de opaca transparência!
viria a dia que ainda vinha

Wich of this littles lights
leaves to you, rio?
- a serraria carioca navegando!
lagoa escura, curva, linda.

E as luzes da cidade no natal
piscando
piscando
piscadelas me chamando pra sua ruína!

Se a astrologia dos seus olhinhos fosse clara
talvez te achasse antes
- wich? what for?
luzinhas piscantes são você

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Solução

"Se me chamasse Raimundo
Seria uma rima e não uma solução"

Nunca li nada que me disse alguma coisa mais
do que um único verso gauche

Abri a cabeça com um Machado
quase rimando com Riobaldo

Agora só salva um escrito bobo
sem mais nem menos
desse blog

Não,
isso não salva nem ama
isso não salva nem peca

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Elevação de uma mangueira: em verde e rosa

mangueira
cano
canudo
tubo
tube
youtube
video
filmar
cinema
delícia
chocolate
café
cult
godard
genial
cachorro-quente
rua
lapa
malandragem
polícia
cacete
pau
..................................pênis...................................madeira
.................................macho....................................árvore
.................................fêmea.................................mangueira
.................................curvas
.............................arquitetura
.................................espaço
................estrela........................ lugar
...............planeta.........................praia
................vênus.........................búzios
...............afrodite......................maresia
...............sensual..........................mar
................teatro.........................dorival
................amor.........................ciranda
............namorado.......................roda
................afago...........................união
............presente.......................ecologia
................flores.........................verde
.................rosa

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Quando eu não acordo

Hoje o dia acordou com cheiro de velho
Mas pode ser eu que não tomei banho ainda
Entre alfazema e channel
Existe desejo
(prefiro ser feito da pele que vejo
E de cardioolhos)

Eu assisti a brisa dançando no teu sorriso
Dançando o teu sorriso
Era uma ciranda cigana antiga
Guardada à naftalina
(as crianças nunca morrem
Se andarem com o nariz na frente de tudo)

O silêncio perdeu o mapa
Pra Santiago
Mas achou o dia acordando
E o cheirou, e o cheirou
E no cheiro achou um canto

segunda-feira, 19 de julho de 2010

O Nunca

quando que eu nunca vou descobrir
que esse negócio nos olhos
que chamam distância
e que arrepia os pêlos
não tem colírio
que não o colibri

que a rede das nossas pestanas
em acordes desarmônicos da saudade
não fisgam passarinho ou borboleta
são só o leito da varanda
que faz a cama
mas não forra os olhos

Então quando os fecho
e vejo perfeitamente nada
desperfeitamos o escuro
para se ver
e dessa desvisão
acabou o tempo.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Poemeto Nordestino

Fui batizado de lonjuras
esse cisco arteiro do olho
que vai pro cabelo e gera piolho

o palhaço, que traz no rosto um novelo
sou eu com mais abotoaduras
e a máscara, lavada de lágrimas, virando um molho
é o começo das lonjuras que falei no começo

do gesto de passaredo, não me esqueço
os novelos do meu rosto, num enredo
enredam minha postura

e, qual planta que não conheço
faço do céu meu credo
desenraizo da terra dura
e adoentado de asas padeço

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Apoetando o lápis

Fazer poesia
é saber que cada verso que lhe escapa
a cabeça
se estupidesse no papel
inexoravelmente

por isso,
melhor pensar tapado
e fazer feio de qualquer jeito
do que pensar espertadamente
e esburrecer.

A gente faremos poema de casebre.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Seis quadras de feira pra correr

Uma feira zumbidante de vulvuzelas
Gritam - Açaí! Mexirica! Pau-de-sebo!
Os únicos calados são as estátuas humanas
pintadas de dourado.

Decidi ir voando até aí
mas, por falta de asas,
eu vou e ando
mais fácil, né?

Daí fui empurrado de tudo que é lado
e um peixeiro quase abre a minha barriga
Imagina
Chegar até você com as tripas de fora.

Dou um salto mortal
quando assalto a estátua humana
e corro até ti
esquecendo um chinelo pra trás.

Com aquele dinheiro
te dei um buquê de flores roxas
e dei entrada
no nosso apartamento

Ali na hora, no entanto,
naquele momento, entre gritos de zueira
decidi te dar um beijo
só com a força do pensamento.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Azar

Sobrevoando esses prédios
pensava que iria cair
tenho vertigem, sabe

mas doença sem remédio
é a miopia do existir
nos devaneios de ave.

Apassarinhando as cotovias
sou acotovelado sem par
já que a vida era de sorte ou azar
pra passarinho que não via

Essa é a moderna miopia
do desencontro de um par:
o sorteio ocular
do que ontem inda existiria

Acróbio, o poeta de calçada

domingo, 13 de junho de 2010

Dia dos namorados (ou Plongée)

Era a madrugada mais fria, gelada do ano. Os sinais piscavam em amarelo, as poças refletiam o amarelo, o asfalto sustentava as poças com seus reflexos - mas o seu reflexo era mais opaco. Raros carros passavam, pouca gente passava. Só Citônio.
Ele caminhava lentamente lembrando liricamente daqueles lindos dias de devassidão. Costumava sair muito com seus amigos de madrugada, catando mendigos por aí, contracenando com os marginais da meia-noite, recolhendo os colegas nas casas de cada um, bebendo cachaça e terminando no lixão afastado, ou na praia, ou no porto, ou perto da prisão, ou em cima de um viaduto. Agora, no entanto, caminhava sozinhamente. Começou a cair uma garoazinha finazinha.
Citônio contornava um muro altíssimo, todo cinza, todo reto, encimado por coroas enroladas de arame farpado e cacos de vidro rosa espetados. Citônio caminhava, sozinhamente. Ali, preso entre os labirintos do arame, havia alguns gastos sacos plásticos de outros tempos, que o tempo frio trouxe e ali eles ficaram presos, dançando, leves, com o vento. Eram como bandeiras de impérios caídos, rasgados, com seus restos tristes balançando - sozinhamente. Citônio pulou um bueiro encharcado de baratas. Olhou novamente para o alto do muro. Além dos panos plásticos percebeu que haviam pássaros - pombos - presos na rede farpada. Alguns pareciam já estar mortos, mas outros ainda tinham espasmos débeis e piscavam os olhos, sem compreender que findavam com as penas presas no arame. Citônio não se impressionou, mas franziu o cenho. De repente veio, muito lento, um carro, com faróis acesos muito fortes. Citônio continuou caminhando, mas meio cego pela luz forte. O carro passou. Citônio, então, viu algo mais bizarro. Ali, em cima, preso no arame farpado e nos cacos de vidro cor-de-rosa como os sacos plásticos, havia um poeta morimbundo, com espasmos tão débeis como o dos pombos, com olhos tão sujos quanto o bueiro embaratado. Estava roto, tolo, tosco; morria como um rato, roído pelo arame, rasgado pelo vidro. Ele deu um risinho triste, Citônio olhava-o, sério. Então, depois de alguns segundos, o poeta virou-se e viu Citônio, e, com a boca presa pelas garras do arame, disse, sem falar uma palavra: "Envalsei-me no veludo!"

Citônio nunca mais pensou noutra coisa.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Avistando-se

Te dei a chave pro meu coração
pra você que nem sabe o que eu tô sentindo
pra você que nem me entende direito
pra você que é cego e corre na avenida, solto
pra você que pedala na vieira souto
pra você que me vê envergonhada

pra vasta várzea da minha vida
que você nunca me viu
e que eu nunca te vi
e que, por coisas tão inexplicáveis quanto a poesia
por coisas tão banais e tão inúteis quanto a poesia
avistamo-nos.

Agora, me descobre
devagar, vaga, perde-se
que meu cabelo esconde os olhos
porque meus olhos não me escondem

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Na trave de um soneto

A redenção do poeta
está no
lembrar de alguma coisa que nunca foi
ou nunca fez ou nunca viu

está na saudade do amanhã
que nos ataca
quando lavamos a mão depois do almoço
ou antes de fazer xixi

está na antítese entre gêmeos
da esperança no passado
do renascer do obsoleto

quarta-feira, 26 de maio de 2010

porradobol

criança fala poema tempo todo
nem dá bola
tipo porradobol

- eu e turbinado contra rapa!
- tá mas o gol de vocês tá mais grande!
- ah, vai pra zaga zé zuado!
- PORRADOBOL!

A maisgrandeza do gol fez toda a diferença do mundo.
As mininas todas davam
gritinhos aflitos, que nem sirenes bêbadas
Doía pra carácolis!
Também, só bicaço, fazia furo na rede
e, as vezes, machucava o olho de um
tinha que ir pra enfermaria, ou pra casa
o gordinho.

A gente não ligava não

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Sol do fim de tarde

O sol do fim da tarde
entrava lateralmente lá em casa
engatinhando pelo chão de madeira
que nem o nosso gato

e eu dizia pro verão entrar
que fizesse do chão sua casa também
sem envergonhas, sem timidezas
e esquentasse nossas longas férias no play

podia ser de piscina, fazendo rodamoinho
ou fazer cidades de lego no canto do corredor
- as vezes a gente se vestia diferente
e gravava com a câmerazinha do meu irmão mais velho

o mais legal era ter muito tempo
cheinho de sol, que invadia nossa casa
e alegrava os saltos do nosso gato
que nem faz com os saltos das crianças

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Dunas

O dia estava com um quê de misterioso nublado. Era um céu marítimo, meio prateado, de enormes nuvens escamosas, de cor meio indefinível: cinza-peixe. Às três da tarde cairia um granizo leve, e Citônio encontrava-se na praia, com Trivela, sua melhor amiga. Os dois calçavam tênis ol-istar, e vestiam calças diins, mas ele usava uma jaqueta de veludo verde, com uma camisa cor-de-preto por baixo, enquanto ela optou pelo mole-tom, nem lá nem cá, e desprendera os cabelos caindo num ombro. A água parecia muito fria - de fato, a areia coalhava-se de águas-vivas congeladas, que atraíam muitíssimas gaivotas, preenchendo a brisa do mar de uma gritaria desoladora. Os dois comentavam uma notícia de jornal:
Um cientista descobria que todos são trinta e três por cento mais baixos do que imaginava-se até então, porque a medida do metro estava errada. Pesquisando os sistemas de medidas, encontrou erros no cálculo da curvatura da Terra, e que o que pensávamos ser um metro era, na verdade, um metro e meio. Portanto, deveria-se diminuir a altura de todos em um terço, e refazer todos os aparatos de medição, réguas, fitas etc. Somente os países com outros sistemas métricos escaparam da triste fatalidade de encurtamento global.
Sentindo-se rebaixados, amargavam essa questão antropológica e um tanto quanto filosófica. Será que a medida das roupas mudaria também? O gê passaria a ser eme, o eme a ser pê, o pê a ser pepê, e o pepê a ser beibiluque? ......... Péra, seria o contrário, não? Porque nesse sentido as medidas estariam aumentando mais ainda! Puxa, muito complicado. Crucial seria, portanto, um programa governamental para a redução geral e gradual dessas medições.
Citônio olhava para o mar celeste, só que estava meio triste, porque comprara uma camisa de presente para Trivela que agora poderia ficar grande... ele aprendeu a não tirar a etiqueta dos presentes.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Abdução

Citônio tinha uma colega, uma vizinha, mais ou menos da sua idade, no desfolhe dos treze anos. Ela, curiosamente, chamava-se Maria, e nada mais. A mãe era biruta e ela também não batia muito bem: alegavam que foram abduzidas. Credo. Citônio não acreditava muito, mas que era estranho era. Deixemos que ela, Maria, nos narre:

"Foi tudo muito embrulhoso. Estava catando feijão no chão da varanda, numa tarde abafada e desventante, com Caquí, nosso mico, no ombro. Lembro que estava usando o meu vestido mais fulera, com a bacia de feijão bem a minha frente. Foi tudo muito embrulhoso... Ouvi minha mãe miar: 'Mingau!' e a vi andando, suspirona, olhando esmeticamente os horizontes. Chamei-a, mas ela me afastou com os olhos vidrados. Debruçou-se na beirada e não fiz nada; caiu, e não fiz nada; e quando olhei ela não estava nem no céu, nem no chão. Então, senti os capêlos da nuca empreriçarem, e uma liscívica excitação percorreu-me o corpo. Meu vestido parecia flutuar, mas podia ser o vento; e meus cabelos também flutuaram, e meus pés também. Aí tudo ficou da cor de mingau! Ouvi catarolarem um frevinho, mas a música era outra. Acordei numa mesa de operações, e estava frio, e nua. Percorri o lugar com os olhos, mas não vi nada. Então vi um ser de corpo enfinado, usando óculos enormes e espelhados; dedos compridíssimos. Ele disse: 'No hay banda' e depois vi que vestia uma coisa tipo camisa escrito NÃO TENHO CERTEZA, em neon. Dormi e sonhei num carro conversível que fazia cocô enquanto avançava um sinal...
Acordei, ainda nua, deitada na varanda, com a bacia de feijões ainda embraçada pelas minhas pernas, porém com todos os feijões já catados e com os cabelos roxos - como ficariam para sempre. Esqueci meu nome - que era Cassandrina - e também minha mãe, por isso nos rebatizamos. Foi tudo muito embrulhoso..."

Citônio não acreditava muito, mas que era estranho era. Até porque os cabelos de Maria Cassandrina eram realmente roxos.
Citônio aprendeu a sempre desconfiar de pessoas com nomes suspeitos.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Sol e Dão

Dá quase pra ver a sua janela
que passa debaixo no morro vazio
de verde.

Um prédio de fachada amarela
não tem porque esconder-se, esguio.
Queria ver-te.

Brisa de vapor de vento
voando no teu sopro
no susto suprimido

Sentado, te imagino de pé, lendo
tatibitateando com seus poros
a fumaça de um sustenido

Cirurgicamente contornado
pelo por-do-sol reluzente
o seu rosto se desabotoa

Estou a te ver de lado
com essa nota de sol poente
que a distância não perdoa

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Sustos

Os melhores amigos de Citônio chamavam-se Trivela e Zepelin. Ela, colecionadora de latinhas de refrigerante e jogadora de futebol; ele, líder do cineclube no colégio e comunista brechtiniano. Os dois viviam um caso secreto que Citônio desconhecia e se encontravam dizendo que iam na biblioteca ou no bebedouro, enquanto, na verdade, se escondiam no subsolo para namoros de treze e catorze anos, respectivamente.
Citônio só começou a perceber alguma coisa estranha na festa de quinze anos do Paracelso, um colega redondinho que fazia malabares com facas, tochas e seus três rãmisters, ao mesmo tempo. A casa dele não era tão grande e, mesmo tendo chegado juntos, Citônio não encontrava com Trivela desde que ela fora no banheiro retocar a maquiagem e não esbarrava com Zepelin desde que ele saira pra amarrar os sapatos ao ar livre. Rodando da sala para a varanda, da varanda para o quarto e do quarto para a cozinha, Citônio passou quase meia hora na pista dos dois. Encontrou-os entrando novamente na casa, Trivela com menos maquiagem do que antes, embora Zepelin parecesse mais rosado. Quando lhes perguntou o que fora, ela disse que foi checar o que Zepelin estava fazendo... Citônio, que estava de olho em Loirelinda - que dançava Na Boquinha da Garrafa - deixou pra lá o incidente.
Não voltou a pensar no assunto até o dia em que foi fazer um dever na casa de Trivela. Por conta dessas causalidades inexplicáveis, Citônio acabou vendo-a nua em pêlos quando abriu o armário, a procura de folhas de rascunho e giz de cera, e, por mais que tenha desviado rapidamente o olhar no primeiro susto dos dois, não teve como não reparar nela naqueles instantes de segundo. Foi então que percebeu que ela estava namorando com alguém, porque, desde que fizera aquele curso de desenho de modelos vivos (em que só comparecia nos dias de modelos femininos), aprendera a reconhecer as mulheres solteiras das casadas ou envolvidas em relacionamentos. Ela se justificou, dizendo que no seu quarto do apartamento em que morava antes, ela tinha um closet, o que permitia que ela se trocasse trancada, mas que, agora, ainda não conseguira se acostumar à ideia de armário apertado. Citônio, no entanto, não prestava muita atenção, mas lembrava-se da festa de Paracelso e das saídas estranhas e repentinas para a sala de artes na hora do recreio...
Citônio aprendeu a dançar funk.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Duas da tarde na Cinelândia

Sempre que Citônio dizia no colégio que escrevia poesia, chamavam ele de viado. "Poesia é coisa de viado." Demorou quase três meses pra Citônio perceber que é verdade. (Não é à toa que estou escrevendo um conto, forma bem mais máscula de redação). Mas demorou mais ainda pra ele perceber que poesia tem muito mais a ver com internar coisas do que com externar. Feito isso, foi à Biblioteca Nacional, tirar direitos autorais sobre certos poemas primorosos seus. Chegando nas escadarias pedrosas da fachada, avistou ninguém mais, ninguém menos do que a gatinha mais gostosa da escola: Loirelinda, filha de um diretor da Globo, casado com uma professora e chefe de departamento de alguma ciência aí na UFRJ.
Inspirado pelos deuses mais sacanas de todos os credos do mundo, mais todos os brasileiros, encantou-se com a ideia estapafúrdia de uma belíssima intervenção urbana: a leitura declamada e apaixonada - e apaixonante, quem sabe? - de um de seus poemas, para ela, a musa cor-de-rosa em chortinhos diins, de pernas delgadas e fosforecentes, que subia, rebolante e lentamente, os degraus. O "soneto dos caramujos" lhe pareceu conveniente, ao que se enjoelhou no esquerdo, pos a mão ao peito, e declamou-o com voz de ganso.
No segundo verso já se arrependera, mas achou melhor não parar no meio, talvez fosse ainda pior. O fato é que percebeu que todos pararam a sua volta, com risos escorrendo pelas caras, e puxavam celulares e máquinas para registrar o acontecimento tão logo ele se iniciara. Havia até mesmo um, chamado Duracel, que já estava filmando a coisa antes dela começar! Mas, de todos, somente Loirelinda não reparara, e continuara com seus passos bambos de calopsita até adentrar no saguão da biblioteca.
Citônio terminou a recitação sob uma ovação desconcertante de várias pessoas e lhe pediram mais um, e depois mais um, e depois mais outro, ao fim do qual anunciou que, para mais, procurassem o blog dele.
Atordoado, pegou o metrô e voltou para casa, sem registrar uma só poesia.
Ainda que não tivesse conquistado Loirelinda, Citônio passou a ser dono de um dos blogs mais badalados (diferente deste aqui) e os vídeos todos foram para internet - o de Duracel foi o com mais vistos, porque era o único completo.
Citônio aprendeu que ajoelhar-se não favorece a voz e que dói o joelho, além de sujar as calças.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Sou a favor de uma arte...


-->
Sou a favor de uma arte que seja místico-erótico-política, que vá além de sentar o seu traseiro num museu.
Sou a favor de uma arte que evolua sem saber que é arte, uma arte que tenha a chance de começar do zero.
Sou a favor de uma arte que se misture com a sujeira cotidiana e ainda saia por cima.
Sou a favor de uma arte que imite o humano, que seja cômica, se for necessário, ou violenta, ou o que for necessário.
Sou a favor de uma arte que tome suas formas das linhas da própria vida, que gire e se estenda e acumule e cuspa e goteje, e seja densa e tosca e franca e doce e estúpida como a própria vida.
Sou a favor de um artista que desapareça e ressurja de boné branco pintando anúncios ou corredores.
Sou a favor da arte que sai da chaminé como pêlos negros e esvoaça ao vento.
Sou a favor da arte que cai da carteira do velho quando ele é atingido por um páralama.
Sou a favor da arte que sai da boca do cãozinho, despencando cinco andares do telhado.
Sou a favor da arte que o garoto lambe, depois de rasgar a embalagem.
Sou a favor de uma arte que sacuda como o joelho de todo mundo quando o ônibus cai num buraco.
Sou a favor da arte tragável como os cigarros e fedorenta como os sapatos.
Sou a favor da arte que drapeja, como as bandeiras, ou assoa narizes, como os lenços.
Sou a favor que se veste e tira, como as calças, que se enche de furos, como as meias, que é comida, como um pedaço de torta, ou descartada, com total desdém, como merda.
Sou a favor da arte coberta de ataduras, sou a favor da arte que manca e rola e corre e pula. Sou a favor da arte enlatada, ou trazida pela maré.
Sou a favor da arte que se enrosca e grunhe como os lutadores. Sou a favor da arte que solta pêlo.
Sou a favor da arte que você senta em cima. Sou a favor da arte que você usa para cutucar o nariz, da arte em que você tropeça.
Sou a favor da arte vinda de um bolso, dos profundos canais do ouvido, do fio da navalha, dos cantos da boca, da arte enfiada nos olhos, ou usada nos pulsos.
Sou a favor da arte sob as saias e da arte de esmagar baratas.
Sou a favor da arte da conversa entre a calçada e a bengala de metal do cego.
Sou a favor da arte que cresce num vaso, que desce do céu à noite, como um raio, e se esconde nas nuvens e retumba. Sou a favor da arte que se liga e desliga com um botão.
Sou a favor da arte que se desdobra como um mapa; que se pode abraçar como namorado ou beijar como cachorrinho. Que expande e estridula, como um acordeão, que você pode sujar de comida, como uma toalha de mesa velha.
Sou a favor da arte que se usa para martelar, alinhavar, costurar, colar, arquivar.
Sou a favor da arte que diz as horas, ou onde fica essa ou aquela rua.
Sou a favor da arte que ajuda a velhinha a atravessar as ruas.
Sou a favor da arte da máquina de lavar. Sou a favor da arte de um cheque do governo. Sou a favor da arte das capas de chuva de guerras passadas.
Sou a favor da arte que sai como vapor dos bueiros no inverno. Sou a favor da arte que estilhaça quando se pisa numa poça congelada. Sou a favor da arte dos vermes dentro das maçãs. Sou a favor da arte do suor que surge entre pernas cruzadas.
Sou a favor da arte dos cabelinhos da nuca e dos chás tradicionais, da arte entre os dentes de garfos dos bares, da arte do cheiro de água fervendo.
Sou a favor da arte de velejar aos domingos e da arte das bombas de gasolina vermelhas e brancas.
Sou a favor da arte de colunas azuis brilhantes e anúncios luminosos de biscoito.
Sou a favor da arte de rebocos e esmaltes baratos. Sou a favor da arte do mármore gasto e da ardósia britada. Sou a favor da arte das pedrinhas espalhadas e da areia deslizante. Sou a favor da arte dos resíduos de hulha e do carvão negro. Sou a favor da arte das aves mortas.
Sou a favor da arte das marcas no asfalto e das manchas na parede. Sou a favor da arte dos vidros quebrados e dos metais batidos e curvados, da arte dos objetos derrubados propositalmente.
Sou a favor da arte de pancadas e joelhos arranhados e traquinagens. Sou a favor da arte dos murmúrios das mães.
Sou a favor da arte do burburinho dos bares, de palitar os dentes, tomar cerveja, salpicar ovos, de insultar. Sou a favor da arte de cair dos bancos de botecos.
Sou a favor da arte de roupas íntimas e táxis. Sou a favor da arte das casquinhas de sorvete derrubadas no asfalto. Sou a favor da arte majestosa dos dejetos caninos, elevando-se como catedrais.
Sou a favor da arte que pisca, iluminando a noite. Sou a favor da arte caindo, borrifando, pulando, sacudindo, acendendo e apagando.
Sou a favor da arte de pneus de caminhão imensos e olhos roxos.
Sou a favor da arte Kool, arte 7-up, arte Pepsi, arte Sunshine, arte plástico, arte mentol, arte L&M, arte laxante, arte grampo, arte Heaven Hill, arte farmácia, arte sana-med, arte Rx, arte 9,99, arte agora, arte nova, arte como, arte queima de estoque, arte última chance, apenas arte, arte diamante, arte do amanhã, arte Franks, arte Ducks, arte hamburgão.
Sou a favor da arte do pão molhado de chuva. Sou a favor da arte da dança dos ratos nos foros.
Sou a favor da arte de moscas andando em pêras brilhantes sob a luz elétrica. Sou a favor da arte de cebolas tenras e talos verdes firmes. Sou a favor da arte do estalido das nozes com o vai-e-vem das baratas. Sou a favor da arte triste e marrom das maçãs apodrecendo.
Sou a favor da arte dos miados e alaridos dos gatos e da arte de seus olhos luzentes e melancólicos.
Sou a favor da arte branca das geladeiras e do abrir e fechar vigoroso de suas portas.
Sou a favor da arte do mofo e da ferrugem. Sou a favor da arte dos corações, lúgubres ou apaixonados, cheios de nougat. Sou a favor da arte de ganchos para carne usados e barris rangentes de carne vermelha, branca, azul e amarela.
Sou a favor da arte dos objetos perdidos ou jogados fora na volta da escola. Sou a favor da arte de árvores lendárias e vacas voadoras e sons de retângulos e quadrados. Sou a favor da arte de lápis e grafites de ponta macia, de aquarelas e bastões de tinta a óleo, da arte dos limpadores de pára-brisa, da arte de um dedo na janela fria, no pó de aço ou nas bolhas das laterais da banheira.
Sou a favor da arte dos ursinhos de pelúcia e pistolas e coelhos decapitados, guarda-chuvas explodidos, camas violadas, cadeiras com as pernas quebradas, árvores em chamas, tocos de bombinhas, ossos de galinha, ossos de pombo e caixas com gente dormindo dentro.
Sou a favor da arte de flores fúnebres levemente murchas, coelhos ensangüentados pendurados e galinhas amarelas enrugadas, baixos e pandeiros, e vitrolas de vinil.
Sou a favor da arte das caixas abandonadas, enfaixadas como faraós. Sou a favor da arte de caixas-d'água e nuvens velozes e sombras tremulantes.
Sou a favor da arte inspecionada pelo Governo dos Estados Unidos, arte tipo A, arte preço regular, arte ponto de colheita, arte extraluxo, arte pronta para consumir, arte o melhor por menos, arte pronta para cozinhar, arte higienizada, arte gaste menos, arte coma melhor, arte presunto, arte porco, arte frango, arte tomate, arte banana, arte maçã, arte peru, arte bolo, arte biscoito.
acrescente:
Sou a favor de uma arte que seja penteada, que pende de cada orelha, seja posta nos lábios e sob os olhos, depilada das pernas, escovada dos dentes, que seja presa nas coxas, enfiada nos pés.
quadrado que se torna amorfo

Claes Oldenburg

domingo, 4 de abril de 2010

Desmentiras

os meus vômitos têm estrelas
cadentes de porcaria

me disseram que se fizesse
careta
e o vento passasse
eu ficaria assim pra sempre todo

morria de medo de vomitar ao ar livre
e morrer de vomitar pra sempre

mas pelo menos o mundo teria mais
luzinhas
mais que as lampadinhas acesas
das casas de cada pessoa
com medo do escuro

eu tinha medo de escuro
porque apareciam ètés e fantasmas
na sombraria da casa vazia
no vaga-lume do costume
de andar de luz acesa

a vó também me disse
que bolo quente faz mal
dá dor de barriga e queima o esôfago
fosse lá o que fosse isso.

imagina comer bolo
fazendo vesgo na noite escura...
ia ser o caos dos vaga-lumes-estrela
junto com bolo queimadura da dor de barriga
vomitados da minha cara desfocada eternamente
e com assombração de outros mundos!

quarta-feira, 31 de março de 2010

O poema presente

to com o rancor de todo tronco dárvore
preso na garganta
não sei direito
as vezes acho que passarinho só pode contar história
não sei direito

to suando que nem jogador de futebol
sem fazer nada
e com um torcicolo dos diabos
sem fazer nada
só saudosando aqueles olhos arteiros

Um passarinho me contou
que pra voar mais alto que avião e nave espacial
a gente precisa ser poeta
quanto maior somos no poetismo
mais alto é o salto nosso

Então faz de conta
que esse passarinho nos deu asa
porque a gente recitou direitinho e bonito
e vamos pra Lua, cravar nossa bandeira
na torre de nosso castelo de areia

domingo, 28 de março de 2010

Telefonadamente

Quanto tempo pode passar
dentro de um universo
de um verso?

-Acho que foi por engano...
discou o número errado,
ou foi trote.

Telefones - alguns, nem todos -
são meio sentimentais
têm uns que nem tocam

Tá na hora de trocar de plano
A minha operadora
é uma merda

Aprendi a tocar piano,
com as teclas do celular
gravei seu número.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Janela incompleta

O que me devora é o seu cheiro
O que me excita é o seu cabelo
O que me envolve é o seu espaço
O que me alimenta é o seu miado
de gata gaga engaiolada
O que me atormenta é o seu semblante
O que me entorpece é a suas costas
O que me encruzilha?
Inda não sei
O que me vai de volta é a vossa voz
Acho que é hora de se acarinhar
Onde o vento que balança a sua saia?

segunda-feira, 22 de março de 2010

Irmão, meu irmão

Irmão, irmão meu
filho de mesma mãe e pai
cresce, esquece, e vai
não pense no que já morreu

Vamos viver dos amores
das cantigas de Orfeu
subindo, sozinhos, nos nossos sofreres
ao mais alto andar dos arranha-ceús

Entendo os seus quereres,
caprichado e zeloso irmão,
mas é hora de andar na contra-mão.

Ergue esse rosto bretão!
Espalhemos nossas mentes, sementes,
qual Cosme e Damião.

sábado, 20 de março de 2010

Herói

Há mó tempão
rolava um maluco
(aquele macaco do 2001)
que catou um osso de merda
virou prum bonde
de uns sete viados
e disse:
"eu contra rapa!"
e desceu a porrada nos maluco

Papo reto

(pô, nem discutam
esse poema é com certeza pior que 2001)

Poeta Playsson

sábado, 13 de março de 2010

Acidentado

O circo chegou num barco
e de cara
a zona portuária
virou o point da galera indie

Traziam - o circo, não os indies -
barris e barris de pólvora
feitas no Paquistão
- fogos de todas as cores!

"Pra maiores de dezoito anos"
dizia a classificação etária
mas claro quer rolou um montão
de gente com identidade falsa...

Era dezoito anos
só porque a princesa Bradubuldur
dançava nua em pêlos
entre véus, ventres e bolhas de sabão

O show começava com uma banda
de rock muito underground
composta por cinquenta e um caras e meio
(porque um deles não tinha pernas)

Luzes e fogos, entram os animais!
Dumbo e Ganesh, os elefantes;
Mickey, Minie, e os pulantes de Hamelin
Nero, Pumba, Tião e suas fezes!

Equilibrava-se, quixote, o espantalho
numa corda, em cima
da bicicleta de Duchamp
com seus pés de curupira

Depois, surfando numa piscina
de jacarés cheios de borboletas nas bocas,
veio o dotado domador David,
que matou Golias no fim do seu número;

Trezentas mil quatrocentas e doze
pulgas pululavam pelos pirulitantes trapezistas
nus e cegos, que declamavam
cantos gregorianos e poemas de Gregório de Mattos;

Do céu de lona choveram fios prateados,
quando as equilibritas virgens
se masturbaram de cabeça pra baixo numa corda bamba
ao som de Atom Heart Mother;

Sete carpideiras bêbadas desmoronaram o público
enquanto existencialistas se contorciam
dentro de suas prisões de liberdades
e frases nietzschianas foram encontradas dentro das pipocas

Os Cavaleiros do Apocalipse baixaram
em médiuns na platéia,
e o espírito de Caim matou todos
que se chamavam Abel - ou Abelardo

Então saiu um mágico do chão
e, como truque final,
fez o dinheiro de todos aparecer
em suas cuecas e meias!

Citônio saiu transformado!
Sentia-se cheio de cidade - acidentado!
(porque não pode ser acidadado, né?)
Citônio: acidentado pelo circo!

quinta-feira, 11 de março de 2010

Cacilda

O muleque tava andando por ali
perto daquela academia perto da farmácia
e pisou na maior merda
que tinha na cidade

"Caralho! - digo, merda!"
A parada era feia mesmo.
Mas aí ele sentiu
um tremelique estranho:

Aquela merda enorme
era orgânica, verde, saudável
e o muleque se sentiu mais uno
com a natureza
meio hippie.

quarta-feira, 10 de março de 2010

João Pirralho

João Pirralho era uma aberração pra sempre
na oitava série
O cara catou catapora com catorze anos!
Teve uma vez que chutou um cachorro
porque riu do seu arroto

Ele morou na rua, até os sete anos
e não foi pra escola
foi a escola que foi pra ele
na forma de um pássaro!
feio e remelento - acho que era um pombo...

João Pirralho era uma aberração pra sempre
no ensino médio
mas foi trocado por um mês grátis de academia pela mãe
e teve que escolher ser aberração
ou casado

sábado, 6 de março de 2010

A rima que falta

Encaixa perfeitamente
no espaço lhe dado ali,
no verso lha dado em mim,
poema que sigo em frente.

É a rima do de repente
que vivo quando te vi
na valsa dessa ciranda,
na dança desse repente.

Sussura-se tu daqui;
na volta, sou todo ida;
que falta tenho de ti!

Declamo-me todo a ti:
te amo, rima perdida,
a rima que falta aqui...

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Zarpemos

Sobre a mesa, algumas ideias
sobretudo, cobre o mundo
o céu, mar de zodíaco
sobreviver

Ventania de vagabundo
venta na ilha do seu perfume
cheiro de te ter
inventa a cada dia

Descobre o mundo de sofia
o sol cobre de cobre o oceano
descoberta, a ilha deserta
areia, a cama; céu, a coberta

Escuta notas do piano
na escuna-ilha astrológica
escotilha da cabeça
escoteira

Navega, maruja
nave eterna e passageira
na vaga do mar
a ilha, vagão descarrilhado

Observa, sem lunetas,
serva desse olhar enamorado,
a espuma de cerveja das ondas
que sobem, marisia, sorvem-te

Encontra-me, quase afogado
contraído, com asas de arame
traído pelo ar que amo
contra, sem ar

Sufoca-me, maruja, sufoca-me
pois o mar urja, então me beija
e já que o tempo é de sol descente
indecente, sente-me a te zarpar

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Uma mulher é uma mulher

Nós que nos amávamos tanto é um filme lindo
Jules e Jim também é um filme lindo
E eu fico imaginando quantos filmes lindos já foram feitos
E quantos poemas lindos já foram feitos...

As mulheres são diferentes
mas você é a mais diferente
Todas as mulheres do mundo também é um filme lindo
Queria me marcar a fogo com a brasa do seu sorriso...

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O Beijo

O fôlego lívido;
olhares de malandro,
lapidando, lupinos,
as mulheres da Lapa.

O laço da Bela;
os lábios bicam,
qual brumas batendo a lua,
marisia lambendo a manhã.

A lua do lobo;
as línguas,
bacantes bêbadas,
libertam-se loucas!

Levanta, Baco e suas mênades,
as leveduras dos vibrantes vinhos!
Viola os lábios inquilinos,
o vão lascivo da tua alma!

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

O tímido apaixonado (ou Soneto de um castor)

Eu sou um homem de lata
com passos de tanajura
Eu sou um bêbado errante
preso na própria sucata,

preso na minha tortura
de coração viajante.
O que é isso que falta
na minha interna rasura?

Notas de um verde tocante
perfuram minha armadura
inventam um coração

Corta-me a corda vibrante
tendão da minha cultura,
pexeira de Lampião.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Esse grão

Havia um grão de areia
dentro da calça dele
e é sobre isso
que essa poesia vai tratar.

Havia um punhado de gente no mar
um montão de areia na praia
mas um único grão
no calção dele.

Havia uma ciranda tranquila no ar
um canto de bicho no céu
uma boca abrindo num beijo
no banco da praça, ali perto.

Mas quero falar desse grão.
Que ninguém via, que ninguém
- nem ele - sentia
que era perdido do mundo.

Ele vinha de uma praia das Antilhas
mas já passara pelo susto
do fundo do mar
e por um deserto, na Europa.

Correra nos ventos alíseos
secara a garganta de um índio
e viajou no cabelo de um hippie
cruzando os montes andinos.

Sonhava visitar Nova Iorque;
queria ver a neve de perto
e tocar as nuvens!
Era um nefelibata, coitado.

Para onde iria aquele grão?
E depois, passaria por que reinos,
por que estações, que povos?
Ninguém poderia dizer...

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

A Seca

Eu bebi o tutano dos ossos do sertão
Eu bebi a própria seca
Eu bebi os sem-terra,
os sem-teto, os sem-tudo.

Eu bebi o vento vazio
bebi a vazante do rio
bebi o vagante vadio
e o esterco da gralha.

Eu bebi o som do guizo
Eu bebi a roça rude
e o retalho de uma mortalha
Eu bebi o riso.

Eu bebi o trinar do açude
e dos passarinhos
curió, canário, pintinho
Eu bebi o beijo dos costumes.

Eu bebi o suco dos legumes
da seriguela, do suor, do sol
Bebi o silêncio da praça;
bebi cigarro e cerveja.

Eu bebi cereja e acerola
Eu bebi a própria desgraça
Eu bebi o azul e o branco
e bebi o canto e as estrelas

E, então, eu bebi o trovão.

E todos eles sairam sedentos
De suas casas
Olhando, com olhos suados,
O céu
E a serenata da zabumba do trovão

E todos eles beberam, sedentos,
Da chuva cheirosa do sertão.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Transcedência

Uma vez,
queimei a minha roupa
com a guimba de um cigarro que encontrei
na rua
e me fiz uma pira com ela
e fiquei pelado, olhando pra ela.
Sentado.
E quando o fogo
apagou
eu rolei nas cinzas
e me vesti de novo.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O Descante de Arlequim

A Lua ainda não nasceu.
A escuridão propícia aos furtos,
Propícia aos furtos, como o meu.
De amôres frívolos e curtos,

Estende o manto alcoviteiro,
À cuja sombra, se quiseres,
A mais ardente das mulheres
Terá o seu único parceiro.

Ei-lo. Sem glória e sem vintém,
Amando os vinhos e os baralhos,
Eu, nesta veste de retalhos,
Sou tudo quanto te convém.

Não se me dá do teu recato.
Antes, pulido pelo vício,
Sou fácil, acomodatício,
Agora beijo, agora bato,

Que importa? Ao menos o teu ser
Ao meu anélito corruto
Esquecerá por um minuto
O pesadelo de viver.

E eu, vagabundo sem idade,
Contra a moral e contra os códigos,
Dar-te-ei entre meus braços pródigos
Um momento de eternidade...

Manuel Bandeira

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Amor mimetisado

Eu fotografei aquele cheiro
assim que ele foi exalado:
o cheiro do amor, fotografado.

E ela se sentiu fotografada
quando sentiu o cheiro do meu amor
e a minha foto a amá-la.

Às treze horas e trinta e um minutos passados
nos seus olhos vi meu cheiro, em sentidos
e nos meus olhos, o seu cheiro, em abrigos:
os nossos olhos desencontrados.

E quando nossos olhos forem achados
olhando cada um pro seu umbigo
que tirem outra foto desse amor contido:
o amor do cheiro fotografado.